Memórias podem ser traiçoeiras. Algumas se ocultam nas sombras da mente, esperando o momento certo para ressurgir. Outras se fragmentam, deixando apenas sensações e lacunas que imploram para serem preenchidas. Estelle está começando a lembrar... Mas será que toda verdade merece ser recordada? Algumas respostas trazem alívio, outras apenas reacendem dores adormecidas. E, no meio de tudo, uma pergunta inquietante permanece: o que realmente aconteceu naquela noite? Nem tudo o que é esquecido está perdido. Nem tudo o que é lembrado é real.
O turbilhão de emoções e desespero que levou Estelle até a casa de Murilo a fez cruzar a linha tênue entre a razão e a loucura. Lá fora, o silêncio imperava como um véu pesado, mas dentro das paredes, seus corações martelavam em ritmo de tambores de guerra – cada batida ecoando nas vigas da casa como um segredo proibido. Murilo não a questionou — apenas abriu os braços como um porto seguro, oferecendo palavras que ecoavam promessas antigas: “Você nunca precisou dele. Sempre fui eu.” E ela, frágil como vidro soprado, deixou-se quebrar em seus braços. Foi naquela noite, entre lençóis embebidos de culpa e desejo, que a semente de uma vida começou a crescer dentro dela. Quando o médico confirmou a gravidez semanas depois, o medo se instalou como uma faca no peito.Consumida pela culpa, ela confessou tudo a Paulo. Para sua surpresa, ele a perdoou e garantiu que não importava quem era o verdadeiro pai; criariam a criança como se fosse deles. No entanto, impôs uma condição inegociável: Es
Estelle respirou fundo antes de começar a falar. Com a voz trêmula, mas firme, ela narrou ao delegado cada fragmento de memória que conseguira recuperar. Contou sobre o cativeiro, sobre as manipulações de Murilo e Paulo, sobre os horrores que havia vivido e as mentiras que a fizeram duvidar da própria sanidade. Quando terminou, sentiu-se esgotada, como se tivesse esvaziado a alma.O delegado ouviu tudo atentamente e, sem hesitar, ordenou que uma viatura fosse enviada imediatamente à casa do casal para prendê-lo. No entanto, ao chegarem lá, não encontraram ninguém. A sensação de duplo perigo iminente permaneceu no ar, como um espectro silencioso à espreita.Paulo ligou para Murilo e, minutos depois, os dois estavam no carro de Murilo, estacionados em uma rua tranquila. O silêncio da noite parecia envolver tudo ao redor, tornando o ambiente ainda mais tenso. Paulo sabia que, no fundo, Murilo ainda alimentava uma chama de esperança, uma paixão que poderia ser facilmente manipulada.Aproxi
Dias depois, com a poeira baixada e as investigações encerradas, Estelle sentiu um vazio profundo. O peso das tragédias que marcaram sua vida parecia ainda pairar no ar, como uma nuvem escura que se recusava a dissipar. A morte de Murilo e Paulo, as consequências de escolhas passadas e a dor de tudo o que havia sido perdido a faziam se sentir como se estivesse presa em um ciclo interminável de sofrimento.Foi então que Antônio recebeu a resposta da universidade, informando que, caso ele não aceitasse a vaga no próximo semestre, o departamento de química teria que ser oferecido a outro professor. Sem hesitar, Antônio e Marta tomaram a decisão de retornar à Inglaterra o mais rápido possível, sabendo que o tempo era crucial.Marta, sempre ao seu lado, havia decidido acompanhar o marido, e seu convite para Estelle acompanhá-los foi, de alguma forma, um impulso que ela precisava. Não estava pronta para recomeçar sozinha, mas sabia que, com a ajuda da irmã do cunhado, poderia encontrar uma n
O avião tocou o solo inglês sob um céu acinzentado e uma fina garoa, como se o clima tivesse decidido refletir o estado de espírito de Estelle. Ao seu lado, Betriza bufava entediada, e Marina dormia com a cabeça em seu colo. Pablo, desperto e alerta, observava tudo com olhos curiosos.O aeroporto parecia silencioso demais. Era tudo muito limpo, muito frio, muito longe. Estelle engoliu em seco. Ao longe, um homem de cabelos grisalhos e uma senhora de postura elegante se aproximavam. Eram os pais de Antônio — e sorriam como se aquele momento fosse a chegada da própria primavera.A mãe de Antônio estendeu os braços com delicadeza e abraçou Antônio e Marta ao mesmo tempo, como quem já havia esperado demais por aquele reencontro. Estelle recebeu um abraço caloroso de Thomas Wycliffe e sentiu o impulso de recuar, mas Marina acordou bem nesse instante e, sem entender muito, caiu nos braços do pai de Antônio como se fosse o lugar mais natural do mundo. Betriza permaneceu imóvel, observando de
Dois anos e meio haviam se passado desde aquela madrugada de gritos, sangue e promessas quebradas. E há anos que a vida de Estelle tinha virado do avesso — desde que ela enfrentou o horror, o engano e a dor de uma escolha que nunca deveria ter sido imposta. Mas o tempo, com sua teimosia silenciosa, seguia seu curso. E Estelle também.A nova casa onde morava com os filhos ficava a poucos minutos de caminhada da residência de Marta. Era menor, discreta, envolta por um jardim com roseiras e lavandas que insistiam em florescer mesmo sob o clima cinzento de Londres. Estelle começava, enfim, a chamá-la de lar. As meninas já respondiam em inglês quando brincavam entre si. Marina falava como uma nativa, e Betriza — embora ainda se fechasse em saudades — aos poucos aceitava a ideia de que sua vida agora acontecia ali, longe das praias brasileiras.Estelle, porém, seguia em trânsito. A mente ainda cruzava pontes invisíveis entre passado e presente. O coração oscilava entre a paz que buscava e as
Dois anos e meio antes — Hospital Penitenciário de Florianópolis. A luz do hospital era branca demais. Fria demais. Quase agressiva. Murilo abriu os olhos com dificuldade, como se a pálpebra tivesse o peso do mundo. A dor vinha antes da memória — uma fisgada no peito, depois uma ardência no ombro, e então o silêncio espesso da sala estéril. Ele não sabia se estava vivo ou apenas sonhando em estar.Só depois, entre respirações curtas e tosses doloridas, lembrou-se do som do disparo. Do chão frio. Da confusão. E da certeza que teve de que morreria. Mas não morreu.Murilo sobreviveu.Foi preso antes mesmo de sair do hospital. Algemado à maca, sentiu pela primeira vez o peso não da bala, mas de tudo que carregava por dentro. A culpa, o amor, o arrependimento, os silêncios que permitiu, os erros que cometeu.Ele não era um homem violento. Nunca fora. Mas havia sequestrado Estelle. E isso bastava para defini-lo, ainda que no fundo soubesse: fez tudo por desespero, por amor —
Alguns dias antes da festa de aniversário de Marta e Antônio, ele chegou em casa com o peso do mundo sobre os ombros. O dia na faculdade havia sido denso, as aulas pareciam não ter fim, e tudo que ele queria era silêncio. Ao entrar, largou os livros sobre a mesa da sala com um suspiro longo e cansado. O som do couro batendo na madeira chamou a atenção de Marta, que conversava tranquilamente com a sogra sobre detalhes do bolo e das lembrancinhas.Ela olhou para o marido e algo em seu semblante a alarmou. Levantou-se discretamente e foi até ele, silenciosa. O olhar que trocaram dizia mais que palavras: algo estava errado. Esperou que ficassem a sós na cozinha.— O que aconteceu? — perguntou, com a voz baixa, mas firme.Antônio hesitou. Passou as mãos pelo rosto como quem tenta apagar um pesadelo. Seus olhos, quando se encontraram com os dela, já não tinham a mesma paz de antes.— A casa da Estelle foi vendida, Marta... — começou, mas a frase seguinte foi como uma
Após a partida dos convidados, Estelle permaneceu para ajudar Marta. Enquanto lavavam os últimos copos, Marta percebeu o olhar vago da irmã, perdido em algum lugar muito além daquela cozinha. Havia uma palidez súbita em seu rosto, como se a cor tivesse drenado toda de uma vez, deixando apenas o corpo — presente, mas ausente.Em um breve instante de distração, Estelle deixou o refrigerante escorrer pela pia com mãos trêmulas, como se tivesse esquecido o que fazia. Pequenos sinais. Quase imperceptíveis. Mas, para quem conhecia Estelle, eram como rachaduras em uma represa prestes a ceder.Quando teve a chance, Marta se aproximou. Segurou levemente o braço de Estelle, com aquele cuidado que só quem ama em silêncio consegue oferecer.— Estelle… você está bem?A pergunta, simples, atravessou a muralha que Estelle havia erguido ao redor de si. Ela hesitou. Mordeu o lábio com força, os olhos fugindo para os cantos da cozinha como se procurassem abrigo.Então, em voz baixa, quas