2000
Clara, 9 anos
Estou muito empolgada com o programa que vamos fazer hoje. É muito bom sair com os pais da Eva: eles são engraçados e muito divertidos. Sempre quis ir a Grumari. Minhas amigas da escola comentam que a praia é linda e deserta, igual às dos filmes que passam à tarde na televisão. Eu me sinto em uma aventura e estou louca para brincar muito naquelas areias branquinhas.
Passamos o tempo mergulhando, correndo e fazendo castelos. Comemos uma comida muito gostosa, e a tia Ellen compra sorvetes de chocolate como sobremesa. Já são cinco horas da tarde, e estou cansada, mas não quero que o dia acabe.
Recolhemos as nossas coisas, entramos no carro e seguimos em direção à minha casa. No caminho, eu me lembro do Mirante que todo mundo fala, que fica no Leblon. Nunca fui lá antes. O Sol já vai se pôr, então seria maravilhoso se a gente terminasse o nosso programa assim. Faço aquela cara de cachorrinho abandonado, que quase sempre derrete o coração das nossas mães.
— Tia Ellen, vamos passar no Mirante do Leblon para ver o Sol se despedir? Por favor? Por favorzinho? — apelo, fazendo biquinho e juntando as mãos como se fosse rezar.
— Clarinha, já está tarde e, a essa hora, a Avenida Niemeyer tem um trânsito horrível — ela explica, tentando fazer com que eu desista da ideia. Mas sei ser insistente quando quero alguma coisa.
— Mas esta é a hora perfeita: a hora em que o Sol vai se pôr, tia! Por favor! A gente não precisa demorar. É o meu sonho — digo, com a voz triste.
Tia Ellen acaba cedendo e pede para tio Carlos mudar o nosso trajeto para irmos ao Mirante. Eu fico muito animada e dou pulinhos no banco de trás do carro. Eva está cansada e não fala nada. Ela não me acompanha na minha empolgação.
Fico distraída, olhando a paisagem pela janela, e não vejo quando acontece. Só ouço um barulho horrível e sinto meu corpo sendo jogado para frente com toda a força. O cinto de segurança me prende e me machuca, sufocando-me. O som de gritos toma conta de tudo, e nem mesmo sei se sou eu quem está berrando. Parece que estamos em câmera lenta, igual àquelas cenas de terror do cinema.
Abro os olhos e sinto dor no peito e na testa. Percebo que estou sangrando. Olho para o lado, e Eva está desmaiada. Tento ver tia Ellen e tio Carlos, mas só enxergo um monte de metal coberto de vermelho. Começo a gritar por eles, mas ninguém me responde. Tento me mexer melhor, mas não consigo. Choro em desespero e imploro para alguém me ajudar.
O barulho das sirenes começa a ficar cada vez mais alto e, em alguns minutos, alguns médicos falam comigo e fazem perguntas que não consigo responder. Eu, sinceramente, não sei o que aconteceu. Devo ter desmaiado. Eles me colocam na ambulância, mas preciso saber como estão Eva e os pais dela. Ninguém me responde. Começo a gritar, a me debater, a chamar pela minha mãe.
Acordo em um lugar estranho, que é claro demais. Não é o meu quarto. Não estou vendo o papel de parede rosa nem as minhas bonecas preferidas. Aqui é tudo branco e tem muita luz. Mal consigo abrir os meus olhos.
Vejo minha mãe, que se levanta e vem rápido na minha direção. Ela está com uma cara horrível e tem o cabelo todo despenteado. Acho que nunca a vi desse jeito.
— Filha, como você está? Sente dor, meu amor? — ela pergunta, fazendo carinho no meu braço. A lembrança do acidente volta forte e começo a sentir meu coração apertado.
— Mãe, cadê a Eva? Onde estão a tia Ellen e o tio Carlos? O que foi que aconteceu? — disparo, sem conseguir pensar direito. São tantas coisas que eu quero saber. Estou confusa e sinto medo, muito medo.
O rosto da minha mãe mostra que algo horrível aconteceu. Começo a chorar mesmo antes de ela contar. Não sei se quero ouvir o que ela vai dizer. Acho que, se eu não souber, não vai ser real.
Mamãe diz que houve uma batida feia entre o carro do tio Carlos e outros dois carros. Eu e Eva tivemos ferimentos leves, mas os pais dela morreram. As palavras ficam se repetindo na minha cabeça, mas não consigo acreditar. “Os pais da Eva estão mortos. Os pais da Eva estão mortos. Os pais da Eva estão mortos” é o pensamento que martela sem parar, como um daqueles discos arranhados da coleção antiga do papai. E, no meio daquele horror, eu me dou conta: a culpa foi minha! Eu quis ir até o Mirante, convenci todo mundo a me levar até lá, fiz o tio Carlos mudar o caminho. Se não fosse isso, a batida não tinha acontecido e eles não estariam mortos. Eu matei os pais da Eva!
Não consigo parar de chorar, soluçar e gritar. Eu sou uma menina horrível e, agora, por minha causa, a minha melhor amiga está sozinha no mundo. Por que fui inventar essa história de ver o pôr do Sol? Por quê?
***
Assim que me sinto um pouco melhor, peço para a minha mãe me levar até o quarto em que Eva está. Fica ao lado do meu, então, em poucos segundos, já consigo ver a minha amiga dormindo na cama. Ela é só uma criança, como eu. E perdeu tudo hoje. Tudo.
Eu me sento na beirada do colchão e seguro a sua mão. Bem baixinho, falo perto do seu ouvido:
— A culpa foi minha, Eva. Se eu não tivesse pedido para ir ao Mirante, os seus pais estariam vivos. Não sei o que dizer. Eu sinto muito. Eu prometo, amiga, que vou ficar sempre com você e fazer tudo o que eu puder, no mundo inteiro, para você ser feliz. Vou fazer qualquer coisa. Eu juro, Eva. Qualquer coisa. Para sempre — digo, chorando. Sei que só tenho nove anos, mas, a partir de agora, preciso fazer Eva feliz. É a minha obrigação depois de tudo o que causei.
***
Algumas semanas se passam, e Eva passa a morar de vez com a gente. Mamãe e papai estão resolvendo um monte de coisas para poder adotá-la como filha. Fico feliz em tê-la oficialmente como irmã, mesmo que, no fundo, sempre a tenha considerado assim. Dividimos o mesmo quarto, e tenho me esforçado para deixá-la alegre: cedi a minha cama, separei mais da metade do meu armário para ela guardar as roupas dela e enchi as paredes com fotos nossas e dos nossos pais. Ela pode escolher o programa que quer assistir e até o que vamos comer. Às vezes, é difícil conseguir agradar porque os nossos gostos são muito diferentes, mas faço tudo o que posso para ver a minha amiga-irmã sorrindo. O sorriso que eu, sem querer, roubei dela.
2013Clara, 22 anos Passo a noite praticamente em claro, tentando entender a minha nova realidade: Leo é a paixão obsessiva de Eva. Parece uma daquelas piadas de péssimo gosto, mas, infelizmente, não é.Olho o meu celular, e tem dezenas de ligações perdidas de Leonardo e várias mensagens de texto e de voz. Começo a ler e a ouvir as palavras que ele deixou.►“Clara, eu quero pedir desculpas. Para começar, por ter passado a noite com outra mulher. Eu estava muito bêbado e me arrependi amargamente. Nós não estamos namorando oficialmente, mas eu já sou completamente apaixonado por você. Não podia ter acontecido. E eu... eu nunca poderia imaginar que a Eva era a sua irmã. Parece um pesadelo.” “Olha, eu sei que você está fer
2002Clara, 11 anos Mamãe e papai decidiram que vão nos levar para um acampamento de férias. Estou bem animada, até porque é a primeira vez que a gente vai viajar em dois anos. Além de ficar em um local lindo, cheio de natureza, tem várias atrações legais: canoagem, trilhas e escorregador na lama. Tenho esperança de que Eva se esqueça um pouco da saudade dos pais e se divirta ao meu lado. E, claro, que eu consiga não pensar, pelo menos um pouquinho, na tristeza que causei.Em todo o tempo que passou desde o acidente, não tem um dia em que não me sinta mal pelo que fiz. O pior é ver Eva chorando, com dificuldade at&eacut
2013Clara, 22 anosJá faz quase um mês que terminei com Leo, e a sensação que tenho é que fica cada dia mais difícil. Estar longe dele é doloroso demais. Ele tem me procurado de maneira insistente, mas simplesmente ignoro todas as mensagens e ligações. Até no meu estágio ele apareceu, mas pedi que o mandassem embora. É muito triste dizer adeus a quem se ama e ver a pessoa sofrendo, sem poder fazer nada. Mas eu realmente não posso.Depois de uma tarde agitada no trabalho, entro em casa desejando um banho demorado e a cama. Logo de cara, encontro Eva cabisbaixa no sofá, pálida e com aparência de quem passou o dia chorando. Meu coração fica imediatamente apertado. Deixo as minhas coisas em cima da mesa e me sento ao seu lado com cuidado.— Por que essa carinha triste, Eva?
2003Clara, 12 anos Na hora do jantar, papai diz que tem uma surpresa para nós. Ficamos ansiosas, querendo logo saber do que se trata. Ele faz suspense até a sobremesa, mas, enfim, revela o mistério: vamos passar as férias nos Estados Unidos. Damos gritinhos de comemoração e fazemos a nossa dancinha da vitória; estamos muito empolgadas. Mamãe conta que cabe a nós duas, eu e Eva, decidirmos a cidade que iremos visitar.Eu grito, na hora, que quero ir à Disney. É o meu sonho desde sempre e sou completamente apaixonada pelo universo de magia do lugar. Imagino as cores, os personagens, os brinquedos. Começo a sonhar acordada com a possibilidade de, enfim, pegar um avião para Orlando. Eva faz uma cara feia para a minha sugestão.— Disney, Clarinha? Isso é coisa de criança! A gente j&aacu
2014Clara, 23 anosEstou completamente apaixonada por João Pedro. Ele é um bebê sorridente e calmo, que encanta todos à sua volta. Quando o seguro nos braços, sinto uma imensidão invadir o meu peito, um sentimento imensurável tomar conta de mim. É puro, verdadeiro, transparente. Tiro um mês de férias e vou à casa de Eva quase todos os dias, depois que Leo sai para o trabalho. Passo a tarde com eles e ajudo em tudo o que posso: dou banho, coloco para arrotar, levo para pegar sol e seguro na hora das cólicas. Ela aproveita a minha presença para cochilar e se recompor. Não é fácil cuidar de um recém-nascido.Aos poucos, as coisas estão se encaixando e a vida vai voltando para o seu rumo. Embora ainda ame Leonardo, o meu sentimento está cada vez mais adormecido, domado, represado
2018Clara, 27 anos Eu e Eva estamos com 27 anos. É impressionante como os últimos anos voaram. Ao mesmo tempo que foi difícil administrar a minha paixão por Leonardo, recomeçar a vida e ajudar na criação do João Pedro, tenho a sensação de que passou rápido demais. Meu afilhado já tem quatro anos e esbanja esperteza. Ele é apaixonante, carinhoso, sagaz. Adoro levá-lo para passear e vê-lo sorrir enquanto nos divertimos juntos.Hoje, posso dizer, de boca cheia, que sou uma escritora, como sempre quis. Acabo de colocar o ponto final no meu segundo romance de ficção. Nem acredito que consegui terminar mais uma história e que, em breve, ela será lançada para o mundo. Tenho conciliado o meu trabalho na revista com a carreira na literatura. Estar na Em Nome da Ciência t
2005Clara, 14 anos Vamos a uma festa na casa do Paulo, um menino muito popular da escola. Estamos animadas e até compramos roupas novas. Eu vou com um vestido preto justinho, que tem pequenos detalhes em branco. É discreto, mas muito bonito. Eva, por sua vez, se apaixona por um conjunto de saia e blusa dourado: lindo, mas ousado e bastante chamativo. É a cara da minha irmã!Eva cisma que precisamos levar bebidas alcóolicas para parecermos descoladas. Ela quer começar a beber de qualquer maneira. Eu faço de tudo para tirar essa ideia estapafúrdia da cabeça dela, enumerando todas as coisas erradas que mexer com álcool pode ocasionar. A gente só tem quatorze anos e não tem por que querer apressar as coisas. Cada coisa na sua idade, no seu tempo certo. Mas claro que meu esforço é totalmente em vão.
2018Clara, 27 anosHoje, vou almoçar com Eva. Ela vai estar perto do meu trabalho, pois precisa comprar alguns suprimentos para a sua clínica de estética. Embora tenha cursado jornalismo comigo, a minha irmã nunca exerceu a profissão. Primeiro, foi só dona de casa e dedicou o seu tempo a JP. E, há aproximadamente dois anos, montou esse negócio, tendo como foco procedimentos de rejuvenescimento e embelezamento: botox, lifting, preenchimento, harmonização facial e vários outros tratamentos modernos. Ela, claro, se submete a todos eles. Continua vaidosa, produzida, solar. Atrai todos os olhares e desperta múltiplas atenções.Chego ao restaurante primeiro, escolho uma mesa e peço um suco enquanto espero. O tempo passa, e nada de Eva aparecer. Estranho a sua demora porque ela costuma ser pontual. Tento liga