Capítulo 1

Dias atuais

Lavínia

Estava entediada, muito entediada.

Quando decidi ficar em tempo integral na loja de cristais da vovó, nem me passou pela cabeça que permanecer o dia inteiro trabalhando no lugar que mais amava no mundo fosse me deixar profundamente aborrecida.

Com o final no ano letivo, poderia ter ido para as montanhas com Jacob e alguns dos alunos da turma, fazendo trilhas e um monte de coisas legais para pessoas aventureiras; o que não era o meu caso.

Seria como uma despedida, antes de cada um seguir seu caminho em faculdades diferentes. Por mais que diga a mim mesma que só não fui com eles por não ser “aventureira”, na verdade, não queria passar duas semanas, presa a algumas das pessoas que costumavam chamar minha vó de bruxa na escola. Tudo bem, que ela era peculiar, com sua loja de cristais e ervas, que segundo ela, eram milagrosas.

Minha avó Clara não ligava, mas me doía quando ouvia alguém chamá-la assim. Uma vez perguntei como ela não se importava com isso, ela sorriu carinhosamente e disse que não estávamos mais no caça às bruxas e as pessoas podiam chamá-la do que bem-quisessem, mas no final, sempre acabavam procurando por ela, precisando de ajuda.

Meu pai morreu quando mamãe estava grávida e mamãe se juntou a ele, quando nasci, deixando-me aos cuidados dos meus avôs, eles sempre foram carinhosos e me criaram com muito amor. Quando tinha dez anos meu avô faleceu. Lembro-me vagamente do momento triste, o dia estava chuvoso como se alguém lá de cima estivesse chorando a nossa dor.

Cresci praticamente dentro da loja de cristais e amava o lugar. O cheiro das ervas, o calor que provinha das pedras que estavam expostas, o aroma de incenso que ela sempre acendia antes de abrir a loja.

Vovó também fazia visitas em casa, com sua bolsa de crochê estampada, carregando seus bens mais preciosos; as cartas de tarô, sua pequena bola de cristal, um pano com estampas estelares e o seu diário que a acompanhava em todos os lugares. 

Quando estava na escola, ela marcava essas visitas em horários que eu pudesse estar na loja e agora que optei por um ano sabático, sem ter noção de qual carreira seguir e para qual faculdade ir, ela passava o dia inteiro correndo de um lado a outro, feliz com o dinheiro extra, uma parte dele depositado todo o mês para o fundo que criou quando eu ainda era um bebê para poder ir para faculdade.

Quando comentei que queria passar o próximo ano com ela na loja, pensei que fosse decepcioná-la por ainda não ter traçado todo meu futuro como meus amigos. Ela apenas sorriu e me envolveu em seus braços em um abraço apertado.

— Quando estiver pronta, querida. — ela murmurou. — Uma mão extra na loja vai ser bem-vinda. — completou com uma piscadela.

Agora ali estava, sentada em uma cadeira de palha escondida atrás do balcão tentando me concentrar no livro de romance em minhas mãos. Minha concentração estava no espaço e não conseguia prestar atenção em nenhuma linha, tendo que reler o mesmo parágrafo várias vezes.

Poderia ter ido para a casa de praia com Milena, ela me convidou muitas vezes, mas recusei, considerando que tinha pouco mais de um mês que eu e Matty tínhamos terminado, Seria estranho passar duas semanas com a família dele, apesar de continuarmos amigos, optei por não ir. Se fosse honesta comigo mesma, estava profundamente arrependida. Passar um tempo preguiçoso na praia com Mi parecia muito atrativo agora.

Larguei o livro embaixo do balcão e o troquei pelo espanador. O tédio estava me matando e uma inquietação estranha se alojava em meu peito me fazendo bufar irritada.

Sai caminhando pela loja, espanando e tirando o pó de onde não havia pó, apenas para ter o que fazer.

Normalmente a loja me dava uma sensação de paz e calmaria, mas não hoje.

Olhei para o relógio de coruja acima da porta e marcava pouco mais de três horas da tarde. Vovó tinha ido fazer três visitas e fiquei para fechar a loja às sete. Soltei um suspiro para lá de frustrado. Tinha um longo tempo antes de encerrar a tortura.

Concentrei-me na minha tarefa de limpar e espanar, tomando o devido cuidado com cada peça. Segundo vovó, cada um dos objetos que tinha ali, era sagrado e, deveria ser tratado com carinho e respeito. Não pude evitar revirar os olhos quando ela me disse isso.

Apesar de ser chamada “Loja de Cristais.” havia muitas outras coisas na loja. Perfumes afrodisíacos que vovó preparava. Poções de cura, da felicidade, esperança. Ervas aromáticas, incensos, velas, chás medicinais, entre outras coisas.

De tudo que tinha ali, o que mais gostava era das pedras preciosas e é claro; dos cristais. Algumas das pedras estavam presas por colares que vovó fazia, pulseiras ou anéis. Outras estavam expostas em vidros diferentes, de acordo com seu significado. As maiores e com mais “poder” segundo vovó, ficava dentro de um balcão de vidro, protegido.

O tilintar dos cristais na entrada batendo um no outro, foi o aviso da chegada  de um cliente. Larguei o espanador e me virei, esperando ser alguém amigável que estivesse com vontade de conversar para deixar meu dia menos entediante.

A porta ainda estava aberta e uma lufada de vento quente bateu em meu rosto, empurrando os fios de cabelos que se desprenderam do meu rabo de cavalo, cobrindo parcialmente meus olhos.

Empurrei os fios atrás da orelha e ergui a cabeça para receber o cliente.

— O que posso... — As palavras morreram em meus lábios quando me vi diante do sujeito grande cobrindo todo o espaço. Ele estava parado na porta ainda aberta, como se estivesse enraizado no chão. Deslizei meus olhos desde a bota de couro, pelas calças jeans desbotada, até seu rosto.

Ele era alto, a julgar por sua cabeça chegando quase à altura do batente da porta. Seus músculos se destacavam e pareciam prestes a saltar da camisa branca. Quando meus olhos se focaram nos seus, o tempo pareceu parar e o ar ficou retido em meus pulmões. Senti-me mergulhar e afundar nas profundezas cinzentas, meu coração bateu tão forte que podia senti-lo contra a caixa torácica, meu estômago deu um nó e borboletas se agitaram incontrolavelmente em meu interior.

Ele deu um passo à frente, deixando a porta se fechar as suas costas. Soltei o ar lentamente conforme ele se aproximava.

Estava congelada no chão, me sentindo incapaz de me mover diante do olhar abrasador que me fitavam de forma febril, fazendo com que me sentisse uma presa diante de um predador. Suas narinas pareciam dilatadas e podia jurar que estava farejando o ar.

Ele parou a um passo de distância, tão perto que podia ver os traços de seu rosto.

Ele era bonito, não... ele era lindo, de uma beleza quase surreal demais. Seus cabelos da altura do ombro e perguntei-me se eram tão suaves quanto pareciam. A face bronzeada parecia esculpida em mármore, detalhadamente trabalhado por um exímio escultor. No canto de seus lábios havia uma pequena cicatriz que o deixava, como se isso fosse possível, ainda mais belo.

Engoli em seco e contive o fôlego quando ele capturou uma das mexas soltas do meu cabelo e levou ao nariz inalando profundamente. Seus olhos se fecharam e um rosnado baixo retumbou das profundezas de seu peito e isso pareceu se conectar a todas as partes do meu corpo, como um ímã magnético. O som quase animalesco que soou de seus lábios parcialmente abertos, me fez dar um passo à frente inconscientemente, como se estivesse sendo movidas pelas cordas de um fantoche.

Um calor abrasador me envolveu por completo, como se estivéssemos nos tocando, apesar de a única parte era a mexa do meu cabelo que continuava entre seus dedos e as sandálias que tocavam a ponta de sua bota.

Seus olhos se abriram de repente e por um segundo podia jurar que eles brilhavam na luz tênue da loja de cristais. Ele piscou algumas vezes e soltou meu cabelo, dando dois passos largos para trás. No mesmo instante, o calor que parecia me envolver se dissipou.

 Ele pigarreou como estivesse tentando recuperar sua voz. Eu nem sabia por onde andava a minha, tamanha confusão em minha mente.

— Quem é você? — perguntou. Sua voz era grossa e rouca e por um momento desejei fechar os olhos e pedir que ele continuasse falando só para me deliciar com o som.

Depois do que pareceu uma eternidade consegui responder com a voz embargada.

— Trabalho aqui. Está procurando alguma coisa especial? — Consegui dizer por fim, orgulhosa por ter conseguido falar uma frase inteira sem parecer uma completa idiota.

Ele me analisou por alguns instantes que pareceu durar uma eternidade, mas sei que não pode ter se passado mais que meros segundos.

— Estou procurando a Clara, suponho que você não seja ela, afinal não parece ter setenta anos — gracejou com um pequeno sorriso, que fez as borboletas se agitarem descontroladamente em meu estômago.

— Tenho dezoito anos. — Algum motivo desconhecido me fez revelar a minha idade, as palavras simplesmente saltaram de minha boca antes que pudesse detê-las.

Os cantos de sua boca se curvaram em um sorriso torto.

— Eu vinte e quatro, não que isso faça diferença de qualquer forma. — A maneira como me olhou ao dizer isso, fez parecer haver algo oculto por trás dessas palavras. Ignorando isso, voltei a questão que o trouxe até ali.

— Minha avó não vai voltar para loja hoje. Se quiser, pode retornar amanhã ou deixar seu telefone que peço a ela para entrar em contato — ofereci gentilmente.

Ele fez uma careta estranha.

— Você é neta da Clara? — A pergunta saiu de seus lábios com um rosnado, como se ser neta da minha avó fosse alguma ofensa ou coisa parecida.

— Sim, foi isso o que eu disse.— respondi de forma fria, cruzando os braços em frente ao peito.

Seus olhos cinzentos prenderam-se aos meus de forma tão intensa que cada milímetro da loja de cristais pareceu ser preenchido por sua forte presença, podia jurar que podia senti-lo mesmo a essa distância, como se de alguma forma meu corpo se acendesse como as chamas das velas aromáticas espalhadas pelo ambiente.

— Apenas diga a ela que os Lýkos estão na cidade — murmurou, antes de virar-se e sair da loja, sem fazer ruído, a não ser o tilintar dos cristais balançando quando abriu a porta para passar.

Cravei o olhar em suas costas largas através das portas de vidro, enquanto ele caminhava até o outro lado da rua e subia em uma moto vermelha com preto.

Continuei observando fascinada quando montou na coisa mortal. Ele virou a cabeça em minha direção e novamente quando nossos olhos se encontraram eu senti algo que nunca havia sentido, algo inexplicável. Minha boca estava tão seca quanto o deserto, meu coração retumbava como tambores em meu peito, com uma força sobre-humana afastei meus olhos dos seus. Só voltei a respirar normalmente, alguns minutos depois de ouvir o ruído rouco do motor da moto se afastando.

Cai sentada na cadeira de palha, sentindo minhas pernas moles como gelatina. O que diabos, foi isso que acabou de acontecer aqui?

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