Michelle Miller

Era exatamente sete horas da manhã quando minha mãe me tirou da cama, empurrando-me de um lado para o outro, aos gritos:

- Acorde, Virgínia. Você precisa dormir oito horas por dia. Menos que isso dá olheiras e mais é tempo perdido.

Levantei, sem reclamar, indo para o banho enquanto ela escolhia minha roupa. Enquanto me ensaboava e deixava a água fria me despertar completamente, ela se escorou na porta, cruzando os braços:

- Até que horas ficou com Francis ontem?

- Eu não vi Francis ontem. – falei a verdade. – Estive com Andréia. Aliás, vi Francis poucas vezes nesta semana. Ele tem estado ocupado.

- Que bom que um de vocês dois se ocupa.

- Ele trabalha... – contestei.

- Com o pai, que não vale de nada.

- E eu não trabalho... Porque você não deixa.

- Não consegue conciliar horários trabalhando sem ser de modelo.

Suspirei e desliguei o chuveiro, enxugando meu corpo.

- Vamos provar seu vestido para o Baile de Primavera.

- Mas... Eu nem o vi.

- Já escolhi. Você só vai provar.

- Mas...

- Sua roupa está sobre a cama e tem bolo especial na mesa. Tome o suco de uva, que está sem açúcar. Academia na volta da prova do vestido.

Eu nem respondi. Ela não me dava tempo.

Vesti a calça de cintura alta em tecido estruturado e a camisa branca com sapato nude que ela separou. Eu parecia ter uns dez anos mais. Maquiei-me rapidamente e desci, pegando a fatia de bolo e tomando o suco de uma vez.

Fui caminhando até a loja de vestidos sob medida, única da cidade, ao lado de minha mãe, sendo cumprimentada cordialmente por todos os lugares que passávamos. Eu só não tinha certeza se a cumprimentavam por vontade própria ou por medo de ela acabar com a reputação de qualquer um deles.

Assim que chegamos, a loja estava fechada. Olhei e perguntei, confusa:

- Fechado?

- Mandei fechar para você, Virgínia. – ela falou, batendo na porta.

A dona da loja abriu, cumprimentando:

- Bom dia, Michelle. Bom dia, Virgínia.

Eu sorri e respondi:

- Bom dia.

- Abra logo que meu tempo é curto. – minha mãe disse ostentando seu chapéu preto com fita bege na cabeça, com metade dobrado, como se tivesse saído de um casamento na beira do lago, às dez horas da manhã, convidada para madrinha.

Entramos na loja, com a dona visivelmente enfurecida com o modo grosso de ser tratada por minha mãe.

- Vou buscar o vestido. – ela disse saindo.

- Por que não compramos em outro lugar, um vestido pronto? – perguntei, confusa.

- Motivo um: você já tem 21 anos e é último baile que poderá concorrer. Motivo dois: consegui um tecido importado, caríssimo, com sua tia, Megan.

- Por que foi pedir favores aos familiares por um motivo tão... Fútil?

- Fútil? Desde quando ganhar o último baile de Primavera da sua vida é um motivo fútil?

- Eu já ganhei 5 vezes.

- E vai ganhar 6, ou eu mato você com minhas próprias mãos. Isso vai para o seu portfólio.

- Mãe, eu já vou fazer 22 anos. Se fosse para eu ser uma modelo famosa, já teria explodido há anos atrás. Por que você insiste nisso?

- Cale-se, Virgínia. Eu sei o que estou fazendo.

Sim, 21 anos e ouvindo ela me mandar calar a boca. Às vezes eu tinha vontade de pegar minhas coisas e sumir daquela cidade pacata e sem graça e viver a minha vida. Porque eu era simplesmente um fantoche nas mãos da minha mãe, assim como meu pai e meu irmão. E eu nem entendia porque a gente obedecia às ordens dela, sem contestar. Aliás, ela manipulava e ditava ordens em toda a cidade e ninguém tinha coragem de reclamar. No fundo, todos temiam Michelle Miller.

Mas ir embora sozinha, deixar Liam, meu irmão que, apesar das nossas brigas, conversava comigo e era o chato que deixava as coisas não ficarem tão monótonas dentro de casa. E meu pai... Ah, meu pai era um doce de pessoa. Mas não tinha poder contra minha mãe. Então ele só me consolava... Quando conseguia.

E deixar Francis? Sim, porque ele era o meu porto seguro na vida. O amigo que me dava conselhos, que estava comigo em qualquer situação e me ensinou tudo que eu precisava saber sobre a vida. E Francis não tinha interesse em deixar a porra daquela cidade nunca.

Então me restava ficar ali, vivendo como se eu tivesse dezesseis anos e estivesse prestes a ser descoberta a qualquer momento, como uma modelo famosa, encontrada na rua de uma cidade onde não aparecia ninguém a não ser adolescentes de outras cidades para pesquisar sobre flores.

Mas quando a mulher trouxe o vestido, juro que meus olhos brilharam. Era azul Tiffany, todo bordado com flores em alto relevo. A parte do busto era rendada e as flores feitas à mão, brincando com o inocente das pétalas delicadas e o transparente sensual.

- Agradeça tia Meg. – falei, quase sem voz.

- Não precisa agradecer. Ela não fez nada mais que a obrigação dela. Afinal, nunca nos dá nada e é podre de rica.

Olhei-a e suspirei. Nem para isso ela conseguia ser grata. Sim, a irmã dela, Meg Miller Collins, minha tia, era rica. Mas não tinha obrigação nenhuma de me presentear com um tecido tão fino e caro daqueles. Além do mais, ela e minha mãe mal se falavam. Somente em ocasiões especiais (bem especiais, no caso), tipo um casamento da família, como o que houve quando tia Martina se uniu à Axel Collins.

A família de minha mãe morava na antiga zona B, próxi do centro de Noriah. Ninguém se procurava muito ou sequer davam um telefonema um ao outro para saberem se estavam vivos ou mortos.

Vi minhas tias e primos também no velório da minha avó. Meu avô morava sozinho e raramente os visitávamos.

Minhas tias Meg e Martina moravam bem próximas e se davam muito bem. Consequentemente meus primos, filhos das duas, também. Eu mal os conhecia. Sabia que existiam, mas não nos falávamos. Ou seja, ninguém gostava da minha mãe.

Mas por incrível que pareça, Michelle Miller tinha carinho por uma pessoa: Mel, a sobrinha, filha de Meg. Não entendo o porquê, mas sempre que falava da garota, ela tinha um brilho diferente nos olhos. De alguma forma, aquela Mel havia feito o coração da minha mãe não ser tão petrificado. Mas a sobrinha sequer a procurava. Mamãe lembrava dela com carinho, só isso.

Vez ou outra ela ligava para as irmãs, pedindo dinheiro para alguma coisa extremamente importante, como um tecido de vestido ou um sapato recém lançado de uma coleção. Porque para Michelle Miller aquilo era uma emergência.

Meu pai disse que minha mãe já foi rica, mas por pouco tempo, porque a família perdeu tudo que tinha em pouco mais de um ano. Então acho que ela ficou assim, amarga, doentia, possessiva e manipuladora, por causa disto.

Ao mesmo tempo que eu tinha todo este rancor e a criticava veementemente, era grata por ela ter aberto mão de tudo por mim. Quando nasci alérgica e podendo morrer ao beber leite, ela fez toda uma dieta sem leite para poder me amamentar. E não confiou em ninguém que pudesse me cuidar melhor que ela. Abandonou o emprego, a faculdade que iniciava, mesmo tardia, por mim.

Mas creio que fui a pessoa na qual ela jogou todas as suas expectativas. E no fim, eu não estava sendo o que ela queria ou precisava.

Meu irmão, Liam, nasceu depois de mim. Apesar de brigarmos muito na infância, atualmente nos dávamos bem. Ele era um pouco fechado e focado nos estudos. E muito inteligente. Era o tipo de pessoa que mais observava do que falava. Mas vez ou outra falava umas gracinhas e arrancava algumas risadas.

Mesmo quando Liam nasceu, o casamento de meus pais já não ia bem. Porque lembro de Liam bebê, embora eu fosse bem criança ainda. Mas não me recordo de haver amor entre Michelle Miller ou Yan Hernandez durante toda a minha vida.

Provei o vestido. Eu tinha certeza de que ganharia a coroa de Rainha de Primavera, porque eu sempre ganhava. E não creio que fosse só por eu ser bonita, mas também porque minha mãe talvez manipulasse o júri. Uma vez Dothy Franco me disse que ela dormia com os jurados em troca de votos para mim.

Claro que surtei e peguei ela pelos cabelos, quando tínhamos 16 anos. Achei que ela fosse invejosa porque nunca ganhou de mim. Mas ao mesmo tempo, eu não duvidava que minha mãe seria realmente capaz de fazer aquilo.

Quando saímos da loja, deixando o vestido para um pequeno ajuste na cintura, que eu havia engordado e ganhado talvez uns 2 centímetros, minha mãe já brigou:

- Você vai chegar em casa, trocar de roupa e ir para a academia. Eu nem deveria mandar ajustar o vestido. Você precisa perder a cintura imediatamente. O que andou comendo nestes dias?

- Bolo? – tentei culpa-la.

- Meu bolo é livre de farinha e leite, querida. É completamente light e você sabe disto.

Três pães franceses de uma vez, pensei. Mas claro que não mencionei, ou poderia ficar sem cabelos. Sim, ela seria capaz de me arrancar os cabelos no meio da rua.

Cheguei em casa e fui para a academia. Malhei por duas horas ininterruptas e depois voltei para casa. Tomei banho e fui mexer no jardim. Eu gostava de fazer aquilo. Era terapêutico. Em Primavera, todas as casas tinham jardins floridos e bonitos. Mas eu sempre procurava flores diferentes para fazer um misto de cores perfeito, plantadas dos tons mais claros para os mais escuros.

Embora todos usassem luvas, eu gostava de mexer na terra. Me fazia bem. E ali eu conseguia esquecer de parte dos problemas que eu tinha, começando pela minha falta de coragem de lutar contra minha mãe e exigir que ser eu mesma e ter minha própria vida.

Por sorte ela não ficou em casa durante a tarde, então eu pude ficar no meu quarto, olhar televisão e comer escondida. Eu guardava comida num compartimento secreto, debaixo da cama, numa caixa com fundo falso que Francis me deu.

Quando ele vinha olhar filme comigo, abríamos a caixa e comíamos escondidos. Ali tinha até chocolate sem leite, que ele comprava na internet para mim. Fora algumas coisas contrabandeadas por meu pai e meu irmão.

Era dezoito horas quando meu celular tocou. Era Francis:

- Minha mãe vai fazer sopa para você hoje. Tem que vir ou ela vai ficar triste.

- Posso ir agora?

- Está com tanta fome assim?

- Na verdade, não. Comi a tarde inteira... Quase acabei com o estoque da caixa secreta.

- Isso requer uma visita na internet novamente.

- Urgente. Vou trocar de roupa e estou indo.

- Ok, vou esperar.

Assim que coloquei uma roupa mais apresentável e lavei minha cara de tédio, desci e fui para a casa de Francis.

Fui recebida com um beijo caloroso da mãe dele, Irina:

- Eu estava com saudade de você. Não apareceu esta semana. Você e Francis brigaram?

- Não. Mas ele estava ocupado com o trabalho e eu com o baile. Além do mais, faz um tempo que não brigamos a ponto de não nos falarmos. Acho que desde o fim do Ensino Médio. – comecei a rir enquanto ela me abraçava, encaminhando-me para a cozinha.

- Querida, na verdade temos uma comemoração hoje. E fiz sopa porque é o único prato que tenho certeza de que não corre o risco de eu matar você.

- Ah, Irina, quanta gentileza. Mas não precisava se preocupar comigo.

- Depois de tantas coisas que houveram com você e sua alergia, eu temo muito. Só Francis que sabe cada coisinha que você pode ou não comer. E como não consegui falar com ele hoje, fiquei insegura do que cozinhar.

- Mas você sabe que eu amo sopa, não é mesmo?

- Sei. – ela sorriu e piscou o olho.

Enquanto ela preparava algumas coisas na bancada, sentei na frente dela, na banqueta.

Percebi que ainda não estava tudo pronto então peguei uma faca e comecei a ajuda-la, picando alguns temperos.

- E como você está se sentindo com a possibilidade da última coroa?

- Tenho procurado não pensar muito nisto.

- Muita pressão?

- Sim. – admiti.

Eu não tinha muitos segredos com a família de Francis com relação a minha mãe. Até porque eles a conheciam muito bem... Há anos.

Quando vi, Francis chegou, me dando um beijo por trás. Fui virar meu rosto e quase nos beijamos na boca. Nos olhamos e fiquei um pouco constrangida, especialmente pela presença da mãe dele.

Logo ele deu um beijo nela e tudo ficou tranquilo, como sempre foi. Desde que crescemos, eu tinha medo de beijá-lo até por acidente. Não queria estragar nossa amizade de forma alguma.

- Está cheiroso. E bem arrumado. – olhei para ele e depois para minha roupa, simples. – Me escondeu algo, Francis?

Ele riu:

- Sim...

- O que vocês estão comemorando, Irina?

- Francis, não vai contar?

- Bem, eu passei no vestibular. Em breve, vou ser o advogato Provost Filho.

Levantei animada e o abracei:

- Francis, isso é incrível. Parabéns.

- Estamos orgulhosos dele. Antes tarde do que nunca. – Irina disse.

- Também achei que ele não fosse criar coragem nunca de seguir em frente. E que ficaria sendo o amigo mais gato de Primavera para sempre, só ajudando o pai. – ri.

- Enfim, Francis criou juízo.

- Vocês são perversas. Eu sempre fui ajuizado.

Arqueei minhas sobrancelhas:

- Não acredito que ouvi isto.

- Verificou sua classificação?

- Não.

- Por quê?

- De que adiantaria? Sabemos que eu não vou para a faculdade.

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