Murilo saiu do hospital sentindo o peso da noite mal dormida arrastar-se sobre seus ombros. O corpo doía, exausto pelo turno interminável, e seus olhos ardiam com a falta de sono. Como se não bastasse, a discussão com Paulo ainda ecoava em sua mente, perturbando-o de forma inquietante. A revelação de que Pablo não era seu filho pesava em seu peito como um luto vivo, sufocante. Ao chegar ao carro, encostou-se contra a lataria fria, tentando clarear os pensamentos. Fechou os olhos por um instante e o mundo pareceu girar. Ele precisava descansar, mas não conseguiu convencer-se a voltar para casa. Não agora. A necessidade de ver Estelle era mais forte do que qualquer exaustão. Dirigiu-se até a casa dela e permaneceu ali por horas, observando em silêncio. Mas tudo o que encontrou foi um vazio angustiante, janelas fechadas, nenhum sinal de vida. Era como se o tempo tivesse parado naquele lugar. A fadiga começava a dominá-lo. Passou a mão pelo rosto, tentando afastar
Sentada diante da janela, Estelle afundava-se na maciez da poltrona de veludo azul. A sala, decorada com refinamento, refletia um gosto impecável em cada detalhe meticulosamente escolhido. Tudo ali exalava ordem e serenidade, como se o tempo fluísse sem pressa. Mas dentro dela, o caos era absoluto. Sua mente fervilhava em desordem, consumida pelas lembranças dispersas e pela inquietação que não lhe dava trégua. Seus olhos se perdiam na linha delicada do horizonte, onde o mar se fundia ao céu em um único tom azul. A memória daquela noite agitada, quando partiram às pressas para Porto Belo, ainda latejava em sua mente. Paulo estava visivelmente abalado na noite da partida. Caminhava pelo quarto como uma sombra, parando diante da janela com uma expressão tensa. Algo havia acontecido antes de ele entrar, mas se recusava a compartilhar. No fundo, sabia que esse acontecimento era apenas mais um fio na teia de segredos que Paulo escondia dela. Ele pedia para que ela confia
Do lado de fora do consultório, o sol da tarde aquecia a calçada, mas Estelle mal notava. Estava absorta, envolvida pela conversa animada das crianças. Fazia tempo que não tinha um momento assim — leve, quase normal —, e cada risada delas parecia afastar, ainda que por um instante, a sombra de inquietação que a acompanhava. Seu peito se encheu de uma sensação de gratidão: felicidade pelo momento, mas também um medo silencioso de que ele se desfizesse como um sonho.— Mamãe, podemos ir ao shopping? — perguntou Betriza, os olhos brilhando de expectativa. — Faz tanto tempo que não passeamos juntos!Estelle sorriu, sentindo o coração amolecer e um calor reconfortante se espalhar por seu peito. A ideia de um tempo descontraído em família parecia tentadora. — Podemos, sim — respondeu, passando a mão nos cabelos da filha. — O que acham de tomarmos um lanche por lá? As crianças comemoraram com empolgação, suas vozes misturando-se em risadas e pedidos animados. No
No hospital onde começara a trabalhar, Murilo estava em seu consultório. Com os cotovelos apoiados na mesa, ele segurava a cabeça, seus pensamentos girando em torno do momento em que passara por detrás da cadeira de Estelle no restaurante. Três anos acreditando em sua morte, três anos consumido pela culpa, sem um dia de trégua. E agora, sabendo da mentira cruel de Paulo, sua dor, em vez de aliviar, parecia aumentar a cada instante.— Inferno! — Sua voz ecoou pelas paredes brancas do consultório, mas o verdadeiro abismo estava dentro dele, queimando como uma chama incontrolável.Levantou a cabeça e, com as mãos trêmulas, abriu a gaveta, fixando o olhar nos comprimidos. Já havia ultrapassado a dose recomendada, como médico sabia muito bem do risco que estava correndo, mas precisava calar os pensamentos, precisava de paz. Estendeu a mão em direção ao frasco, mas o som do telefone à sua frente interrompeu seu gesto. Fechou a gaveta com força e, segundos depois, cam
Assim que a porta se fechou, Paulo permaneceu imóvel, fitando o vazio. O peso das palavras de Marta ainda ecoava em sua mente, misturando-se à crescente ansiedade de perder o controle. Ele passou a mão pelo rosto, sentindo a barba por fazer arranhar seus dedos, enquanto tentava organizar os pensamentos. Marta não era alguém que desistia facilmente. Sua presença e sua determinação em não ceder mais às chantagens representavam uma ameaça real. A perda de controle era aterradora, pois Estelle poderia se lembrar do passado — e lembrar que estava prestes a deixá-lo, com a ajuda de Murilo. Foram suas mentiras que a levaram a pegar o carro naquela manhã, numa tentativa desesperada de fugir. Ele nunca imaginara que isso resultaria no acidente que quase tirara sua vida. Paulo fechou os olhos, tentando controlar a dor que não vinha apenas de sua perna machucada, mas também do que havia se perdido entre ele e Estelle. Cada palavra que Marta dizia fazia seu peito apertar, mas e
No meio da madrugada, o toque estridente do celular cortou o silêncio da casa. Marta acordou abruptamente, o coração disparado, enquanto um calafrio subia por sua espinha. Meio atordoada, esticou o braço para a mesa de cabeceira, acendeu a luz da arandela e pegou o aparelho. O visor brilhava com um número desconhecido, e uma sensação de inquietação tomou conta dela. Imediatamente, seus pensamentos se voltaram para Estelle e seus sobrinhos.Ao lado, Antônio já estava acordado, os olhos fixos nela, indagadores, como se pressentisse que aquela chamada não trazia boas notícias. Marta hesitou por um instante, o dedo pairando sobre a tela, como se parte dela não quisesse saber o que aquela chamada significava. Finalmente, com um suspiro, ela atendeu.— Alô?Do outro lado da linha, uma voz firme, mas contida, se identificou:— Boa noite, senhora Marta. Aqui é o detetive Eduardo, da Delegacia de Desaparecidos de Florianópolis. Lamento incomodá-la a esta hora, mas precisaría
Logo após a comissária de bordo informar que o avião pousaria em alguns minutos, e o piloto anunciar a temperatura de treze graus, bem como a chuva que caía sobre a cidade, Murilo fechou seu computador e o guardou na mochila que estava sob a poltrona à frente. Ele olhou pela pequena janela, onde a cidade iluminada se apresentou como um quadro vivo. De cima, a beleza da ilha era de tirar o fôlego; mas, dentro dele, tudo era cinza, um contraste gritante entre o espetáculo vibrante da paisagem e o peso sombrio de suas lembranças. Sentiu as mãos úmidas as secou no jeans que usava, esfregando com força, batendo as pontas dos dedos na coaxa em seu estado de melancólico. Mesmo após três anos morando e trabalhando em Manaus, tentando esquecer o passado, não imaginava que estaria tão tenso ao retornar à sua cidade natal. A mesma pergunta ainda não saia de sua cabeça. Por que voltara? Para procuraria seu irmão e tentaria uma reaproximação? Talvez, a última vez que o tinha
Era o sexto aniversário de Pablo. Estelle, sentada em uma cadeira na varanda, observava-o com um olhar afetuoso enquanto ele corria pelo jardim com seus amiguinhos. Não conseguia conter o fascínio pela semelhança entre ela e o filho. A pele escura e os cabelos castanhos anelados faziam dele quase uma cópia sua. Já as meninas, Marina, de nove anos, e Betriza, de doze, herdaram os cabelos lisos e os olhos castanhos claros do pai.Enquanto se divertia no jardim, Pablo frequentemente lançava olhares para a mãe, como se estivesse conferindo se ela ainda estava ali. A cada troca de olhares, um sorriso aliviado surgia em seu rosto. Era como se, de alguma forma, ele temesse perdê-la. No meio da brincadeira, Pablo parou de repente. O brilho habitual em seu rosto se apagou, dando lugar a uma expressão tensa e enigmática. Era como se uma presença invisível tivesse capturado sua atenção. Ele virou-se em direção à casa em frente, fixando seus olhos na construção de paredes descasca