Sem hesitar, ela correu em direção à escada. Antes que pudesse alcançar o primeiro degrau, uma rajada violenta de areia e vento atingiu seu rosto, forçando-a a parar. O impacto a fez fechar os olhos, enquanto um gemido de dor escapava de seus lábios. Mesmo sob o castigo impiedoso do vento que cortava sua pele, Estelle continuava a gritar por Pablo. Suas lágrimas e seu desespero se perdiam no caos ao redor. O turbilhão de areia dificultava seus movimentos, enquanto o medo e a dor a consumiam por dentro. De repente, algo pesado bateu contra suas pernas, derrubando-a de joelhos. Estelle caiu com um impacto seco, o chão áspero castigando ainda mais sua pele já ferida. Com o corpo tremendo de dor e medo, um terror gelado a invadiu: seria esse o fim? Ainda ajoelhada, lágrimas escorrendo por seu rosto sujo, ela ergueu a voz em súplica:
— Leve-me, apenas a mim, deixe meu filho viver!" Em prantos, ela ficou ali, esperando o pior.
Foi então que, de forma inesperada, um silêncio profundo tomou conta do ambiente, como se o tempo tivesse parado. Estelle abriu os olhos, ofegante. O cenário ao redor havia mudado: as paredes estavam de volta, reluzentes e adornadas com flores delicadas. Uma luz cálida preenchia o espaço e, pela vidraça, o céu azul-claro brilhava com uma serenidade quase irreal, como se nada de terrível tivesse acontecido. Mas a tranquilidade aparente não a confortava. Pablo. Ela precisava encontrá-lo. Seu corpo, fraco e trêmulo, quase não a sustentava, mas a urgência era maior que sua exaustão. Com passos hesitantes, tentou se mover, cada movimento um desafio contra a angústia que crescia em seu peito. De repente, um tremor interrompeu seu avanço. A princípio, pensou que vinha de dentro de si, como se suas forças tivessem se esgotado de vez. Abraçou-se, tentando conter o medo, mas logo percebeu que o chão estava se movendo. Um calor insuportável emanava do alto da escada. Foi então que viu um rio de fogo descendo os degraus em sua direção.
— Pablo... — sussurrou, tomada por um sentimento esmagador de culpa.
Uma sensação estranha começou a tomar conta de seu ser, apagando o medo. Nada mais importava. O fogo não era mais um inimigo; ele já havia levado tudo o que ela tinha de mais precioso. Agora, o vazio era sua única companhia. O chão cedeu sob seus pés. Sem oferecer resistência, entregou-se à queda, como se o abismo fosse um abraço silencioso. A escuridão a envolveu por completo, e ela se deixou consumir.
Estelle acordou ofegante, com o coração disparado, ainda sentindo o horror do pesadelo. O fogo vindo da escada por onde Pablo subira ecoava em sua mente. A sensação de perda era tão vívida que parecia ter acontecido de verdade. Ela se levantou da cama, os pés gelados tocando o chão, e, com os olhos fixos na janela, não conseguiu afastar a imagem do fogo consumindo tudo. Mesmo sabendo que a casa à sua frente não era a mesma do pesadelo, não conseguiu evitar olhar, afastou a cortina e conferiu o que já sabia.
"Foi só um sonho ruim", pensou, encostando a testa na vidraça, fechou os olhos, tentando aliviar seus tremores e angústia. Ficou ali em pé, tentando conter as lágrimas, ela respirou fundo, buscando refúgio na calma frágil da realidade.
Com movimentos lentos, voltou, sentou-se na beira da cama, os ombros curvados. Seu olhar vagava pelo quarto. No criado-mudo, os frascos de comprimidos estavam alinhados com precisão meticulosa, como parte de um ritual incessante e desgastante. Seus olhos pousaram neles, e uma onda de desgosto cresceu em seu peito. Os rótulos prometiam controle e estabilidade, mas tudo o que ela via era dependência e fraqueza — uma prisão invisível que parecia apertá-la mais a cada dia. De repente, um impulso feroz a invadiu. Ela queria se libertar: dos remédios, do ciclo interminável, da dor que eles apenas mascaravam. Sem pensar, seus dedos se fecharam em torno de um dos frascos. Foi então que um som familiar ecoou pelo corredor — os passos de Paulo. A realidade voltou em um instante.
— Bom dia, querida — disse Paulo suavemente, entrando no quarto carregando uma bandeja e a colocando ao lado dos medicamentos. O aroma reconfortante de café fresco se espalhou pelo ambiente, mas para Estelle, o cheiro não passava de uma memória distante, uma sombra do que um dia fora acolhedor e agora parecia inalcançável. Ela se perguntava como sua mente conseguia guardar detalhes banais, como o café da manhã, enquanto memórias que julgava essenciais permaneciam encobertas.
Ele se aproximou e sentou-se ao seu lado. Inclinou-se para beijá-la levemente nos lábios, mas Estelle sentiu o corpo enrijecer. Por mais que tentasse, não conseguiu corresponder. Algo dentro dela se retraía, como uma porta que se fechava silenciosamente, bloqueando qualquer tentativa de reconexão. O gesto de afeto, que deveria confortá-la, tornou-se um lembrete doloroso de um mundo ao qual ela já não sentia pertencer.
— Teve o pesadelo novamente? — perguntou ele, observando o rosto pálido e o olhar perdido. Apesar da preocupação evidente, tentou suavizar a tensão com um sorriso breve, segurando delicadamente sua mão. Ela hesitou, respirando fundo antes de responder:
— Sim.Paulo apertou sua mão com firmeza, inclinando-se para encontrar seus olhos.
— Sei que dói, mas é só um pesadelo. Você está segura. E Pablo está bem, pode acreditar.Estelle balançou a cabeça em concordância, mas sua voz saiu carregada de sofrimento.
— Sim, sim, Paulo, mas tenho a sensação de não parecer só um pesadelo. Parecem mais lembranças, é real demais, como se estivesse preso dentro de mim e compreendo que o pesadelo não é real, mas a sensação de perda é tão vívida... parece tão palpável. Falou, sua mão tremeu debaixo da dele.
4
Ele suspirou, suavizando o semblante.— Eu já te falei, Estelle. O incêndio na cozinha não foi de grandes proporções. As suas cicatrizes e as de Pablo não fazem sentido quando comparadas ao que aconteceu. É algo... incompreensível. Você e Pablo eram os únicos em casa naquele dia. Sei que você se sente culpada pelo incidente, mas precisa lembrar: ambos foram hospitalizados. E você, abalada pelo trauma, sofreu um colapso nervoso que resultou na sua amnésia seletiva.— Esse pesadelo repetitivo não representa a realidade. Acredite, Estelle, você não precisa carregar essa culpa. Vamos, tome um banho. Isso vai te ajudar a se acalmar. Sem resistência, ela deixou que ele a conduzisse até o banheiro. Seus passos eram leves, quase automáticos. No chuveiro, a água quente trouxe alívio momentâneo, envolvendo-a em um conforto superficial. As gotas escorriam pela pele, mas o peso em seu peito permanecia intacto. O eco do pesadelo ainda pairava em sua mente. Pouco depois, sentada diante do espelho,
— Filho... — disse Paulo, a voz suave. Tinha que se policiar ao pronunciar as próximas palavras. Aquele momento era muito delicado. Não poderia falar algo que despertasse em Estelle a verdade sobre o incêndio. Não podia cometer qualquer deslize. Ele temia que qualquer palavra dita, qualquer gesto pudesse fazer Estelle lembrar da noite do incêndio, uma lembrança que ele sabia que não deveria ser despertada. Os medicamentos pareciam não surtir o efeito desejado, e ele se sentia cada vez mais impotente diante da situação.— Sua mãe precisa se alimentar. Já conversamos sobre isso. A calma em sua voz parecia ensaiada, como se ele estivesse seguindo um texto. Estelle apertou o abraço mais um pouco, como se estivesse tentando proteger Pablo de algo que nem ela mesma conseguia entender. Seus olhos estavam fixos em Paulo, com uma intensidade quase desesperada. Algo estava escondido no olhar dele, uma verdade que a prendia em um labirinto de sentimentos contraditórios e dúvidas sem fim. — Ma
Sentado em sua poltrona favorita de couro branco, Rudney, com seu corpo magro de um metro e oitenta de altura, mantinha as longas pernas cruzadas, uma sobre a outra, enquanto o pé esquerdo balançava para cima e para baixo em um ritmo acelerado, denunciando seu nervosismo. O braço descansava na lateral da poltrona, enquanto os olhos permaneciam fechados. A cabeça, inclinada para a direita, repousava na mão em uma pose que exalava contrariedade consigo mesmo. Em sua mente, a conversa trocada com Paulo antes do início da terapia de Estelle se repetia como um eco insistente. Ele buscava desesperadamente uma solução, algo que o tirasse do buraco em que se meteu. Se tivesse sido mais firme, talvez não tivesse cedido à chantagem dele. Paulo o persuadiu a colaborar, cobrando favores do passado. O tratamento de Estelle, o processo de hipnoterapia, precisava ser minuciosamente direcionado. Paulo sempre dizia que era vital focar nos momentos felizes em família, evitando qualquer
O sol se punha, tingindo o céu de laranja. A luz atravessava as cortinas entreabertas, mas ela mal notava a paisagem lá fora. Suspirou diante do peso das perguntas sem resposta. Mas uma certeza ela tinha: era evidente que Paulo conhecia a mulher. Estelle cruzou os braços, como se quisesse se abraçar — uma tentativa de se proteger do turbilhão que a atormentava. A luz fraca do pôr do sol tocava suavemente seu rosto, que exibia marcas visíveis de angústia, impossíveis de esconder. Ela queria lembrar. Queria gritar. Queria rasgar o véu denso que obscurecia suas memórias e finalmente encontrar a verdade. Mas, a cada tentativa, parecia esbarrar em uma parede invisível. Sua mente estava trancada em um lugar ao qual ela não tinha mais acesso. Seu corpo começou a tremer. Rapidamente, ela foi até a mesinha e pegou um de seus comprimidos. Conforme a medicação fazia efeito, sentiu-se mais relaxada. Tomou um banho e deitou-se, sem forças, para se juntar à família no jantar. Algum tempo depois, Be
Pelas frestas da janela entreaberta, ele observava. Os dedos apertavam o parapeito, enquanto seu olhar permanecia fixo na porta da casa em frente. O coração batia com força, quase sufocado pela expectativa. Ela chegaria, ele tinha certeza. Estava tudo pronto para o novo começo. As malas já estavam no carro. Assim que Estelle chegasse, eles partiriam e nunca mais olhariam para trás. Um futuro juntos, uma vida nova, sem o peso das mentiras que os cercavam. Paulo nunca mais os encontraria.Então, finalmente, ele a viu. Ela saiu apressada, quase correndo, e atravessou a rua. Murilo sentiu uma onda de alívio percorrer seu corpo enquanto abria a porta para ela. O momento que ele tanto aguardava havia chegado. Ela entrou na casa sem hesitar. A porta se fechou suavemente atrás dela, e ele a esperava, o corpo tenso, os olhos fixos nela.Murilo percebeu imediatamente que algo havia mudado. Estelle não o olhou como fazia antes; seus olhos estavam cravados no topo da escada. A p
Marta e Antônio saíram do consultório do obstetra transbordando de alegria. Enfim, seriam pais. Há um ano, começaram a buscar um tratamento ao perceberem que o método convencional não funcionaria. Agora, com a notícia do sucesso da fertilização, sentiam-se esperançosos. O médico informou que, em breve, poderiam descobrir o sexo do bebê, e essa novidade os enchia de expectativa. No entanto, uma sombra de tristeza cruzou o olhar de Marta ao lembrar-se de Estelle e dos sobrinhos. Queria tanto compartilhar essa felicidade com sua irmã! Mas Paulo não permitia que ela se aproximasse. A saudade era tão intensa que chegava a doer. Ela ainda recordava as ameaças dele: se insistisse, ele levaria Estelle e as crianças para um lugar tão distante que Marta nunca mais saberia deles. O medo de que ele cumprisse a promessa a fazia conformar-se em observá-los de longe. Isso ocorreu no dia em que, na clínica, precisou esconder-se ao perceber que Paulo notara sua presença. Antônio, ao notar a inquietaçã
Murilo saiu do hospital sentindo o peso da noite mal dormida arrastar-se sobre seus ombros. O corpo doía, exausto pelo turno interminável, e seus olhos ardiam com a falta de sono. Como se não bastasse, a discussão com Paulo ainda ecoava em sua mente, perturbando-o de forma inquietante. A revelação de que Pablo não era seu filho pesava em seu peito como um luto vivo, sufocante. Ao chegar ao carro, encostou-se contra a lataria fria, tentando clarear os pensamentos. Fechou os olhos por um instante e o mundo pareceu girar. Ele precisava descansar, mas não conseguiu convencer-se a voltar para casa. Não agora. A necessidade de ver Estelle era mais forte do que qualquer exaustão. Dirigiu-se até a casa dela e permaneceu ali por horas, observando em silêncio. Mas tudo o que encontrou foi um vazio angustiante, janelas fechadas, nenhum sinal de vida. Era como se o tempo tivesse parado naquele lugar. A fadiga começava a dominá-lo. Passou a mão pelo rosto, tentando afastar
Sentada diante da janela, Estelle afundava-se na maciez da poltrona de veludo azul. A sala, decorada com refinamento, refletia um gosto impecável em cada detalhe meticulosamente escolhido. Tudo ali exalava ordem e serenidade, como se o tempo fluísse sem pressa. Mas dentro dela, o caos era absoluto. Sua mente fervilhava em desordem, consumida pelas lembranças dispersas e pela inquietação que não lhe dava trégua. Seus olhos se perdiam na linha delicada do horizonte, onde o mar se fundia ao céu em um único tom azul. A memória daquela noite agitada, quando partiram às pressas para Porto Belo, ainda latejava em sua mente. Paulo estava visivelmente abalado na noite da partida. Caminhava pelo quarto como uma sombra, parando diante da janela com uma expressão tensa. Algo havia acontecido antes de ele entrar, mas se recusava a compartilhar. No fundo, sabia que esse acontecimento era apenas mais um fio na teia de segredos que Paulo escondia dela. Ele pedia para que ela confia