Ela estava atrasada. De novo.
— Droga! — sussurrou, enquanto enfiava os pés nos sapatos molhados que havia deixado na entrada de casa. Quando finalmente chegou ao portão de ferro da mansão dos Trajanos, Rosa já estava completamente molhada. O vento e a chuva haviam transformado seu coque em uma confusão de fios que caíam sobre seu rosto. Suas roupas coladas ao corpo, e seus pés encharcados, pareciam esponjas. “Por que estou atrasada mesmo? Ah, claro, o despertador não tocou, a conta de energia estava atrasada, e a luz foi cortada na noite anterior. ...” – ela pensava. Ao colocar sua bicicleta no canto do jardim lateral, Rosa correu para a porta de serviço. Não queria ser vista pela senhora Trajano naquele estado miserável, mas seu plano foi destruído assim que ouviu uma voz cortante ecoar do alto da escadaria. — Está atrasada, de novo! — A senhora Trajano apareceu, como sempre, com o olhar cheio de desdém. Vestida com seu roupão de seda caro, seus cabelos brancos perfeitamente arrumados, ela descia as escadas como se fosse uma rainha a inspecionar seu reino. — Você acha que esse comportamento é aceitável? Como espera manter esse trabalho se nem consegue chegar no horário, menina? — Desculpe, senhora Trajano. A chuva estava forte, e... — tentou explicar, mas a velha nem a deixou terminar. — Chuva? Sempre uma desculpa. Parece que pessoas da sua... condição... sempre têm algo a culpar. — Ela desceu o último degrau da escada, sua expressão de desdém se intensificando à medida que avaliava a aparência de Rosa. — Olhe para você. Parece uma ratinha molhada. — Trajano deu uma risada curta e amarga. — Se você não sabe administrar o tempo, quem sabe possa investir em um transporte melhor do que essa bicicleta velha. — sua voz era cortante como gelo, enquanto os olhos afiados examinavam Rosa. Rosa apertou os punhos por dentro do casaco. Sabia que, se respondesse à altura, as consequências seriam desastrosas. E ela precisava daquele emprego, por mais humilhante que fosse. Todo seu dinheiro ia para os remédios de sua mãe e as despesas da casa que com muito custo ela sustentava após o seu pai, um alcoólatra, ter abandonado a família definitivamente depois que a mãe foi diagnosticada com um câncer. — Sim, senhora. Vou me apressar. Virando-se rapidamente, Rosa se trocou e foi direto para a despensa pegar os produtos de limpeza. Ao retornar à sala de estar para começar a limpeza, a voz da velha voltou a ecoar pela mansão: — Rosaaa! Quando terminar aí, vá limpar o escritório do meu filho. Ele deve chegar de viagem, e quero que tudo esteja impecável! E lembre-se, não toque em nada. Não quero que você bagunce as coisas, sei que pessoas como você não sabem o que é sofisticação. A velha Trajano saiu, deixando o eco de suas palavras no ar. “Pessoas como eu?” – Pensou. “Você não sabe nada sobre mim, e, ele nunca vem para esta casa mesmo, muito menos para este escritório, ela sempre fala a mesma coisa” – sussurrou. Ela terminou a sala o mais rápido que pôde, mas sem descuidar dos detalhes. Não queria ouvir outra série de críticas sobre sua “falta de dedicação” ou, como a velha costumava dizer, “falta de jeito para o serviço”. A caminho do escritório do filho, o poderoso Ricardo Trajano, Rosa pensava nas histórias que ouvira sobre ele. O filho ausente, o magnata que viajava pelo mundo, controlando empreendimentos, jatinhos, e a admiração da velha Trajano. Todos naquela casa falavam dele como se fosse uma lenda, alguém inalcançável, cuja sombra, na cabeça de Rosa, ela nunca cruzaria. Ela mal sabia que aquele homem, que ela ainda não conhecia, teria o controle sob ela. Ao chegar no topo da escada, parou por um momento diante da porta do escritório. Era sempre uma experiência estranha entrar naquele ambiente, talvez fosse o fato de que o filho nunca estava ali, mas seu espaço era tratado como um santuário sagrado. O escritório parecia saído de uma revista de decoração cara: prateleiras cheias de livros enfileirados, que, provavelmente nunca foram lidos, um tapete que custava mais do que ela poderia ganhar em um ano, e aquela mesa brilhando. Rosa puxou o balde e os panos, tentando não pensar muito na desigualdade gritante que aquela sala representava. Ao passar o pano sobre a mesa, algo chamou sua atenção. Um pequeno quadro pintado a mão, colocado em cima de uma pilha de papéis. Rosa pegou delicadamente o quadro e ficou observando, por alguns segundos, os traços da pintura. "Ah, se a minha vida fosse assim… Tão tranquila quanto esse rosto pintado nesse quadro". – pensou, com um meio sorriso. Mas logo voltou à realidade. Tinha que terminar aquele trabalho rápido, ou a senhora Trajano faria questão de infernizá-la. Antes que pudesse se recompor, ouviu passos ecoando pelo corredor. Droga, a senhora Trajano. Rosa rapidamente colocou o quadro no lugar, pegou o balde como se estivesse absolutamente concentrada no serviço. A velha senhora apareceu na porta, observando Rosa com seus olhos críticos. — Você terminou aqui? — a voz dela era mais cortante do que nunca. — Quase, senhora Trajano. Só mais um minuto e termino tudo — respondeu Rosa, com o tom mais educado que conseguiu. A senhora Trajano estreitou os olhos, observando-a por um segundo, como se estivesse tentando captar algo fora do comum. Mas virou-se e saiu, resmungando algo sobre "pessoas que não sabem o valor das coisas". Assim que ficou sozinha novamente, Rosa suspirou de alívio. Terminou de se organizar e saiu do escritório, imaginando como seria quando visse o famoso “filho” da velha. Afinal, ele deveria voltar de viagem em breve. Como seria esse homem?Rosa saiu da casa dos Trajanos sentindo o peso do dinheiro suado no bolso. Agora, já final de tarde, Rosa subiu na bicicleta, e começou a pedalar, ainda garoava, ela se sentia exausta.Enquanto pedalava ladeira abaixo, algo chamou sua atenção. De longe, os faróis de um caminhão brilhavam intensamente, ofuscando sua visão. Assustada, ela perdeu o controle e escorregou numa poça de lama, caindo bruscamente no chão. A bicicleta foi arremessada para o lado, e Rosa sentiu uma forte dor no joelho. — Droga! — foi a única coisa que conseguiu murmurar antes de sentir o impacto. Enquanto tentava se recompor, um carro luxuoso parou ao seu lado. O motorista buzinava incessantemente, claramente impaciente. O motorista, irritado, começou a fazer gestos com as mãos, claramente frustrado por não conseguir passar por causa da bicicleta, e de Rosa caída no asfalto. — Você foi atropelada ou está só deitada aí de graça, atrapalhando o tráfego? — Eu... O homem, revirando os olhos, pegou o celular e
Rosa finalmente avistou sua casinha. Era uma casa simples, feita de madeira, como aquelas de interior, mas na cidade. O quintal era grande, com canteiros onde sua mãe plantava algumas hortaliças e flores, e uma pequena horta nos fundos. Rosa desceu da bicicleta com cuidado, tentando não agravar os ferimentos, e empurrou a velha porta de madeira que rangeu ao abrir. O cheiro da comidinha que sua mãe havia feito, tomou conta de suas narinas. Sua mãe, mesmo doente, sempre fazia questão de deixar algo preparado. Dentro da casa, tudo era muito simples. O piso era de tábuas gastas, as cortinas eram feitas à mão por sua mãe, e o pouco que tinham de móveis era antigo. Na cozinha, tinha um fogão à lenha e uma mesa de madeira, já arrumada para o jantar. Ao lado, uma poltrona onde sua mãe costumava sentar, com uma colcha de retalhos por cima. Ao entrar, Rosa ouviu o som da voz fraca de sua mãe, chamando com preocupação: — Filha, é você? Ela seguiu o som até o quarto, onde a mãe estava deita
Após Ricardo subir as escadas, Rosa respirou fundo, aliviada por ele ter saído. Voltou a trabalhar, focando em terminar logo o serviço e sair dali, mas, antes que pudesse terminar, ouviu uma batida suave na porta. Rosa foi atender. Quando abriu, deu de cara com um homem de terno elegante, segurando um envelope nas mãos.— Boa tarde, senhorita Rosa? — ele perguntou, com um sorriso formal.— Sim, sou eu. O que deseja? — Rosa respondeu, confusa.— Tenho aqui uma correspondência urgente para você — disse ele, entregando-lhe o envelope.Rosa franziu a testa, sem entender do que se tratava. Ela abriu o envelope com cuidado e, ao ler o conteúdo, sentiu o coração disparar. Era uma convocação judicial.— O que... o que é isso? — perguntou, sentindo as mãos tremerem.— É melhor você ler com calma — respondeu o homem, já se afastando. — Apenas cumpro meu dever.Rosa ficou parada ali, com o envelope nas mãos, sem saber o que pensar. Justo quando ela começava a se sentir mais leve, uma nova tempes
[...]Rosa chegou em casa e suspirou profundamente, sentindo o peso da decisão crescer em seu peito. A oferta era tentadora em um sentido prático, mas o que isso significaria para sua liberdade, sua dignidade, sua mãe? A dívida era enorme, e a ameaça de perder a casa pairava como uma sombra sobre ela.Rosa precisava falar com sua mãe. Caminhou até o quarto da mãe, quando abriu a porta, encontrou Dona Cida deitada, a respiração fraca, mas serena. — Mãe? — chamou suavemente, se aproximando da cama.— Rosa, minha filha... — disse ela, com a voz suave, mas cheia de carinho. — Está tudo bem?Rosa mordeu o lábio, hesitante em contar à mãe o que estava acontecendo.— Nada não... mãezinha, só queria ver como a senhora estava, e dar boa noite. — Rosa não teve coragem de preocupar a mãe, nesse momento parecia que ela já tinha a resposta.— Oh, minha filha, estou bem. — Dona Cida piscou lentamente, absorvendo as palavras da filha. Ela segurou a mão de Rosa e a apertou com a pouca força que rest
Rosa voltou para casa com os remédios nas mãos e um peso no coração. Ao entrar, encontrou sua mãe deitada na cama, com os olhos fechados, mas um sorriso suave no rosto.— Mãezinha, eu trouxe seus remédios — disse Rosa, tentando esconder o tumulto de sentimentos que se passava dentro dela. Ela colocou as sacolas sobre a mesa e começou a organizar os comprimidos.— Ah, minha menina... você está sempre correndo de um lado para o outro por mim. — Ela estendeu a mão, e Rosa a segurou.— Eu não me importo, mãe. Quero te ver bem.Rosa ficou em silêncio por alguns instantes, hesitando. Sabia que não poderia esconder mais. Respirou fundo e decidiu contar a verdade, pelo menos parte dela.— Mãe, eu arrumei um emprego novo.Dona Cida arqueou uma sobrancelha, surpresa.— Um emprego? Que bom, filha! E você não vai mais trabalhar para a senhora Trajano?— Não... — Rosa sorriu, tentando suavizar o impacto. — Na verdade, eu vou trabalhar para o filho dela, o Ricardo.Dona Cida franziu o cenho, claram
Ela estava sendo contratada como uma espécie de acompanhante permanente de Ricardo, uma assistente que parecia mais com uma sombra do que com uma secretária comum. — Você parece estar hesitante, Rosa. — Ele disse, com uma ponta de sarcasmo na voz, inclinando-se um pouco para frente na cadeira de couro. — Se não for capaz de lidar com esse trabalho, há outras pessoas que ficariam mais do que felizes em aceitar. Se Rosa assinasse o contrato, estaria essencialmente vendendo sua liberdade. Seria um fantoche nas mãos de Ricardo, disponível para ele a qualquer momento. Mas se não assinasse... como conseguiria pagar as contas? A vida de sua mãe dependia dos remédios caros, e a pequena renda que Rosa conseguia como diarista não era suficiente para cobrir todas as despesas. — Isso não é um trabalho comum, Ricardo. — Rosa disse, tentando manter a voz firme, mas sabendo que estava tremendo por dentro. — Você está basicamente me pedindo para estar à sua disposição o tempo todo. Isso não é ser
— O que você quer, Rebeca? Estou ocupado.Rebeca. O nome ressoou na mente de Rosa. Era óbvio que ela não estava ali apenas como uma visitante comum. Havia algo na maneira como Rebeca se comportava, o ar de familiaridade, a intimidade forçada, que indicava uma história com Ricardo, algo que ele claramente não estava disposto a discutir.Rebeca entrou no escritório como se fosse dona do lugar, sua postura confiante e os saltos estalando no chão de mármore. Ela ignorou a pergunta de Ricardo por um instante e se virou para Rosa, o sorriso presunçoso ainda colado em seu rosto.— Oh, eu só estava passando para ver como você está. — Rebeca se aproximou com passos lentos e calculados. Ela parou ao lado da mesa de Ricardo, os olhos agora focados em Rosa. — E para conhecer sua nova "aquisição". Parece tão... jovem e inexperiente. Ela tem alguma chance de durar aqui, Ricardo? — O tom de voz dela era venenoso, cheio de desdém.A situação já era desconfortável o suficiente, e a última coisa que Ro
Faltavam apenas quinze minutos para o fim do expediente, e ela mal podia esperar para sair daquele escritório sufocante. Arrumou seus pertences, organizou os papéis em ordem e apagou as luzes. Ela fechou a porta com cuidado e caminhou em direção ao elevador. Quando as portas se abriram, seu coração deu um salto ao encontrar Ricardo ali, envolvido em uma conversa no telefone. Ele estava com o semblante sério, como de costume, discutindo algo sobre um encontro após o expediente. A presença dele tornava o ar mais pesado, e Rosa, sem jeito, evitou ao máximo olhar diretamente para ele.“Sim, eu estarei lá. Não se preocupe. Vou chegar a tempo,” - Ricardo disse ao telefone, sem sequer notar Rosa à primeira vista. Ele parecia alheio ao desconforto dela, focado em seus planos. As portas do elevador se fecharam, e o silêncio entre os dois foi constrangedor.— Você veio de bicicleta? — ele perguntou, com um tom de deboche ao ver Rosa indo em direção à sua bicicleta trancada com um cadeado no pos