Céu nublado e garoa fina. Dezenove graus no verão de Campos do Jordão, São Paulo, Brasil. A baixa temporada na cidade turística é o pior período para a economia local e isso Aislan Albuquerque sente na pele. Dono de uma das mais populares redes de hotelaria, Aislan com os seus 38 anos, tendo 15 deles dedicado a presidência do Hotel Camp Jordan, se vê perdido diante aos tantos percalços financeiros, sociais e pessoais...
— Senhor Aislan! Júlio Alcântara está na linha — fala a secretária já entrando.
— Carla! Primeiramente bata na porta antes de entrar e segundo... Eu já exigi que marque horários para eu atender ligações seja de quem for.
— Inclusive da mãe dele. —
completa Henrique.
Henrique Ferraz, com os seus 37 anos é sócio e melhor amigo de Aislan. Amizade essa que vem da infância. Após terminarem a faculdade e estando ambos sem rumo, eles decidiram apostar no ramo de hotelaria e com poucos anos trabalhando na gerência da rede mais popular da cidade na época, eles conseguiram construir o primeiro hotel Camp Jordan. Hoje, quinze anos depois, está sendo construída a segunda pousada no litoral catarinense que levam o mesmo nome. As pousadas são gerenciadas por Henrique, homem aventureiro e que, ao contrário de Aislan, adora praia e calor. Por assim ser, Aislan gerencia o hotel em Campos do Jordão e sabendo que nessa época o amigo falta enlouquecer e também endoidar os funcionários, Henrique todos os anos volta à cidade para ajudar o sócio e garantir que ele não demita a metade deles... Como Ana, por exemplo.
— Primeiramente o meu nome é Ana, senhor e segundo que é a sétima vez que o senhor Alcântara tenta lhe contatar, — insiste ela tentando explicar.
— Inventa uma desculpa e diga que eu retornarei a ligação assim que possível.
— Ele está aguardando esse retorno há cinco dias, senhor.
Ana, a secretária. Trinta e três anos de pura bondade, sabedoria e paciência. Bom! A sua paciência está sendo aos poucos abalada, coitada. Há cerca de oito anos Ana passa por maus bocados na mão do chefe metido a magnata e ela só suporta as humilhações por extrema necessidade. Recém-casada, ela precisa ajudar o marido a quitar a casa própria e os gastos com a reforma e as mobílias da casa nova. Isso até o marido ser promovido a gerente do hotel concorrente e ela poder pedir demissão. A melhor época do ano para ela é no verão, quando, como agora, Henrique toma as rédeas do hotel e ameniza a pressão.
— Diga que em cinco minutos eu retornarei a ligação, Ana. Pode se retirar e obrigado.
— Sim, senhor Henrique! Eu quem agradeço. Com licença!
Assim que Ana fecha a porta, Aislan fecha a pasta ao qual fingia analisar e relaxa o corpo na luxuosa ⁹cadeira presidencial.
— Deus! Eu vou enlouquecer!
— Você clamando por Deus, Aislan?
— Força do hábito! Cara, tá foda!
— Como todos os outros verões. Relaxa sócio e meu amigo. Sempre sobrevivemos às baixas temporadas e esse ano não será diferente.
— Eu sei, eu sei, mas o problema é que esse ano não é apenas a baixa temporada que me preocupa. A Bruna vai se casar e a dona Rute resolveu que vai aproveitar o embalo e vai se casar novamente. De novo cara, de novo.
— Deixa a sua mãe ser feliz. O último casamento lhe causou muito sofrimento e creio eu que até mais do que com o seu pai. Ela está tentando... Você deveria tentar também.
— Eu? Euzinho me casar? Deus me livre! Dispenso o teu conselho.
— Clamou a Deus de novo.
— Dane-se! Já falei que é força do hábito. Preciso desenhar?
— Ok! Ok! Tá certo! Não está mais aqui quem falou.
— Obrigado!
— Relaxa parceiro. Toma aqui!
Henrique retira um carnê do bolso de dentro do paletó e oferece a Aislan que toma o segundo gole do uísque importado antes de tomar o carnê em mãos.
— O que é isso? A quebra do contrato?
— Você só pode estar enlouquecendo mesmo.
— Não! Isso é uma passagem de ida e volta para Natal, Rio Grande do Norte!
— Presente antecipado de casamento para a minha irmã?
— Não! Presente de férias para você!
— Querido Henrique. Pelo fato de nos conhecermos desde crianças, de termos estudado e crescermos juntos, termos criado uma rede de hotelaria e de nos falarmos todo santo dia, eu creio que você saiba que eu odeio praia e principalmente... Calor.
— Querido Aislan. Pelo fato de nos conhecermos desde crianças, de termos estudado e crescermos juntos, termos criado uma rede de hotelaria e de nos falarmos todo santo dia, eu tenho a absoluta certeza de que você precisa viver coisas novas, sair desse mundinho e experimentar novos horizontes.
— Bobagem!
— Bobagem é você ficar aqui nesse escritório trancado assinando cartas de demissões. Bora! Levanta a bunda daí e vá para casa arrumar as malas. Seu voo está marcado para amanhã às nove.
— Filho da…
— Ei! Me respeita e respeita a minha mãe. Você vai ficar na casa da Manu. Ela já providenciou a limpeza da casa, as compras e tudo o que você vai precisar para essa semana. A passagem de volta está marcada para segunda-feira às vinte e duas horas.
— Por falar nisso, como ela está? Como vocês estão?
— Bem! Estamos bem! Ela está super empolgada com o término da faculdade e ainda mais com o desafio de cuidar “sozinha” das pousadas. Eu confio na competência e habilidade dela. Ela vai se dar bem.
— Eu também acredito que sim, mas vocês não vão completar quatro anos de casados nesta semana?
— Cinco anos e sim, mas como eu disse ela está tão empolgada para exercer o seu primeiro trabalho como dona do negócio que aceitou deixar para comemorarmos quando eu retornar. Fizemos uma festinha para comemorar o término da faculdade e isso já a deixou feliz.
— Eu acho isso estranho. Você poderia ter adiado essas viagens. Não será fácil uma novata lidar com a alta temporada na pousada.
— Mulheres! Você sabe como são teimosas.
— E eu também sou. Agradeço a sua preocupação quanto a mim, mas eu vou negar o seu presente.
— De maneira alguma. Depois de tanto trabalho? A Manu vai te odiar se você não for.
— Que merda!
— Cara, para de reclamar! Vai curtir a vida.
— Curtir o que sozinho? É claro que eu levaria o Skoob, mas se for para ficar trancado em casa com o meu cachorro eu fico no meu apartamento mesmo.
— Meu! Natal! Verão! Alta temporada! Mulheres! Você só vai ficar sozinho se quiser.
— Odeio o verão!
— E eu não sei como os seus funcionários te suportam.
— Eu não sou tão ruim assim. Até dei um presente de casamento para a Cláudia.
Ana bate na porta e gentilmente Henrique a manda entrar.
— Senhor, só para lembrar que já se passaram os cinco minutos. E senhor Aislan, o meu nome é Ana. Ana!
— Pode fazer a ligação... E Ana, o Aislan me contou que te deu um presente de casamento. Posso saber que presente foi esse?
— Sim! Ele nos deu um faqueiro de 48 peças no valor de R$ 800,00, muito chique. Quer dizer, chique demais. Eu nem sei quando vou usá-lo, talvez no Natal, talvez. Eu não sei. A minha família é muito simples e até que eu queria dar uma big festa lá em casa para comemorar o casamento, mas não estamos em condições financeiras... Então eu vou deixar guardado... Quem sabe um dia...
— Não reclama! Cavalo dado não se olha os dentes e se não tem utilidade pode vender.
— Não senhor Aislan. Eu não vou vender. Presentes são presentes e presentes não se vendem, nem se doam... Não se jogam fora...
— Exatamente! E presentes não podem ser negados. Levanta essa bunda daí e aceita o meu presente. Vamos! Eu tenho negócios a tratar. Ana pode fazer a ligação. Mais uma vez, obrigado.
— Sim senhor e disponha. Com licença.
Ana se retira. Aislan, sem saída, levanta-se dando o lugar para o seu sócio e não encontrando mais argumentos, junta os seus pertences enquanto Henrique atende o senhor Alcântara. Antes de sair da sala, Aislan dá um beijo na cabeça de Henrique que pede um minuto para o senhor Alcântara e tapa a saída de áudio do telefone.
— Vai nessa, irmão! Divirta-se! E ah... Eu deixei um presente lá pra você.
— Até imagino o que seja, mas eu vou deixar para agradecer depois que eu voltar. Até mais, irmão e você vai me pagar por isso.
— Faço questão de pagar para ver. Boa viagem!
Sábado. Nove e quarenta e cinco da manhã o jato particular da empresa Camp Jordan pousa no Aeroporto Internacional do Rio Grande do Norte. Aislan desembarca na companhia de Skoob, seu cão gigante da raça Dobermann. Pelo preto brilhoso e macio de seu pelo bem aparado e pelo seu porte imponente, vemos que o cão recebe cuidados tão minudentes quanto o dono. Aislan é um cara vaidoso... Muito vaidoso, por sinal. Ele é aquele tipo de homem que não abre mão de exercícios físicos diários. Tem horários semanais marcados em spas, barbearia e manicure. Sim! Ele não nega que pinta as unhas, com base, claro, além de tingir os cabelos regularmente. Os fios brancos não têm vez naquela cabecinha oca... E pensem em um homem cheiroso. É claro que quem o vê não nega que Aislan seja um partidão... Só que é chato, muito chato, enfim... Como o Henrique pensou em tudo, ele alugou um carro esportivo para que Aislan pudesse
Após secar todo o chão por onde Skoob passou, Aislan tratou de descarregar a bagagem do carro, alimentou o dog, guardou suas roupas e pertences nos armários e aí se deparou com o presente deixado por Henrique. Com um sorriso irônico ele coça a cabeça não acreditando no que o amigo lhe comprou. Ao se ver livre de suas tarefas, Aislan decidiu almoçar em um dos quiosques. A sua vontade era de almoçar a beira mar, mas dirigir depois de uma manhã tensa e cansativa não estava mais em seus planos. Skoob voltou a brincar com as crianças na lagoa, enquanto o saradão se deliciava com uma bela porção de feijão verde, prato típico do estado e nem preciso dizer, né? Foi amor à primeira vista e com direito a um: “Garçom! Traga mais uma porção, por favor.”.Tudo corre bem e
Domingo, seis horas da manhã. Aislan desperta depois de dez horas consecutivas de um sono tranquilo e agradável. Descanso esse que o fez despertar com ânimo e disposição para a sua corriqueira corrida matinal. Higiene pessoal? Ok! Garrafinha d’água? Ok! Smartwatch? Ok! Calça e camiseta? Aaah... Não! O aplicativo marca 26º graus, sendo a sensação térmica de 28º. Uma bermuda, um boné e o par de tênis. Pronto! O nosso amigo está prontíssimo. O Skoob também está no clima e após um breve alongamento, os dois iniciam a maratona às margens da lagoa.A paisagem é exuberante. O céu azul é enfeitado pelos reluzentes raios de sol entre nuvens branquinhas que passeiam depressa empurradas pelo vento.
O sol está para se pôr. A maioria dos visitantes já foi embora e os que ficaram se despedem de Aislan e Skoob. A porta da varanda da vizinha está fechada. Aislan lamenta por Luna estar lá trancada com a víbora em forma de gente. Ele não entende como uma pessoa pode ser tão egoísta, furiosa e curiosa também. É muita coincidência ela estar colocando o lixo pra fora bem na hora que ele está para adentrar a casa... Ou não?— Skoob, eu não consigo entender qual é dessa mulher. Ela demonstra me odiar, mas não perde uma chance para ver o que estou fazendo. Bisbilhoteira e fuxiqueira. Deve estar falando mal de mim nas redes sociais. Ela não sai da frente das telas. Quando não é no notebook é no celular. Ela deve estar com os dedos duros de tanto escrever fofo
Segunda-feira. O dia já amanhece com alta temperatura. Aislan, aproveitando o bom humor e ainda querendo provocar, levanta mais cedo e faz uma série de alongamentos na beira do lago, se preparando para a corrida matinal. Skoob dorme na varanda. Na casa ao lado, a vizinha que ainda não dormiu e ainda está possessa, se atreve a olhar pela janela e vê Aislan, sem camisa, correndo em volta da lagoa. Tomada de raiva ela decide ir tirar satisfações com o vizinho pervertido. Luna a acompanha lado a lado mesmo seu instinto querendo correr até Skoob para brincar. A cara feia da dona lhe causa medo, então é melhor obedecer. Ao ver a vizinha se aproximar da cerca, Aislan caminha até ela com o sorriso mais irônico que talvez ele nunca tenha dado em sua vida. A vontade dele é de gargalhar, mas se controla e procura ser gentil, ao seu modo, claro.
Já é noite e de volta a vila, Aislan estaciona o seu carro no jardim e se dirige para a casa de Catléia ao perceber que as luzes estão acesas e ao imaginar que ela provavelmente esteja acordada. Ele toca a campainha. Dessa vez ela demora um pouco mais para abrir a porta...— Oi! Você veio pegar a foto? Está aqui.— Oh, não. Desculpe, mas eu tomei a liberdade e procurei por fotos suas na internet, quer dizer, do gato e encontrei essa aqui.Aislan entrega uma cópia da foto para ela que observa já com os olhos a lacrimejar. Bom dia! Bom dia e o que temos pra hoje? Um Aislan tomando seu desjejum de um lado e uma Catléia dormindo do outro. Terça-feira, mais um dia quente, trinta graus na sombra às nove da manhã. Aislan já fez sua corrida matinal. Já alimentou Skoob e retirou a sujeira dele deixada pelo jardim. "O que fazer agora?" Pensa ele. Sem opções ele decide dar uma volta pelo bairro em busca de pistas que o levem ao gato. Já perto do horário de almoço ele retorna para casa e se depara com Catléia deitada em uma rede, do lado externo da casa, com Luna deitada no chão ao seu lado e com o notebook em seu colo.— Nada?— Infelizmente não! Domingo. O dia amanhece com recorde de temperatura. Dez horas da manhã e os termômetros marcam 32° graus. Aislan com certeza vai tentar uma aproximação com Catléia esperando ver no que dá, campainha acionada. Luna late. A porta se abre. Catléia vestida num vestido longo, amarelo florido.— Oi! Bom dia Aislan!— Bom dia!— Alguma novidade? Tem pistas do meu gato?— Infelizmente não. Por isso eu estou aqui. Amanhã eu vou embora e eu ficarei bem chateado se não encontrar o Finn.<Capítulo oito:
Capítulo nove: