Sentei-me no calçadão e respirei a brisa do mar. Era primavera; o sol aquecia o coração e as flores floresciam nos canteiros. O prédio, no qual eu morava, tinha três andares e seis apartamentos. Ninguém tinha conhecimento, mas eu era a proprietária de tudo aquilo. Os aluguéis dos apartamentos proporcionavam-me uma renda extra. Apesar de ser uma cirurgiã reconhecida na cidade, meu salário não seria suficiente para adquirir um prédio no valor de milhões de euros. Sendo assim, este era um dos meus segredos, bem guardado.
Cansada da maresia e com a escuridão já se intensificando, dirigi-me para casa, que estava a apenas cem metros dali.****
Sem compreender minha própria reação, entrei no apartamento e fui direto para a televisão. Algo me atraía de volta à cerimônia de premiação do famoso festival. M*****a hora em que Candance e todas as enfermeiras daquele setor decidiram assistir à chegada das celebridades. Por que justo naquele momento tive que o ver, após quinze anos passados?
Sentei-me com uma taça de vinho na mão e aguardei o anúncio da categoria de melhor ator. Jack era o favorito. Apesar de não acompanhar sua carreira, enquanto estive no calçadão, li a respeito. Quando ele subiu ao palco como o grande vencedor da noite e agradeceu ao público, percebi que nunca o havia esquecido, nem por um momento. Deixá-lo foi a decisão mais difícil da minha vida. Não me arrependi da escolha. Na época, forcei-me a acreditar que ele não me amava o suficiente para notar o que acontecia nos bastidores e debaixo do próprio nariz dele. Tentei relaxar tomando a garrafa de vinho e deitei-me logo após a saída de Jack do palco. Deitei-me exausta, mas lembranças do passado surgiam e desapareciam. Fragmentos de um passado distante. Lembro que, após vislumbrar seu rosto na minha memória, as últimas palavras que sussurrei antes de adormecer foram:“Hoje sou Lily, médica, cirurgiã neurológica.”*****
Acordei com Candance fazendo barulho na cozinha. Ela alugava o apartamento número dois e dividia com outras duas enfermeiras. Desde que nos conhecemos, ela nunca mais tomou café da manhã no próprio apartamento. A loira branquela, de nacionalidade francesa, estava preparando panquecas.
— Bom dia, Miss Sunshine — era o modo carinhoso como ela me chamava. Ela dizia que, no primeiro ano da residência, quando entrei no hospital, todos os olhares se voltaram para mim. Minha amiga afirma até hoje que eu brilhava. — Parece que fez uma festa particular aqui. — Falou, levantando a garrafa de vinho vazia, me sentei no sofá, ainda com sono.— O dia ontem foi tenso, ajudou a relaxar. Por isso dormi tão bem.— Não é o que suas olheiras dizem. Lily, você sempre está tensa. Preciso repetir isso todos os dias para você, quem sabe você acredita e tenta mudar.Me levantei e dei-lhe um beijo estalado na bochecha, era sempre assim que eu a fazia calar a boca. Segui para o quarto, entrei no banheiro e fiz a minha higiene matinal. Após estar com a roupa apropriada para a minha corrida, voltei para a cozinha, sentei-me para tomar café. — Como foi o plantão? — Perguntei, enquanto ela estava mexendo em seu celular, sentada à mesa.— Tranquilo. Alguns bêbados pós-festa do festival. Outros malucos machucados, quando se acotovelavam para ver os artistas. Mas, no geral, até consegui dormir um pouco. E você está de folga hoje?— Sim, vou correr na praia. Ficar em casa, dar uma faxina.— Só não me acorde, preciso dormir um pouco mais.— Sim, comandante — falei rindo — mesmo você não morando na minha casa, tentarei não acordá-la.Tomei uma xícara de café e me levantei, já caminhando para a porta.— Não vai comer a panqueca? Fiz com tanto carinho. — Ela me disse, fazendo uma carinha de tristeza.— Quando eu voltar. Com o estômago cheio, não conseguirei cumprir a meta do dia.— Vou deixar no microondas.— Obrigada. — Falei, jogando um beijo no ar, saindo do apartamento.Corri pelo calçadão, dois quilômetros, e parei assustada. Uma multidão estava aglomerada no calçadão em frente ao Ritz Hotel. Cheguei a pensar que fosse algum acidente e estava pronta para ajudar, mas não era isso. Mulheres ensandecidas se acotovelavam para ver alguém que estava na janela. Gritavam, choravam, quase arrancavam os cabelos.Memórias de um passado, vivido nessas mesmas condições por mim, vieram à tona, mas logo se dissiparam quando levei um esbarrão e acabei no chão. A jovem ficou sem graça e ajudou-me a levantar.— Desculpe, não queria derrubar você. — Falou a adolescente, com no máximo quinze anos.— O que está acontecendo aqui? Vocês parecem loucas. — Falei, me levantando irritada.— O ator Jack Alton está no hotel e irá sair para passear. É a chance de vê-lo mais de perto. Desculpe mais uma vez. — Pediu a garota.— Tudo bem, sem problema. Só te dou um conselho, pare de viver essa ilusão. — Disse já atravessando a rua para subir pela rota alternativa, rua lateral à direita do hotel, onde não havia ninguém. Tive uma vontade louca de falar sobre as táticas que os atores usavam para enganar as fãs, do tipo daquela que me empurrou. Só não o fiz, pois eu já dera o recado, não a queria deixar mais decepcionada com a realidade por detrás dos bastidores.Subi pela lateral do Ritz. A intenção era contornar o hotel e voltar para a praia, pela outra rua lateral, onde talvez não houvesse mais aglomeração. Logo que passei pela garagem, um carro em alta velocidade saiu e virou no sentido contrário ao meu. O que me chamou a atenção foi a freada brusca que o motorista deu logo após virar à direita. Aproveitei, até por curiosidade, para ver se algo acontecera, para amarrar os cadarços e me abaixei.
Parei, olhei para trás, mas os vidros pretos me impediam de ver qualquer pessoa no interior do veículo. Depois de arrumar o calçado, o que demorei um pouco mais do que o normal, segui o caminho. Ainda faltavam 4 km para completar o percurso. Falei para Candance: “que era só dois”, mas senti a necessidade de correr muito mais do que isso. A adrenalina estava nas alturas, além de uma suspeita estranha em relação ao automóvel que ficou ali parado por breves segundos. A sensação foi ruim e, ao mesmo tempo, de uma saudade estranha. "O que poderia ser?" Foi a pergunta que fiz, durante todo o percurso.Acordei sem ânimo no dia da viagem para Cannes, na França. Pietra, a mais nova namorada e atriz também, sem projeção ainda, estava apenas como acompanhante e, para se mostrar ao mundo, ao meu lado, queria aproveitar para fazer um tour pela Europa. Eu estava com o coração apertado, embora não conseguisse explicar o porquê. Tinha sido indicado ao prêmio de melhor ator no festival pelo meu último filme. Isso poderia me consagrar ainda mais, apesar de já ter uma carreira consolidada e dinheiro para várias gerações. Mas, desde o dia em que saiu a lista com os indicados, mesmo que a felicidade inicial tenha surgido, o coração também se apertou. Lembro que estava em casa sozinho. Deu uma vontade louca de beber um whisky, vício que adquiri, depois de algumas decepções, mas que com a correria de gravações e algumas críticas ruins, fizeram eu minimizar. Fui até o bar, peguei a garrafa mais cara e abri. Por sorte, Pietra estava arrumando os últimos detalhes para a viagem, e eu também não a dei
Enquanto corria pela rua deserta, vi um carro sair pelos fundos. Era a cena que revivia a cada minuto antes de chegar em casa. Com a multidão na frente, fui obrigada a desviar do caminho. Maldita hora, pois a dedução de que o carro era de Jack se confirmou com a freada brusca que ele deu assim que passei.Tentei disfarçar, mostrando meu cabelo loiro escuro e longo, bem diferente da Sara que existiu um dia. Cheguei em casa uma hora depois. Candance estava esparramada no meu sofá. Certamente o plantão foi exaustivo, embora ela tenha dito que foi tranquilo apenas para me tranquilizar. Por isso, após tomar o meu café, não consegui levá-la para o andar de cima. Só a cobri para que ficasse mais confortável.A ansiedade gerada pelo medo de ser descoberta passou. Consegui afastar esses pensamentos ruins. O carro misterioso havia seguido seu caminho. Procurei fazer outras coisas dentro da rotina em dias normais: ler, estudar, cozinhar — uma das grandes paixões que adquiri. Enquanto minha amiga
Engoli em seco e o estômago borbulhou ácidos por todas as paredes. Respirei profundamente e recuperei a razão, mais uma vez. — Ele ficará sem poder receber visitas por 72 horas, senhor Johny.— Sim, eu entendo. O irmão e ele são muito unidos e tenho certeza de que ele virá assim mesmo. E tenho certeza de que obedecerá a qualquer ordem que venha da senhora.“Isso eu já não sei” — foi o primeiro pensamento que passou pela cabeça — “ele me odeia, tenho certeza disso”Espantei esse pensamento, balancei a cabeça e pedi licença. Nessa hora é que no banheiro chorei ainda mais e vomitei toda a angústia. O que eu iria fazer? O irmão de Jack me conhecia. Eu era a neurologista chefe e não tinha mais férias para tirar naquele ano. Fugiria de novo, mas como?O desespero tomou conta de mim. Saí do hospital sozinha, de madrugada. Dirigi sem rumo. Cheguei em casa e me tranquei no quarto. Debaixo do edredom, continuei a chorar.JackAlgumas horas antes…Perdi a conta de quantas vezes Pietra perguntou
Eu já havia perdido a noção do tempo. O quarto estava mergulhado na escuridão, as persianas desempenhando sua função, e eu me encontrava debaixo do edredom. Sentia-me como um avestruz, evitando encarar a realidade. A situação estava tão caótica que mal percebi a porta se abrir, e Candance me abraçou por cima das cobertas. — O que está acontecendo, Lily? Te viram sair do hospital correndo e chorando. — Indagou ela, preocupada. Removi a manta, me sentei na cama e abracei minhas pernas. — Estou desesperada, sem saber o que fazer. — Você cometeu algum erro médico? Perdeu algum paciente? Só ouvi elogios sobre você. Mulher, você salvou a vida do ator famoso. — Ponderou minha amiga, buscando entender. Entrei em prantos em meio a soluços compulsivos. Candance correu para buscar uma toalha e me abraçou com mais firmeza. Após me acalmar e sentir-me mais protegida, percebi que era hora de revelar meu segredo. — Preciso contar uma história do passado. Aconteceu bem antes de nos conhecermos.
Após sair da UTI, verificar os sinais vitais de Jack mais uma vez, me dirigi um pouco para a sala médica, onde tentaria descansar. Não queria ir embora, estava angustiada, com medo de que o paciente pudesse ter uma recaída durante a noite. Entrei, sem vontade para nada, tentei descansar um pouco, encostada na cabeceira da cama de solteiro, mas a agitação não me permitiu. Foi quando vi, na pequena cômoda que abrigava um computador, uma luminária e o controle da televisão. Levantei-me e o busquei, na clara intenção de encontrar um canal de comédias, ou filmes mais alegres, que pudessem me alegrar um pouco. Estava difícil, cliquei os dedos por vários e nada, até que uma reportagem, de um canal americano, me chamou a atenção e fez eu parar para ver a cena.Inúmeras pessoas estavam aglomeradas no aeroporto de Los Angeles. Adolescentes, jovens, adultos, esperavam o avião abrir a saída de emergência, para a retirada do corpo da atriz Pietra Streep, que morrera no acidente de carro na estrada
Quando a porta do escritório do diretor foi aberta e eu a vi, uma tempestade de emoções invadiu o meu interior. A raiva pulsava em minhas veias, uma vontade incontrolável de esmurrá-la, de liberar toda a frustração acumulada ao longo dos anos. Ela havia abandonado Jack, meu irmão, sem explicação, deixando cicatrizes profundas na sua alma.Apesar de tudo, uma onda de saudade me envolvia. Era como se o tempo tivesse retrocedido e me transportado para os momentos em que éramos uma família unida. Ela fez parte da nossa história e, de alguma forma, mesmo que contraditória, também teve um papel crucial em salvar meu irmão.À medida que eu perguntava de forma mecânica, a médica, a antiga companheira de Jack, respondia a todas as perguntas. No entanto, o que eu realmente queria perguntar não pode ser feito ali. Quando ela saiu correndo, uma sensação de choque envolveu meu ser. Deus, eu estava tão nervoso que não conseguia dizer seu nome. Um nome que, curiosamente, era falso; sempre a conheci
Não tinha forças nem para beber água quando cheguei em casa. A comida também revirava no estômago. A vontade era de sumir, desaparecer do mapa, como em um passe de mágica. Enviei uma mensagem para minha amiga relatando o terrível encontro com Jeremy, e ela respondeu que o levou para o hotel. — Como ele estava Candance?— Uma pilha de nervos. Tive que sair escondida do hospital, e o levei ao hotel.— Oh, Deus, por que isso tudo está acontecendo agora? Já se passaram quinze anos.— Porque talvez chegou a hora de vocês se encontrarem.— E se eu não estiver preparada para encarar essa realidade?— Se for para você encarar, a Lily que conheço, mulher forte, poderosa, irá encontrar a melhor maneira.— Vou tentar dormir.— Vá e consiga. Amanhã será um longo dia.A noite foi tensa. Sonhei com o acidente de carro, com Jeremy contando para Jack, e ele me acusando de ter causado o acidente quando me viu correndo pela rua. Quando senti os primeiros raios de sol, fiquei feliz por acordar viva.
Depois de duas taças de vinho, senti-me um pouco mais segura. Precisava liberar a energia ruim que me sufocava há mais de 15 anos. — Candance, a parte de como conheci Jack, já contei. Assim sendo, vou começar a parte ruim. Ela pegou-me na mão, sentiu que precisava passar para mim toda a energia da grande amiga que ela era.— Conte, sem cortes, vou ficar assim, pregada em suas mãos, a dando força.— Obrigada — respirei profundamente antes de começar. — Depois do sucesso do primeiro filme em que atuei com Jack, a mídia começou a focar em mim. Jovem, talentosa, atraente — falei sorrindo para quebrar o clima tenso. — Quatro meses depois, fui procurada pelos assessores de Ferguson. Eles me chamaram para uma reunião. A felicidade não cabia dentro de mim. Estava na mídia e sendo chamada pelo magnata do cinema… era tudo o que eu precisava. Diante da grande expectativa gerada naquele momento, não achei estranho que a reunião fosse agendada para a residência dele e não para o escritório. Como