Capítulo três:

Após secar todo o chão por onde Skoob passou, Aislan tratou de descarregar a bagagem do carro, alimentou o dog, guardou suas roupas e pertences nos armários e aí se deparou com o presente deixado por Henrique. Com um sorriso irônico ele coça a cabeça não acreditando no que o amigo lhe comprou. Ao se ver livre de suas tarefas, Aislan decidiu almoçar em um dos quiosques. A sua vontade era de almoçar a beira mar, mas dirigir depois de uma manhã tensa e cansativa não estava mais em seus planos. Skoob voltou a brincar com as crianças na lagoa, enquanto o saradão se deliciava com uma bela porção de feijão verde, prato típico do estado e nem preciso dizer, né? Foi amor à primeira vista e com direito a um: “Garçom! Traga mais uma porção, por favor.”. 

Tudo corre bem e por aquele momento Aislan aproveita para absorver a paz que lhe invade, mesmo sofrendo com os 28° à sombra. A alegria das pessoas ali presentes é contagiante. Crianças e seus familiares se divertem em companhia do Skoob na lagoa. Alguns jovens escutam músicas e bebem no outro extremo da lagoa. Nos quiosques, casais se entreolham apaixonados durante o almoço. Em outras mesas, amigos contam piadas de bêbados, por já estarem embriagados. 

Mesmo com a alta temperatura o vento bate brando e suave, refrescante. Literalmente, Aislan está em paz e satisfeito, surpreendendo a si mesmo. Durante o voo ele refletiu em sobre realmente precisar daquela viagem, que ela lhe faria bem, mas em momento algum imaginou que a transformação aconteceria logo no primeiro dia. Após o almoço ele se permitiu tirar uma soneca na rede armada na varanda da casa. Um repouso desejado... Um sono tranquilo... Até que por volta das sete da noite, o seu sono é interrompido por gritaria, latidos e miados...

— Finn! Finn! Volta aqui! Finn... — chamava em meio às lágrimas.

Só deu tempo de Aislan abrir os olhos e ver um corpo pequeno se perder em meio à mata às margens da lagoa. Skoob não para de latir, assim como um cão peludo que está ao lado da vizinha debutante da High School Music que não para de gritar. Alguns quiosques já fecharam. Os visitantes já se retiraram e a noite está linda, ou melhor, era para estar...

— Finn! Finn!... A culpa é sua! — grita ela desesperada.

Lá vem a Sharpay Evans com o sangue nos olhos em direção ao belo adormecido que se levanta tentando entender o que está acontecendo. Bom! Deixe que a vizinha explique.

— A culpa é toda sua! — ela o acusou mais uma vez.

— Desculpa senhorita, mas se não percebeu eu estava dormindo. Por acaso cometi algum crime durante uma crise de sonambulismo? — fez graça.

— O seu cachorro quase matou o meu gato e agora o Finn fugiu. Fugiu! Você tem noção do que isso significa?

— Significa que o seu gato simplesmente se assustou, mas relaxa. Assim que eu colocar o Skoob para dentro de casa o seu gato vai voltar e tudo ficará bem. Agora a senhorita pode parar de gritar?

— Eu não estou gritando e tudo só ficará bem quando o meu gato estiver em meus braços.

— Se quer um corpo em seus braços eu posso resolver esse problema.

— Como é que é? Estou vendo que eu serei obrigada a ir embora mais cedo do que planejei. Seu atrevido...

— Sinta-se a vontade!

— Você é um ogro! Não! Não! Até o Shrek é mais gentil e educado do que você. Escroto!

E assim vai a vizinha de volta às margens do rio a procura do seu gato. Nosso ogro apenas ri. Ri da situação, ri da conversa e ri principalmente da imponência. "Só que não". Da vizinha irritante e histérica. Aislan prefere não colocar mais lenha na fogueira e chama Skoob que ainda está na competição de quem late mais com a cadela da raça Bernese à beira da lagoa. Cadela e não o cachorro da vizinha que ele vira hora antes. 

— Era só o que me faltava... Uma cadela... Que você não esteja no cio, mocinha... Skoob! Vamos! Pra dentro. Agora, rapaz. Vamos, vamos!

Skoob obedece e adentra a casa enquanto a cadela se cala, mas o segue até a varanda abanando o rabo. Aislan até que a acha bonitinha e se atreve a acaricia-la, mas não por muito tempo. A vizinha está possessa e não admite que um idiota daqueles, toque em sua doce cachorrinha.

— Luna! Já pra casa. Não vê que você está se contaminando?

— Haha! Boa noite pra você também. 

Ela não responde e sai irritada, parando na varanda a morena balança os ombros e sacode os cabelos pretos.

Aislan procura não se exaltar. A cadela se afasta e ele entra fechando a porta. Mesmo já tendo anoitecido o calor prevalece. Nenhum sinal de vento. As cortinas nem se mexem obrigando Aislan a abrir uma por uma e sair ligando os ventiladores de teto por toda a casa. Um arrepio lhe percorre o corpo e surge a impressão de que ele está sendo observado. Um estalo vindo do telhado o assusta. Seu cachorro dorme no sofá da sala de TV e parece não ter ouvido nada. A sensação de estar sendo observado preocupa Aislan e ele anda pela casa olhando para o teto esperando ouvir algum barulho novamente. Nessa, ele bate o joelho em uma das cadeiras e seu grito de dor acorda Skoob e também a Luna que começa a latir na casa ao lado. Na casa ao lado onde a vizinha está na janela da cozinha rindo dele. Furioso, Aislan apaga a luz, pega uma cerveja e vai mancando para a sala. Ao passar por um dos quartos ele vê o vulto da vizinha caminhando também. Ele chega à sala e ela adentra a sala da casa dela que também está com todas as janelas abertas.

— Qual é dessa mulher? Parece uma assombração... Mas que se dane. Eu não vou fechar cortina por causa dela e muito menos passar nervoso. Um joguinho de futebol pra relaxar, cerveja gelada e tá tudo certo — diz ele enquanto se estica no outro sofá frente à TV e de costas para a janela.

A cerveja acaba, ele se levanta, vai ao banheiro, volta à cozinha e pega mais uma cerveja. As luzes da cozinha da casa ao lado estão apagadas. As do quarto também, assim como as da sala onde só se vê o brilho da tela de um notebook onde a vizinha digita algo e logo o encara. Aislan disfarça e volta a se deitar. A cerveja acaba, bate a fome e nosso amigo retorna a cozinha para preparar um lanchinho leve. Água na chaleira posta para ferver e mais uma cerveja gelada e refrescante. Ainda com a porta da geladeira aberta ele retira dois tomates e uma cebola e os coloca na pia. Um gole na cerveja, uma procura rápida pela tábua de carne no armário abaixo da cozinha. O levantar e outro susto. A vizinha lhe observando outra vez, descaradamente. Ela está sentada por trás da bancada tomando o que parece uma sopa.

— Agora deu! Além de estranha é maluca. Quem toma sopa num calor desses? — resmunga.

Aislan! Para de implicar! Deve ser sopa fria, você mesmo toma de vez em quando... — pensou consigo mesmo, — E não é nada anormal, mas anormal é ela ficar ali prestando atenção em tudo o que faço. Quer saber? Deixa ela ver. 

E assim ele tenta dar continuidade aos seus afazeres sem se irritar. A água ferve. No armário ao lado da geladeira ela pega os pacotinhos de quino-a e castanhas. Com uma xícara ele mede porções da quino-a e os coloca na panela jogando em seguida a água fervente. Enquanto cozinha, ele pica os legumes e as castanhas e entre um gesto e outro olha de relance para a vizinha que ainda está ali, disfarçando com manuseios do celular.

— Acha que eu sou bobo é? Essa mulherzinha está me irritando. 

Skoob desperta e, confuso, senta perto da pia não entendendo o que o dono está a dizer.

— Skoob, essa mulher é maluquinha. Evita chegar perto dela está bem? Bom garoto.

As quino-as estão cozidas. Aislan coloca a panela por cima de um pano molhado sobre a pia para que esfriem mais rápido. Ouvem-se batidas e passos no telhado. Um som baixo e abafado. Aislan se assusta e novamente saí andando pela casa olhando para o teto. Skoob late e o som para.

— Mas que merda é essa? Fica quieto, Skoob. Shiii!

Ao percorrer toda a casa e não ouvindo mais os barulhos ele retorna à cozinha.

— Que merda será essa hein Skoob? Pássaros? Só pode. A Manu também não têm juízo algum. Onde já se viu em plena década de 2020, alguém construir uma casa com telhado? Isso é tão brega e ultrapassado e ainda construiu a casa idêntica a da vizinha. Não estou vendo nenhum condomínio fechado por aqui. Gente maluca.

Se a esposa de Henrique o ouvisse falar assim iria relevar esse comentário por conta do stress que ele está passando. Não tendo mais paciência para esperar e já ficando puto com a vizinha que não saí da maldita bancada, Aislan pega a forma de gelo no freezer e despeja na pia colocando a panela com as quino-as sobre as pedras. Ele está irritado, quer logo sair dali. Com a colher de pau ele mexe as quino-as e evita olhar para fora. Cinco minutos se passam, a raiva o consome e com pressa ele despeja os legumes reservados sobre as quino-as ainda mornas e tempera de qualquer jeito.

— Ufa! Enfim estão prontas. Quer um bocadinho, Skoob?

O balançar da cabeça para um lado e para o outro meia dúzia de vezes respondeu a pergunta. Não, o Skoob não quer ração de humano. Pegando uma colher na gaveta, Aislan olha pra fora. A vizinha não está mais lá.

— Ela saiu, Skoob. Deve ter voltado para a sala. Quer saber? Cansei. Esses ventiladores quebram o galho. Vou fechar as janelas. Chega de palhaçada.

Assim ele faz. Com a panela na mão sai fechando todas as janelas. Chegando à janela da sala, ele comprova a sua suposição. A vizinha está lá, atenta aos seus movimentos bruscos, por sinal.

Janelas e cortinas fechadas e a paz reina naquele lugar. Jogo de futebol na TV, lá fora as músicas são encerradas, os quiosques são fechados. Os bêbados voltam tagarelando para suas casas e o silêncio se faz presente. Aislan abaixa o volume da TV e aprecia o único som do lugar. O som vindo da lagoa e da natureza.


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