Assim que a porta se fechou, Paulo permaneceu imóvel, fitando o vazio. O peso das palavras de Marta ainda ecoava em sua mente, misturando-se à crescente ansiedade de perder o controle. Ele passou a mão pelo rosto, sentindo a barba por fazer arranhar seus dedos, enquanto tentava organizar os pensamentos. Marta não era alguém que desistia facilmente. Sua presença e sua determinação em não ceder mais às chantagens representavam uma ameaça real. A perda de controle era aterradora, pois Estelle poderia se lembrar do passado — e lembrar que estava prestes a deixá-lo, com a ajuda de Murilo. Foram suas mentiras que a levaram a pegar o carro naquela manhã, numa tentativa desesperada de fugir. Ele nunca imaginara que isso resultaria no acidente que quase tirara sua vida e a de seus filhos.Paulo fechou os olhos, tentando controlar a dor que não vinha apenas de sua perna machucada, mas também do que havia se perdido entre ele e Estelle. Cada palavra que Marta dizia fazia seu peito apertar, mas el
No meio da madrugada, o toque estridente do celular cortou o silêncio da casa. Marta acordou abruptamente, o coração disparado, enquanto um calafrio subia por sua espinha. Meio atordoada, esticou o braço para a mesa de cabeceira, acendeu a luz da arandela e pegou o aparelho. O visor brilhava com um número desconhecido, e uma sensação de inquietação tomou conta dela. Imediatamente, seus pensamentos se voltaram para Estelle e seus sobrinhos.Ao lado, Antônio já estava acordado, os olhos fixos nela, indagadores, como se pressentisse que aquela chamada não trazia boas notícias. Marta hesitou por um instante, o dedo pairando sobre a tela, como se parte dela não quisesse saber o que aquela chamada significava. Finalmente, com um suspiro, ela atendeu. — Alô?Do outro lado da linha, uma voz firme, mas contida, se identificou: — Boa noite, senhora Marta. Aqui é o delegado Eduardo, da Delegacia de Desaparecidos de Florianópolis. Lamento incomodá-la a esta hora, mas precisaríamos que a senhora
Paulo acordou ainda sentindo o efeito do tranquilizante. A cabeça parecia oca, e o corpo flutuava em uma estranha leveza. A dor na perna, ao menos, havia diminuído. Olhou para a mesinha ao lado da cama e viu que a comida havia sido substituída por um café da manhã simples. Sentou-se devagar, começou a comer com pressa e percebeu que a fome era maior do que imaginava. Cada mordida no pãozinho parecia acordá-lo um pouco mais, mas a névoa em sua mente ainda não se dissipava. A confusão persistia, e ele lutava para se sentir realmente desperto.A porta se abriu devagar, e a cabeça de um homem surgiu na pequena abertura. Ao ver Paulo acordado, ele entrou sem pedir licença. Imediatamente, Paulo ficou apreensivo. O homem era um policial — alto, forte, com uma postura que denunciava anos de experiência. Mas não era sua aparência que incomodava Paulo. Era o motivo de sua presença.— Senhor Paulo, sou o delegado Eduardo Vasconcelos, da delegacia de desaparecidos — disse o
Murilo estava sentado no canto mais escuro do cativeiro, onde a luz fraca mal alcançava seu corpo. Seus olhos fixos em Estelle, que dormia profundamente, estudavam cada detalhe dela com uma intensidade perturbadora. Observava a respiração calma, o leve tremor dos lábios e os movimentos sutis enquanto ela permanecia impassível. Estava fascinado, quase hipnotizado, como se tentasse decifrar os segredos que ela guardava mesmo em seu estado inconsciente. Mas não podia ignorar os curativos na cabeça, as escoriações no rosto que marcavam o acidente. Cada ferimento era um lembrete doloroso de que Paulo não conseguira protegê-la. Como pudera deixar isso acontecer? Como permitira que ela chegasse a esse estado? A raiva crescia dentro dele, não apenas por Paulo, mas por si mesmo. Que se deixou enganar pelas mentiras do irmão.— Paulo sempre foi o culpado — murmurou, com os olhos fixos no rosto sereno dela. — Tudo o que está acontecendo agora é por causa dele. Ele fez você acreditar que eram uma
Antônio estacionou o carro nos fundos do pátio do hospital, longe dos holofotes dos repórteres que se aglomeravam na entrada principal. Cada flash de câmera parecia uma ameaça, uma lembrança de que o desaparecimento de Estelle não era mais um segredo. Ele olhou para Marta, cujo rosto pálido refletia a exaustão de dias sem respostas. Um frio cortante percorreu seu estômago ao pensar na cunhada desaparecida. Quase três dias haviam se passado, e as autoridades ainda não tinham nenhuma pista sobre seu paradeiro. A cada dia decorrido, a angústia aumentava.Do outro lado do estacionamento, Rudney observava Antônio ajudar Marta a descer do carro. Seus olhos fixaram-se nela por um momento. Ela havia se tornado uma mulher incrivelmente bela, mas era mais do que isso. Havia uma força e uma determinação em seus olhos que ele sempre admirara. Ele se lembrou dela na juventude, da paixão que sentira por ela, mas que nunca confessara. A diferença de idade parecia um abismo na época, e ele, determinad
Antônio dirigia com cuidado, com Paulo e as crianças no carro. Eles acabavam de sair do hospital, e o silêncio no veículo era quase palpável. Os semblantes sérios e os olhos distantes indicavam que cada um estava perdido em seus próprios pensamentos, imersos nas tensões que a situação trazia.Quando Antônio virou à esquerda, Paulo, com voz áspera, interrompeu o silêncio: — O endereço da minha casa fica em outra direção. Sem olhar para trás, Marta respondeu com firmeza: — Sua casa não tem condições de nos abrigar, Paulo. Eu não vou ficar longe das crianças. Estamos morando na casa dos meus pais agora. Lá temos quartos suficientes e uma suíte no térreo, já que você não pode subir e descer escadas. Além disso, já matriculei as crianças em uma escola a duas quadras da casa.Betriza perguntou se não voltariam mais para Porto Belo e por que a mãe não tinha vindo com eles. Pablo, que estava no colo dela, olhou fixamente para Marta, esperando uma resposta. Sorrindo para ele e alisando seu c
Naquela mesma noite, após a discussão com Paulo, Marta sentou-se na varanda da casa dos pais, o café ainda quente entre as mãos. O aroma suave da bebida misturava-se ao cheiro da noite, enquanto o vento trazia consigo memórias que ela tentara enterrar há muito tempo. Era estranho como, após anos, aquela cena ainda conseguia fazê-la sentir um nó no estômago, como se o passado insistisse em não ser esquecido.Ela fechou os olhos, e a imagem de Rudney invadiu sua mente como se fosse ontem. O rosto dele, a voz firme, as palavras cortantes — tudo voltava com uma clareza que a deixava sem ar. Marta apertou a xícara com mais força, sentindo o calor do café penetrar em suas mãos. "Por que ele ainda tem esse poder sobre mim?", pensou, frustrada consigo mesma.Era uma noite quente de verão, e ela tinha apenas dezoito anos. Rudney, alguns anos mais velho, sempre fora uma figura fascinante para ela — inteligente, charmoso e com um ar de mistério que a atraía como um ímã. Naquela noite, após uma fe
Estelle sentiu uma brisa suave acariciar seu rosto. Um toque sutil que trazia um breve conforto. Logo em seguida, algo quente e macio tocou seus lábios. Deslizou suavemente por sua face, deixando um rastro de calor familiar. Sem abrir os olhos, ela sorriu, saboreando a ternura daquele momento. Uma risada masculina, grave e suave, soou perto do seu ouvido. O coração dela acelerou por um instante. Ainda imersa na estranha mistura de paz e inquietação, Estelle abriu os olhos de repente. Encontrou um par de olhos azuis que a observavam, com um sorriso contido e divertido. A visão do homem tão próximo a ela era desconcertante. Seu corpo congelou antes mesmo de sua mente processar o que estava acontecendo. O coração martelava no peito, como se ela tivesse sido arrancada de um sonho bom e jogada de volta a um pesadelo. Ela permaneceu imóvel, encarando-o. Aquele rosto que agora já era familiar. Ela fechou os olhos e moveu a cabeça para o lado, evitando o contato com ele.— Estelle, não fuja. O