Enquanto corria pela rua deserta, vi um carro sair pelos fundos. Era a cena que revivia a cada minuto antes de chegar em casa. Com a multidão na frente, fui obrigada a desviar do caminho. M*****a hora, pois a dedução de que o carro era de Jack se confirmou com a freada brusca que ele deu assim que passei.
Tentei disfarçar, mostrando meu cabelo loiro escuro e longo, bem diferente da Sara que existiu um dia. Cheguei em casa uma hora depois. Candance estava esparramada no meu sofá. Certamente o plantão foi exaustivo, embora ela tenha dito que foi tranquilo apenas para me tranquilizar. Por isso, após tomar o meu café, não consegui levá-la para o andar de cima. Só a cobri para que ficasse mais confortável.A ansiedade gerada pelo medo de ser descoberta passou. Consegui afastar esses pensamentos ruins. O carro misterioso havia seguido seu caminho. Procurei fazer outras coisas dentro da rotina em dias normais: ler, estudar, cozinhar — uma das grandes paixões que adquiri. Enquanto minha amiga roncava, fiz um bolo e uma carne assada para o almoço.O aroma a despertou por um instante, mas logo ela pegou no sono de novo. Só fomos conversar e almoçar quase às quatro da tarde.— Acordou, bela adormecida. Nem o assado de hoje, dourado no alho, te acordou.— O plantão foi tenso, muito tenso.— Agora falou a verdade. Imaginei quando a vi estirada no sofá. Amanhã é o meu dia. Trinta e seis horas dentro de um hospital. — Falei, servindo um pedaço de carne.— Não queria que se preocupasse comigo. Parece um carma, todo plantão, meu, é um caos. — Não é só você, também já tive alguns terríveis. — Você demorou na corrida.— Mais do que o normal e sabe por quê? O ator, ídolo de fãs enlouquecidas, está hospedado no Ritz, na praia. A porta do hotel estava lotada, tive que dar a volta por trás.— Aquele gatão saiu na janela — perguntou Candance, piscando os olhos como o gato de botas — Se eu soubesse, tinha corrido com você.— Não, mas se ele saiu, foi em um carro preto escondido e pela saída da garagem dos fundos, mas — falei, batendo na mão dela. — Antes que pergunte, não deu para ver ninguém. O insulfilme do carro era muito escuro.— Hum — reclamou a médica, fazendo um beicinho — Vou relevar, pois a sua comida faz até eu esquecer do gatão Jack Alton.Ela era a alegria em forma de gente. Apesar de se intitular francesa, na verdade, era também inglesa. Lutou para fazer o curso de medicina e, com mérito, tornou-se chefe do departamento de cardiologia do hospital. Meu coração, por vezes, amargurava-se por não poder compartilhar o segredo que guardava. Isso era particularmente difícil quando ela falava do ator como fã incondicional.Após o almoço, ela subiu para casa. Arrumei a cozinha e, já de pijama, deitei-me na cama com um bom livro relaxante. O telefone tocou por volta das oito da noite e era do hospital. Quando me ligavam no meu dia de folga, certamente era por causa de algum paciente que estava mal.
— Alô, Lily falando.— Dr.ᵃ , desculpe ligar na folga, mas temos um caso cirúrgico urgente. A família quer o melhor neurologista, e a única que conheço aqui em Cannes é a senhora.— Estou indo. Já façam uma ressonância de urgência. Em quinze minutos estarei aí, levarei à cardiologista também.Arranquei Candance da cama. Éramos loucas por uma cirurgia, não importava o cansaço, sempre deixávamos o descanso de lado. Logo que entrei no hospital, percebi uma aglomeração de médicos. Discutiam diagnósticos, falavam de um acidente e do procedimento a ser tomado. Não consegui entender muita coisa.Lacan, o diretor do centro médico que me ligara, fez um sinal para que eu e Candance nos aproximássemos.— Que bom que atenderam ao chamado — falou o médico, limpando o suor do rosto. — Houve um acidente com o ator Jack Alton. Ele está com hemorragia cerebral e traumatismo. A namorada chegou viva, mas acaba de falecer. Preciso das duas agora no centro cirúrgico. Ele já está preparado e os exames estão na sala.As minhas pernas pareciam gelatina e não respondiam. O único pensamento era salvar o homem que amei e ainda amava, já o outro pensamento era se daria conta.
Fui me preparar, higienizar. Parecia um autômato. Candance só não percebeu porque também estava ligada no automático. Quando o vi deitado naquela mesa, a vontade era chorar e gritar. Respirei profundamente e, antes de iniciar, pedi que colocassem uma música. Todos se espantaram, pois eu alegava não gostar de música clássica, mas o paciente amava Vivaldi e merecia. Durante as próximas cinco horas, usei toda a técnica mental, espiritual e física, além da médica, para salvá-lo.A cardiologista saiu tão esgotada que foi para o quarto dos médicos e dormiu. Entrei no banheiro e sentada no chão, sem pudor algum ou qualquer medo de que me vissem, chorei, mas não antes de avisar ao responsável. Cheguei à recepção, onde havia uma multidão de repórteres e perto um homem magro, alto, loiro, olhos verdes — bem clichê. Deduzi que fosse o assessor de Jack. Não era o mesmo da minha época. Mesmo assim, arrisquei ser reconhecida caso Jack ainda tivesse alguma foto ou memória minha na casa dele.O homem se virou na minha direção e caminhou até onde eu estava. A imprensa tentou acompanhar, mas ele fez um gesto ríspido e chegou sozinho.— Doutora, como Jack está? Não minta, por favor.— Senhor…— Johny. Pode me chamar assim.— Johny, — falei sem graça — o paciente ainda corre perigo. As próximas setenta e duas horas são cruciais. Ele teve uma hemorragia cerebral e traumatismo craniano. A cirurgia foi um sucesso, depende dele reagir e querer viver.— Posso vê-lo, doutora.— Só pelo vidro. Acompanhe-me, por favor.Levei-o até a UTI n.º 03 e mostrei Jack deitado, com a cabeça enfaixada e ligado a aparelhos.— Vou ligar para o irmão dele. Está desesperado.Engoli em seco e o estômago borbulhou ácidos por todas as paredes. Respirei profundamente e recuperei a razão, mais uma vez. — Ele ficará sem poder receber visitas por 72 horas, senhor Johny.— Sim, eu entendo. O irmão e ele são muito unidos e tenho certeza de que ele virá assim mesmo. E tenho certeza de que obedecerá a qualquer ordem que venha da senhora.“Isso eu já não sei” — foi o primeiro pensamento que passou pela cabeça — “ele me odeia, tenho certeza disso”Espantei esse pensamento, balancei a cabeça e pedi licença. Nessa hora é que no banheiro chorei ainda mais e vomitei toda a angústia. O que eu iria fazer? O irmão de Jack me conhecia. Eu era a neurologista chefe e não tinha mais férias para tirar naquele ano. Fugiria de novo, mas como?O desespero tomou conta de mim. Saí do hospital sozinha, de madrugada. Dirigi sem rumo. Cheguei em casa e me tranquei no quarto. Debaixo do edredom, continuei a chorar.JackAlgumas horas antes…Perdi a conta de quantas vezes Pietra perguntou
Eu já havia perdido a noção do tempo. O quarto estava mergulhado na escuridão, as persianas desempenhando sua função, e eu me encontrava debaixo do edredom. Sentia-me como um avestruz, evitando encarar a realidade. A situação estava tão caótica que mal percebi a porta se abrir, e Candance me abraçou por cima das cobertas. — O que está acontecendo, Lily? Te viram sair do hospital correndo e chorando. — Indagou ela, preocupada. Removi a manta, me sentei na cama e abracei minhas pernas. — Estou desesperada, sem saber o que fazer. — Você cometeu algum erro médico? Perdeu algum paciente? Só ouvi elogios sobre você. Mulher, você salvou a vida do ator famoso. — Ponderou minha amiga, buscando entender. Entrei em prantos em meio a soluços compulsivos. Candance correu para buscar uma toalha e me abraçou com mais firmeza. Após me acalmar e sentir-me mais protegida, percebi que era hora de revelar meu segredo. — Preciso contar uma história do passado. Aconteceu bem antes de nos conhecermos.
Após sair da UTI, verificar os sinais vitais de Jack mais uma vez, me dirigi um pouco para a sala médica, onde tentaria descansar. Não queria ir embora, estava angustiada, com medo de que o paciente pudesse ter uma recaída durante a noite. Entrei, sem vontade para nada, tentei descansar um pouco, encostada na cabeceira da cama de solteiro, mas a agitação não me permitiu. Foi quando vi, na pequena cômoda que abrigava um computador, uma luminária e o controle da televisão. Levantei-me e o busquei, na clara intenção de encontrar um canal de comédias, ou filmes mais alegres, que pudessem me alegrar um pouco. Estava difícil, cliquei os dedos por vários e nada, até que uma reportagem, de um canal americano, me chamou a atenção e fez eu parar para ver a cena.Inúmeras pessoas estavam aglomeradas no aeroporto de Los Angeles. Adolescentes, jovens, adultos, esperavam o avião abrir a saída de emergência, para a retirada do corpo da atriz Pietra Streep, que morrera no acidente de carro na estrada
Quando a porta do escritório do diretor foi aberta e eu a vi, uma tempestade de emoções invadiu o meu interior. A raiva pulsava em minhas veias, uma vontade incontrolável de esmurrá-la, de liberar toda a frustração acumulada ao longo dos anos. Ela havia abandonado Jack, meu irmão, sem explicação, deixando cicatrizes profundas na sua alma.Apesar de tudo, uma onda de saudade me envolvia. Era como se o tempo tivesse retrocedido e me transportado para os momentos em que éramos uma família unida. Ela fez parte da nossa história e, de alguma forma, mesmo que contraditória, também teve um papel crucial em salvar meu irmão.À medida que eu perguntava de forma mecânica, a médica, a antiga companheira de Jack, respondia a todas as perguntas. No entanto, o que eu realmente queria perguntar não pode ser feito ali. Quando ela saiu correndo, uma sensação de choque envolveu meu ser. Deus, eu estava tão nervoso que não conseguia dizer seu nome. Um nome que, curiosamente, era falso; sempre a conheci
Não tinha forças nem para beber água quando cheguei em casa. A comida também revirava no estômago. A vontade era de sumir, desaparecer do mapa, como em um passe de mágica. Enviei uma mensagem para minha amiga relatando o terrível encontro com Jeremy, e ela respondeu que o levou para o hotel. — Como ele estava Candance?— Uma pilha de nervos. Tive que sair escondida do hospital, e o levei ao hotel.— Oh, Deus, por que isso tudo está acontecendo agora? Já se passaram quinze anos.— Porque talvez chegou a hora de vocês se encontrarem.— E se eu não estiver preparada para encarar essa realidade?— Se for para você encarar, a Lily que conheço, mulher forte, poderosa, irá encontrar a melhor maneira.— Vou tentar dormir.— Vá e consiga. Amanhã será um longo dia.A noite foi tensa. Sonhei com o acidente de carro, com Jeremy contando para Jack, e ele me acusando de ter causado o acidente quando me viu correndo pela rua. Quando senti os primeiros raios de sol, fiquei feliz por acordar viva.
Depois de duas taças de vinho, senti-me um pouco mais segura. Precisava liberar a energia ruim que me sufocava há mais de 15 anos. — Candance, a parte de como conheci Jack, já contei. Assim sendo, vou começar a parte ruim. Ela pegou-me na mão, sentiu que precisava passar para mim toda a energia da grande amiga que ela era.— Conte, sem cortes, vou ficar assim, pregada em suas mãos, a dando força.— Obrigada — respirei profundamente antes de começar. — Depois do sucesso do primeiro filme em que atuei com Jack, a mídia começou a focar em mim. Jovem, talentosa, atraente — falei sorrindo para quebrar o clima tenso. — Quatro meses depois, fui procurada pelos assessores de Ferguson. Eles me chamaram para uma reunião. A felicidade não cabia dentro de mim. Estava na mídia e sendo chamada pelo magnata do cinema… era tudo o que eu precisava. Diante da grande expectativa gerada naquele momento, não achei estranho que a reunião fosse agendada para a residência dele e não para o escritório. Como
Naquele dia, minha amiga parecia diferente, mas eu tinha preocupações maiores naquele momento. Ignorei essa agonia incontida. Precisava enfrentar Jeremy mais uma vez, e ele já estava à minha espera.Bati na porta, e ele mesmo a abriu a pedido do chefe. — Bom dia. Desculpe o atraso. Não sabia que tinha reunião agendada para hoje de manhã. — Não tínhamos mesmo, mas o Dr. Wallace, — disse Jeremy, apontando para um médico mais velho, alto, de cabelos grisalhos encostado na janela, admirando o mar — chegou e quer conversar com a doutora. — Dr. Wallace, é um prazer. — O prazer é meu, doutora. Não nego, estou espantado com o quanto é jovem e já tem um currículo invejável. — Gosto de estudar bastante. O senhor já está de posse do prontuário?— Ainda não. Preferi aguardá-la. — Vamos ver o paciente e lhe explicarei os procedimentos que fiz. Pedi licença e saímos da sala, acompanhados pelo médico americano. Subimos ao quarto andar e o levei até o leito de Jack. Com o tablet em mãos, mostr
Durante o dia, não toquei no papel que estava no bolso. Almocei com Lily, o que não foi bom. Olhar para ela fazia-me ter ainda mais vontade de ligar para os promotores de justiça americanos. Essa era a minha ideia, desde que, na sala médica, assisti a mais um testemunho de outra modelo. O medo que me torturava era o receio de perder aquela amizade tão valiosa. A vontade aumentava à medida que eu pensava no quão triste ela estava ao se despedir de Jack. Realizei uma cirurgia de emergência à tarde, que durou duas horas. Após um breve descanso, vi Lily entrando na ambulância para acompanhar Jack até o aeroporto. Quando o carro ligou a sirene, a vontade voltou com força total, ainda mais quando ela me olhou, antes da porta de trás se fechar, e vi o semblante triste dela. Num impulso, corri até um lugar onde não seria descoberta, peguei o telefone e disquei o número sem pensar. — Alô, gabinete do procurador Dawson Thomas. — Boa tarde, meu nome é Candance. Preciso muito falar com o procu