Era o sexto aniversário de Pablo. Estelle, sentada em uma cadeira na varanda, observava-o com um olhar afetuoso enquanto ele corria pelo jardim com seus amiguinhos. Não conseguia conter o fascínio pela semelhança entre ela e o filho. A pele escura e os cabelos castanhos anelados faziam dele quase uma cópia sua. Já as meninas, Marina, de nove anos, e Betriza, de doze, herdaram os cabelos lisos e os olhos castanhos claros do pai.
Enquanto se divertia no jardim, Pablo frequentemente lançava olhares para a mãe, como se estivesse conferindo se ela ainda estava ali. A cada troca de olhares, um sorriso aliviado surgia em seu rosto. Era como se, de alguma forma, ele temesse perdê-la. No meio da brincadeira, Pablo parou de repente. O brilho habitual em seu rosto se apagou, dando lugar a uma expressão tensa e enigmática. Era como se uma presença invisível tivesse capturado sua atenção. Ele virou-se em direção à casa em frente, fixando seus olhos na construção de paredes descascadas e vidraças quebradas, que exalava abandono e angústia. Sem pronunciar uma única palavra, deu as costas e começou a caminhar lentamente em direção à saída do jardim, ouvindo um chamado que ninguém mais escutou.
— Pablo? — chamou Estelle, estranhando a atitude do filho. Mas ele não respondeu.
Com passos firmes e rápidos, ele atravessou o portão e começou a cruzar a rua. Estelle tentou se levantar, mas suas pernas pareciam presas ao chão. Uma onda de pânico subiu por seu peito, deixando-a sem ar.
— Pablo, volte aqui! — ela gritou, sentindo a garganta apertar.
Mas ele não parou. Estelle o viu alcançar o portão enferrujado, que rangeu como se estivesse sendo empurrado por uma mão invisível. A porta, tão decadente quanto o restante, se abriu com facilidade. Pablo a atravessou, desaparecendo no interior sombrio.
— Pablo! Volta aqui, por favor! — ela implorou, a voz finalmente rompendo a barreira do desespero.
De repente, Pablo surgiu no batente da porta. A luz fraca iluminou o rosto dele, mas algo estava errado. Seu olhar estava vazio, distante, como se ele não estivesse ali de verdade. Estelle sentiu um frio na espinha, uma sensação que ela não conseguia compreender. Num esforço extremo, conseguiu se levantar, movida pelo instinto. Quase sem perceber, já estava diante da entrada da casa. Porém, antes que pudesse atravessá-la, a porta se fechou com força, como se repelisse sua presença. Instintivamente, ela tentou abri-la, mas recuou com um gemido de dor ao sentir o calor intenso da maçaneta queimou sua mão. Então, novamente, a porta se abriu, revelando Pablo parado à sua frente. Os olhos de Estelle se fixaram no filho, carregados de dor e desespero, ao notar que seus braços estavam cobertos de queimaduras.
— Mamãe... — a voz dele soou baixa, quase um sussurro, mas, em seguida, ele gritou com uma intensidade que fez cada nervo de Estelle se encolher: — Você não devia estar aqui!
O pânico a dominou, embaralhando seus pensamentos em um turbilhão caótico de medo e urgência. Ela avançou para agarrá-lo, mas ele se esquivou com um movimento ágil. Dando-lhe as costas, Pablo correu para a escuridão. Apesar do horror, tudo o que importava era alcançá-lo e protegê-lo. Seguindo Pablo, ela entrou em uma sala escura e desprovida de móveis, parando subitamente ao ver uma silhueta masculina parada contra a luz fraca que atravessava a janela empoeirada. O homem estava de frente para a janela, vestindo um terno impecável, as mãos enterradas nos bolsos, irradiando uma presença que era, ao mesmo tempo, imponente e ameaçadora.
— Paulo? — chamou Estelle, a voz trêmula, acreditando que fosse seu marido.
Ele não respondeu nem se moveu, permanecendo em um silêncio inquietante. Estelle ficou ali, estática, analisando cada detalhe, buscando algum vestígio de familiaridade que pudesse confirmar sua identidade.
— Paulo? — chamou novamente, desta vez com uma mistura de súplica e temor.
O homem reagiu. Lentamente, ele se virou para ela, mas seu rosto estava envolto em sombras, como se a escuridão fosse parte de quem ele era. Um calafrio percorreu Estelle enquanto seus olhos procuravam, em vão, uma certeza.
— Estelle, fico feliz que esteja aqui. Falou enquanto estendia as mãos na direção dela. Estelle deu um passo para trás, dividida entre a dúvida e o medo crescente. De repente, uma força invisível começou a puxá-la, arrastando-a para mais perto. Contra sua vontade, suas mãos avançaram lentamente até tocarem as dele. O toque trouxe a mesma onda calor insuportável, aumentando a queimadura deixada pela maçaneta. Ela tentou se afastar, mas ele a segurou com firmeza. O aperto parecia inquebrável, como se o homem quisesse envolvê-la com a escuridão que o cercava. Desesperada, Estelle lutou até conseguir se soltar. No mesmo instante, a sombra que ocultava o rosto dele se desfez, revelando alguém que não era Paulo, mas com uma inquietante semelhança. Os olhos do estranho brilhavam em um tom avermelhado, e sua boca se abriu, mas não foram palavras que saíram dela e sim labaredas, as chamas avançaram, queimando seus braços. Estelle gritou em agonia enquanto a dor se espalhava como raízes ardentes pelo corpo. De repente, ele explodiu com um estrondo ensurdecedor, e o grito de Estelle se fundiu ao barulho, ecoando como um trovão. Um clarão ofuscante iluminou a escuridão por um instante, antes que as paredes ao seu redor desaparecessem. Diante de seus olhos, surgiu um céu negro. As tábuas sob seus pés estavam irregulares, queimadas, exalando um cheiro forte de cinzas, um odor que parecia se entranhar em sua pele. No meio do caos, seus olhos captaram um movimento: Pablo. Ele subia a escada, desaparecendo no andar superior, aumentando seu desespero.
— Pablo! — clamou, sua voz ecoando no vazio, o silêncio engolindo suas palavras.
3
Sem hesitar, ela correu em direção à escada. Antes que pudesse alcançar o primeiro degrau, uma rajada violenta de areia e vento atingiu seu rosto, forçando-a a parar. O impacto a fez fechar os olhos, enquanto um gemido de dor escapava de seus lábios. Mesmo sob o castigo impiedoso do vento que cortava sua pele, Estelle continuava a gritar por Pablo. Suas lágrimas e seu desespero se perdiam no caos ao redor. O turbilhão de areia dificultava seus movimentos, enquanto o medo e a dor a consumiam por dentro. De repente, algo pesado bateu contra suas pernas, derrubando-a de joelhos. Estelle caiu com um impacto seco, o chão áspero castigando ainda mais sua pele já ferida. Com o corpo tremendo de dor e medo, um terror gelado a invadiu: seria esse o fim? Ainda ajoelhada, lágrimas escorrendo por seu rosto sujo, ela ergueu a voz em súplica:— Leve-me, apenas a mim, deixe meu filho viver!" Em prantos, ela ficou ali, esperando o pior.Foi então que, de forma inesperada, um silêncio pr
Ele suspirou, suavizando o semblante.— Eu já te falei, Estelle. O incêndio na cozinha não foi de grandes proporções. As suas cicatrizes e as de Pablo não fazem sentido quando comparadas ao que aconteceu. É algo... incompreensível. Você e Pablo eram os únicos em casa naquele dia. Sei que você se sente culpada pelo incidente, mas precisa lembrar: ambos foram hospitalizados. E você, abalada pelo trauma, sofreu um colapso nervoso que resultou na sua amnésia seletiva.— Esse pesadelo repetitivo não representa a realidade. Acredite, Estelle, você não precisa carregar essa culpa. Vamos, tome um banho. Isso vai te ajudar a se acalmar. Sem resistência, ela deixou que ele a conduzisse até o banheiro. Seus passos eram leves, quase automáticos. No chuveiro, a água quente trouxe alívio momentâneo, envolvendo-a em um conforto superficial. As gotas escorriam pela pele, mas o peso em seu peito permanecia intacto. O eco do pesadelo ainda pairava em sua mente. Pouco depois, sentada diante do espelho,
— Filho... — disse Paulo, a voz suave. Tinha que se policiar ao pronunciar as próximas palavras. Aquele momento era muito delicado. Não poderia falar algo que despertasse em Estelle a verdade sobre o incêndio. Não podia cometer qualquer deslize. Ele temia que qualquer palavra dita, qualquer gesto pudesse fazer Estelle lembrar da noite do incêndio, uma lembrança que ele sabia que não deveria ser despertada. Os medicamentos pareciam não surtir o efeito desejado, e ele se sentia cada vez mais impotente diante da situação.— Sua mãe precisa se alimentar. Já conversamos sobre isso. A calma em sua voz parecia ensaiada, como se ele estivesse seguindo um texto. Estelle apertou o abraço mais um pouco, como se estivesse tentando proteger Pablo de algo que nem ela mesma conseguia entender. Seus olhos estavam fixos em Paulo, com uma intensidade quase desesperada. Algo estava escondido no olhar dele, uma verdade que a prendia em um labirinto de sentimentos contraditórios e dúvidas sem fim. — Ma
Sentado em sua poltrona favorita de couro branco, Rudney, com seu corpo magro de um metro e oitenta de altura, mantinha as longas pernas cruzadas, uma sobre a outra, enquanto o pé esquerdo balançava para cima e para baixo em um ritmo acelerado, denunciando seu nervosismo. O braço descansava na lateral da poltrona, enquanto os olhos permaneciam fechados. A cabeça, inclinada para a direita, repousava na mão em uma pose que exalava contrariedade consigo mesmo. Em sua mente, a conversa trocada com Paulo antes do início da terapia de Estelle se repetia como um eco insistente. Ele buscava desesperadamente uma solução, algo que o tirasse do buraco em que se meteu. Se tivesse sido mais firme, talvez não tivesse cedido à chantagem dele. Paulo o persuadiu a colaborar, cobrando favores do passado. O tratamento de Estelle, o processo de hipnoterapia, precisava ser minuciosamente direcionado. Paulo sempre dizia que era vital focar nos momentos felizes em família, evitando qualquer
O sol se punha, tingindo o céu de laranja. A luz atravessava as cortinas entreabertas, mas ela mal notava a paisagem lá fora. Suspirou diante do peso das perguntas sem resposta. Mas uma certeza ela tinha: era evidente que Paulo conhecia a mulher. Estelle cruzou os braços, como se quisesse se abraçar — uma tentativa de se proteger do turbilhão que a atormentava. A luz fraca do pôr do sol tocava suavemente seu rosto, que exibia marcas visíveis de angústia, impossíveis de esconder. Ela queria lembrar. Queria gritar. Queria rasgar o véu denso que obscurecia suas memórias e finalmente encontrar a verdade. Mas, a cada tentativa, parecia esbarrar em uma parede invisível. Sua mente estava trancada em um lugar ao qual ela não tinha mais acesso. Seu corpo começou a tremer. Rapidamente, ela foi até a mesinha e pegou um de seus comprimidos. Conforme a medicação fazia efeito, sentiu-se mais relaxada. Tomou um banho e deitou-se, sem forças, para se juntar à família no jantar. Algum tempo depois, Be
Pelas frestas da janela entreaberta, ele observava. Os dedos apertavam o parapeito, enquanto seu olhar permanecia fixo na porta da casa em frente. O coração batia com força, quase sufocado pela expectativa. Ela chegaria, ele tinha certeza. Estava tudo pronto para o novo começo. As malas já estavam no carro. Assim que Estelle chegasse, eles partiriam e nunca mais olhariam para trás. Um futuro juntos, uma vida nova, sem o peso das mentiras que os cercavam. Paulo nunca mais os encontraria.Então, finalmente, ele a viu. Ela saiu apressada, quase correndo, e atravessou a rua. Murilo sentiu uma onda de alívio percorrer seu corpo enquanto abria a porta para ela. O momento que ele tanto aguardava havia chegado. Ela entrou na casa sem hesitar. A porta se fechou suavemente atrás dela, e ele a esperava, o corpo tenso, os olhos fixos nela.Murilo percebeu imediatamente que algo havia mudado. Estelle não o olhou como fazia antes; seus olhos estavam cravados no topo da escada. A p
Marta e Antônio saíram do consultório do obstetra transbordando de alegria. Enfim, seriam pais. Há um ano, começaram a buscar um tratamento ao perceberem que o método convencional não funcionaria. Agora, com a notícia do sucesso da fertilização, sentiam-se esperançosos. O médico informou que, em breve, poderiam descobrir o sexo do bebê, e essa novidade os enchia de expectativa. No entanto, uma sombra de tristeza cruzou o olhar de Marta ao lembrar-se de Estelle e dos sobrinhos. Queria tanto compartilhar essa felicidade com sua irmã! Mas Paulo não permitia que ela se aproximasse. A saudade era tão intensa que chegava a doer. Ela ainda recordava as ameaças dele: se insistisse, ele levaria Estelle e as crianças para um lugar tão distante que Marta nunca mais saberia deles. O medo de que ele cumprisse a promessa a fazia conformar-se em observá-los de longe. Isso ocorreu no dia em que, na clínica, precisou esconder-se ao perceber que Paulo notara sua presença. Antônio, ao notar a inquietaçã
Murilo saiu do hospital sentindo o peso da noite mal dormida arrastar-se sobre seus ombros. O corpo doía, exausto pelo turno interminável, e seus olhos ardiam com a falta de sono. Como se não bastasse, a discussão com Paulo ainda ecoava em sua mente, perturbando-o de forma inquietante. A revelação de que Pablo não era seu filho pesava em seu peito como um luto vivo, sufocante. Ao chegar ao carro, encostou-se contra a lataria fria, tentando clarear os pensamentos. Fechou os olhos por um instante e o mundo pareceu girar. Ele precisava descansar, mas não conseguiu convencer-se a voltar para casa. Não agora. A necessidade de ver Estelle era mais forte do que qualquer exaustão. Dirigiu-se até a casa dela e permaneceu ali por horas, observando em silêncio. Mas tudo o que encontrou foi um vazio angustiante, janelas fechadas, nenhum sinal de vida. Era como se o tempo tivesse parado naquele lugar. A fadiga começava a dominá-lo. Passou a mão pelo rosto, tentando afastar