Após a partida dos convidados, Estelle permaneceu para ajudar Marta. Enquanto lavavam os últimos copos, Marta percebeu o olhar vago da irmã, perdido em algum lugar muito além daquela cozinha. Havia uma palidez súbita em seu rosto, como se a cor tivesse drenado toda de uma vez, deixando apenas o corpo — presente, mas ausente.Em um breve instante de distração, Estelle deixou o refrigerante escorrer pela pia com mãos trêmulas, como se tivesse esquecido o que fazia. Pequenos sinais. Quase imperceptíveis. Mas, para quem conhecia Estelle, eram como rachaduras em uma represa prestes a ceder.Quando teve a chance, Marta se aproximou. Segurou levemente o braço de Estelle, com aquele cuidado que só quem ama em silêncio consegue oferecer.— Estelle… você está bem?A pergunta, simples, atravessou a muralha que Estelle havia erguido ao redor de si. Ela hesitou. Mordeu o lábio com força, os olhos fugindo para os cantos da cozinha como se procurassem abrigo.Então, em voz baixa, quas
Logo após a comissária de bordo informar que o avião pousaria em alguns minutos, e o piloto anunciar a temperatura de treze graus, bem como a chuva que caía sobre a cidade, Murilo fechou seu computador e o guardou na mochila que estava sob a poltrona à frente. Ele olhou pela pequena janela, onde a cidade iluminada se apresentou como um quadro vivo. De cima, a beleza da ilha era de tirar o fôlego; mas, dentro dele, tudo era cinza, um contraste gritante entre o espetáculo vibrante da paisagem e o peso sombrio de suas lembranças. Sentiu as mãos úmidas as secou no jeans que usava, esfregando com força, batendo as pontas dos dedos na coxa em seu estado de melancolia. Mesmo após três anos morando e trabalhando em Manaus, tentando esquecer o passado, não imaginava que estaria tão tenso ao retornar à sua cidade natal. A mesma pergunta não saia de sua cabeça. Por que voltara? Para procuraria seu irmão e tentar uma reaproximação? Talvez. A última vez que o tinha visto, tensão era muito grande
Era o sexto aniversário de Pablo. Estelle, sentada em uma cadeira na varanda, observava-o com um olhar afetuoso enquanto ele corria pelo jardim com seus amiguinhos. Não conseguia conter o fascínio pela semelhança entre ela e o filho. A pele escura e os cabelos castanhos anelados faziam dele quase uma cópia sua. Já as meninas, Marina, de nove anos, e Betriza, de doze, herdaram os cabelos lisos e os olhos castanhos claros do pai.Enquanto se divertia no jardim, Pablo frequentemente lançava olhares para a mãe, como se estivesse conferindo se ela ainda estava ali. A cada troca de olhares, um sorriso aliviado surgia em seu rosto. Era como se, de alguma forma, ele temesse perdê-la. No meio da brincadeira, Pablo parou de repente. O brilho habitual em seu rosto se apagou, dando lugar a uma expressão tensa e enigmática. Era como se uma presença invisível tivesse capturado sua atenção. Ele virou-se em direção à casa em frente, fixando seus olhos na construção de paredes descascadas e vidraças qu
Sem hesitar, ela correu em direção à escada. Antes que pudesse alcançar o primeiro degrau, uma rajada violenta de areia e vento atingiu seu rosto, forçando-a a parar. O impacto a fez fechar os olhos, enquanto um gemido de dor escapava de seus lábios. Mesmo sob o castigo impiedoso do vento que cortava sua pele, Estelle continuava a gritar por Pablo. Suas lágrimas e seu desespero se perdiam no caos ao redor. O turbilhão de areia dificultava seus movimentos, enquanto o medo e a dor a consumiam por dentro. De repente, algo pesado bateu contra suas pernas, derrubando-a de joelhos. Estelle caiu com um impacto seco, o chão áspero castigando ainda mais sua pele já ferida. Com o corpo tremendo de dor e medo, um terror gelado a invadiu: seria esse o fim? Ainda ajoelhada, lágrimas escorrendo por seu rosto sujo, ela ergueu a voz em súplica:— Leve-me, e deixe meu filho viver!" Em prantos, ela ficou ali, esperando o pior.Foi então que, de forma inesperada, um silêncio profundo tomou conta do ambie
Ele suspirou, suavizando o semblante.— Eu já te falei, Estelle. O incêndio na cozinha não foi de grandes proporções. As suas cicatrizes e as de Pablo não fazem sentido quando comparadas ao que aconteceu. É algo... incompreensível. Você e Pablo eram os únicos em casa naquele dia. Sei que você se sente culpada pelo incidente, mas precisa lembrar: ambos foram hospitalizados. E você, abalada pelo trauma, sofreu um colapso nervoso que resultou na sua amnésia seletiva.— Esse pesadelo repetitivo não representa a realidade. Acredite, Estelle, você não precisa carregar essa culpa. Vamos, tome um banho. Isso vai te ajudar a se acalmar. Sem resistência, ela deixou que ele a conduzisse até o banheiro. Seus passos eram leves, quase automáticos. No chuveiro, a água quente trouxe alívio momentâneo, envolvendo-a em um conforto superficial. As gotas escorriam pela pele, mas o peso em seu peito permanecia intacto. O eco do pesadelo ainda pairava em sua mente. Pouco depois, sentada diante do espelho, E
— Filho... — disse Paulo, a voz suave. Tinha que se policiar ao pronunciar as próximas palavras. Aquele momento era muito delicado. Não poderia falar algo que despertasse em Estelle a verdade sobre o incêndio. Não podia cometer qualquer deslize. Ele temia que qualquer palavra dita, qualquer gesto pudesse fazer Estelle lembrar da noite do incêndio, uma lembrança que ele sabia que não deveria ser despertada. Os medicamentos pareciam não surtir o efeito desejado, e ele se sentia cada vez mais impotente diante da situação.— Sua mãe precisa se alimentar. Já conversamos sobre isso. A calma em sua voz parecia ensaiada, como se ele estivesse seguindo um texto. Estelle apertou o abraço mais um pouco, como se estivesse tentando proteger Pablo de algo que nem ela mesma conseguia entender. Seus olhos estavam fixos em Paulo, com uma intensidade quase desesperada. Algo estava escondido no olhar dele, uma verdade que a prendia em um labirinto de sentimentos contraditórios e dúvidas sem fim. — Mamã
Sentado em sua poltrona favorita de couro branco, Rudney, com seu corpo magro de um metro e oitenta de altura, mantinha as longas pernas cruzadas, uma sobre a outra, enquanto o pé esquerdo balançava para cima e para baixo em um ritmo acelerado, denunciando seu nervosismo. O braço descansava na lateral da poltrona, enquanto os olhos permaneciam fechados. A cabeça, inclinada para a direita, repousava na mão em uma pose que exalava contrariedade consigo mesmo. Em sua mente, a conversa trocada com Paulo antes do início da terapia de Estelle se repetia como um eco insistente. Ele buscava desesperadamente uma solução, algo que o tirasse do buraco em que se meteu. Se tivesse sido mais firme, talvez não tivesse cedido à chantagem dele. Paulo o persuadiu a colaborar, cobrando favores do passado.O tratamento de Estelle, o processo de hipnoterapia, precisava ser minuciosamente direcionado. Paulo sempre dizia que era vital focar nos momentos felizes em família, evitando qualquer lembrança que rea
O sol se punha, tingindo o céu de laranja. A luz atravessava as cortinas entreabertas, mas ela mal notava a paisagem lá fora. Suspirou diante do peso das perguntas sem resposta. Mas uma certeza ela tinha: era evidente que Paulo conhecia a mulher. Estelle cruzou os braços, como se quisesse se abraçar — uma tentativa de se proteger do turbilhão que a atormentava.A luz fraca do pôr do sol tocava suavemente seu rosto, que exibia marcas visíveis de angústia, impossíveis de esconder. Ela queria lembrar. Queria gritar. Queria rasgar o véu denso que obscurecia suas memórias e finalmente encontrar a verdade. Mas, a cada tentativa, parecia esbarrar em uma parede invisível. Sua mente estava trancada em um lugar ao qual ela não tinha mais acesso.Seu corpo começou a tremer. Rapidamente, ela foi até a mesinha e pegou um de seus comprimidos. Conforme a medicação fazia efeito, sentiu-se mais relaxada. Tomou um banho e deitou-se, sem forças, para se juntar à família no jantar. Algum tempo depois, Bea