02

Eu entrei no tráfego tedioso. Nada fora do contexto; acostumada a esperar, comecei a cantarolar a música que tocava. Ainda faltavam trinta minutos. Tudo cessou, até mesmo o irritante barulho das buzinas de um lado para o outro, porque as palavras de Isaac se instalaram em minha cabeça, corroendo.

Aaron nunca será meu pai...

Respirei fundo, desligando o rádio. Bati no volante com irritação. Eu estava sufocada, não era fácil dizer-lhe a verdade, aquela que abruptamente estava arrancando minha alma, e eu merecia por ser mentirosa. Não importava se o fiz para evitar outro desastre, ainda assim não haveria nada além de outra catástrofe assim que procurasse Ismaíl e lhe contasse sobre nosso filho em comum.

Eu estava escondendo isso dele, tinha medo de que uma vez que ele soubesse, quisesse lutar pela custódia. Ele tinha poder, direitos que eu lhe roubei desde o momento em que não falei sobre minha gravidez.

Nenhuma desculpa ou explicação absurda seria válida.

Tarde demais para nós, mas isso não significava que fosse o mesmo para pai e filho. Cada um tinha o direito de compartilhar, conhecer e desfrutar da vida juntos. Eu também estava impedida pelo que se dizia dele, ele estava felizmente casado com a modelo russa, e eu, bem em um estranho namoro. Havia tanto espaço entre Aaron e eu que não parecia sua namorada, nem ele meu parceiro. Mal nos beijávamos na boca, e o próximo passo se tornava distante toda vez que eu o evitava.

Eu não estava pronta.

Não estaria, até que os avanços deixassem de ser apenas uma falsa fachada, com a qual afirmava ter deixado à beira de um esquecimento exausto, a vida ao seu lado. Aos meus vinte e cinco anos, eu continuava presa e encalhada no sabor amargo do que era antigamente, no entanto era muito parecido com o abismo ardente, porque também me consumia, arrastando consigo as cinzas do que restou.

E não podia mitigar a ardência que se espalhava em minha pele.

Balancei a cabeça, parando de vaguear por horizontes distantes, direções afastadas que distavam, embora forçadas, de um caminho pelo qual agora percorria.

Fazia mal andar por caminhos velhos; reparar em nossa errônea história despertava pensamentos conflitantes dentro de mim, fazendo-me repensar o que quer que tivesse com Aaron.

A marcha recomeçou, então parei de aprofundar, com dificuldade, no passado. Estacionei o Nissan lá embaixo no estacionamento subterrâneo do prédio onde trabalhava. A menos de cinco minutos para começar o dia, já havia ocupado minha mesa.

Valentina se aproximou de mim erguendo uma sobrancelha. Bonita loira, intelecto invejável, mas toda mexeriqueira e barulhenta. A pasta amarela que tinha em suas mãos, deixou cair em cima do meu local de trabalho.

- Bom dia, Mariané.

- Olá, Valentina, por que você me dá isso? - perguntei franzindo a testa.

Ela apoiou os braços em sua cintura estreita.

- Linda, é a sua tarefa. Sem querer, fiquei um pouco curiosa e verifiquei. Acho que teria gostado de ter o prazer de entrevistar um espécime de homem tão grande - ela expressou mordendo o lábio, até gemendo ao dizer as últimas palavras - Mas você sabe como é Anastasia, nossa chefe tem você em alta estima, confia cegamente em você, já me deixou claro. Não é estranho que ela tenha lhe dado a oportunidade de entrevistar um magnata como Al-Murabarak. Deus! Até sinto como se minha calcinha estivesse molhada só de imaginar.

Enquanto falava muito, seu nome era a faca que me apunhalava. O ar abandonou meu sistema, com os pulmões atrofiados, tive que abanar meu rosto.

- Bem por você, mas não crie ilusões porque ele tem esposa - acrescentou com diversão.

A pior piada, se soubesse o que significava encontrar Ismaíl Al-Murabarak, não estaria soltando tolices.

- Sério?

- Não é nenhuma piada, ruiva - ela revirou os olhos.

Ainda sem acreditar, verifiquei o conteúdo da pasta apenas para descobrir que uma má jogada da vida estava me colocando de volta ao meu presente.

O Reencontro

- Não! - gritei histérica -. Não consigo fazer isso, Kelly.

Caminhei em círculos. No final, desabei no sofá, destroçada. Tudo parava no momento errado, sentia-me num beco sem saída. A vida me empurrava na direção dele. Não queria vê-lo, encontrá-lo novamente e ter que sustentar seu olhar numa luta indecifrável.

- Ia acontecer a qualquer momento, você precisa encarar isso como uma adulta. - assegurou, sentando ao meu lado.

- Você não entende. - apontei com um sorriso amargo.

Raiva, preocupação e ansiedade, tudo dentro de mim, uma guerra fria.

- Acredite em mim, Mariané - refutou, acariciando meus ombros -. Ao vê-lo, você não precisa ir direto ao ponto e contar sobre Isaac, tudo será no momento certo, quando você achar conveniente.

- Não, vou falar com Anastasia e pedir que reatribua a entrevista para Valentina. - falei decidida.

- Sem mais evasões, Mariané. Enfrente a situação e não se esconda como uma covarde - aconselhou com aquele tom de mãe que quer o melhor para seu filho, mas não era minha amiga tentando me convencer de algo que não entendia realmente -. Olha, é um sinal e você deveria prestar atenção nele.

- Nem todos os sinais são bons e pressinto que o pior vai acontecer se eu decidir ir ao escritório dele. - bufei exasperada.

Ela negou rapidamente, discordando, seus olhos verdes expressivos quase saltando das órbitas.

- É o que você acredita, não mude nada, faça o trabalho como uma profissional.

- Não... não tenho certeza.

- Também tive medos, terror de subir ao palco e tocar na frente de muitas pessoas. A única coisa que me dá coragem é confiar em mim mesma, sei que sou boa e se eu errar, não tem problema - ela me deu um beijo na bochecha e se levantou -. Sean deve estar me esperando.

- Entendo, vá tranquila.

- Pense nisso, amiga. - recomendou se afastando.

Apenas assenti com a cabeça, mas não prometia nada.

- Mamãe, estou com fome.

E lá estava Isaac, meu segredo, o nó dessa história que eu não ousava desatar.

- Me dê um segundo. - pedi soltando um suspiro.

...

O mês de abril não me pegou desprevenida, embora tenha sentido como uma espessa camada de gelo cobrindo minha pele. Lá fora havia uma primavera extraordinária, mas por dentro eu afundava murcha. Em frente ao espelho encontrei aquela Mariané sem armadura, vulnerável e temerosa.

Voltei a ser a mesma, talvez nunca tenha deixado de ser, e esqueci disso.

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