Do lado de fora do consultório, o sol da tarde aquecia a calçada, mas Estelle mal notava. Estava absorta, envolvida pela conversa animada das crianças. Fazia tempo que não tinha um momento assim — leve, quase normal —, e cada risada delas parecia afastar, ainda que por um instante, a sombra de inquietação que a acompanhava. Seu peito se encheu de uma sensação de gratidão: felicidade pelo momento, mas também um medo silencioso de que ele se desfizesse como um sonho.— Mamãe, podemos ir ao shopping? — perguntou Betriza, os olhos brilhando de expectativa. — Faz tanto tempo que não passeamos juntos!Estelle sorriu, sentindo o coração amolecer e um calor reconfortante se espalhar por seu peito. A ideia de um tempo descontraído em família parecia tentadora. — Podemos, sim — respondeu, passando a mão nos cabelos da filha. — O que acham de tomarmos um lanche por lá? As crianças comemoraram com empolgação, suas vozes misturando-se em risadas e pedidos animados. No
No hospital onde começara a trabalhar, Murilo estava em seu consultório. Com os cotovelos apoiados na mesa, ele segurava a cabeça, seus pensamentos girando em torno do momento em que passara por detrás da cadeira de Estelle no restaurante. Três anos acreditando em sua morte, três anos consumido pela culpa, sem um dia de trégua. E agora, sabendo da mentira cruel de Paulo, sua dor, em vez de aliviar, parecia aumentar a cada instante.— Inferno! — Sua voz ecoou pelas paredes brancas do consultório, mas o verdadeiro abismo estava dentro dele, queimando como uma chama incontrolável.Levantou a cabeça e, com as mãos trêmulas, abriu a gaveta, fixando o olhar nos comprimidos. Já havia ultrapassado a dose recomendada, como médico sabia muito bem do risco que estava correndo, mas precisava calar os pensamentos, precisava de paz. Estendeu a mão em direção ao frasco, mas o som do telefone à sua frente interrompeu seu gesto. Fechou a gaveta com força e, segundos depois, cam
Assim que a porta se fechou, Paulo permaneceu imóvel, fitando o vazio. O peso das palavras de Marta ainda ecoava em sua mente, misturando-se à crescente ansiedade de perder o controle. Ele passou a mão pelo rosto, sentindo a barba por fazer arranhar seus dedos, enquanto tentava organizar os pensamentos. Marta não era alguém que desistia facilmente. Sua presença e sua determinação em não ceder mais às chantagens representavam uma ameaça real. A perda de controle era aterradora, pois Estelle poderia se lembrar do passado — e lembrar que estava prestes a deixá-lo, com a ajuda de Murilo. Foram suas mentiras que a levaram a pegar o carro naquela manhã, numa tentativa desesperada de fugir. Ele nunca imaginara que isso resultaria no acidente que quase tirara sua vida. Paulo fechou os olhos, tentando controlar a dor que não vinha apenas de sua perna machucada, mas também do que havia se perdido entre ele e Estelle. Cada palavra que Marta dizia fazia seu peito apertar, mas e
No meio da madrugada, o toque estridente do celular cortou o silêncio da casa. Marta acordou abruptamente, o coração disparado, enquanto um calafrio subia por sua espinha. Meio atordoada, esticou o braço para a mesa de cabeceira, acendeu a luz da arandela e pegou o aparelho. O visor brilhava com um número desconhecido, e uma sensação de inquietação tomou conta dela. Imediatamente, seus pensamentos se voltaram para Estelle e seus sobrinhos.Ao lado, Antônio já estava acordado, os olhos fixos nela, indagadores, como se pressentisse que aquela chamada não trazia boas notícias. Marta hesitou por um instante, o dedo pairando sobre a tela, como se parte dela não quisesse saber o que aquela chamada significava. Finalmente, com um suspiro, ela atendeu.— Alô?Do outro lado da linha, uma voz firme, mas contida, se identificou:— Boa noite, senhora Marta. Aqui é o detetive Eduardo, da Delegacia de Desaparecidos de Florianópolis. Lamento incomodá-la a esta hora, mas precisaría
Logo após a comissária de bordo informar que o avião pousaria em alguns minutos, e o piloto anunciar a temperatura de treze graus, bem como a chuva que caía sobre a cidade, Murilo fechou seu computador e o guardou na mochila que estava sob a poltrona à frente. Ele olhou pela pequena janela, onde a cidade iluminada se apresentou como um quadro vivo. De cima, a beleza da ilha era de tirar o fôlego; mas, dentro dele, tudo era cinza, um contraste gritante entre o espetáculo vibrante da paisagem e o peso sombrio de suas lembranças. Sentiu as mãos úmidas as secou no jeans que usava, esfregando com força, batendo as pontas dos dedos na coaxa em seu estado de melancólico. Mesmo após três anos morando e trabalhando em Manaus, tentando esquecer o passado, não imaginava que estaria tão tenso ao retornar à sua cidade natal. A mesma pergunta ainda não saia de sua cabeça. Por que voltara? Para procuraria seu irmão e tentaria uma reaproximação? Talvez, a última vez que o tinha
Era o sexto aniversário de Pablo. Estelle, sentada em uma cadeira na varanda, observava-o com um olhar afetuoso enquanto ele corria pelo jardim com seus amiguinhos. Não conseguia conter o fascínio pela semelhança entre ela e o filho. A pele escura e os cabelos castanhos anelados faziam dele quase uma cópia sua. Já as meninas, Marina, de nove anos, e Betriza, de doze, herdaram os cabelos lisos e os olhos castanhos claros do pai.Enquanto se divertia no jardim, Pablo frequentemente lançava olhares para a mãe, como se estivesse conferindo se ela ainda estava ali. A cada troca de olhares, um sorriso aliviado surgia em seu rosto. Era como se, de alguma forma, ele temesse perdê-la. No meio da brincadeira, Pablo parou de repente. O brilho habitual em seu rosto se apagou, dando lugar a uma expressão tensa e enigmática. Era como se uma presença invisível tivesse capturado sua atenção. Ele virou-se em direção à casa em frente, fixando seus olhos na construção de paredes descasca
Sem hesitar, ela correu em direção à escada. Antes que pudesse alcançar o primeiro degrau, uma rajada violenta de areia e vento atingiu seu rosto, forçando-a a parar. O impacto a fez fechar os olhos, enquanto um gemido de dor escapava de seus lábios. Mesmo sob o castigo impiedoso do vento que cortava sua pele, Estelle continuava a gritar por Pablo. Suas lágrimas e seu desespero se perdiam no caos ao redor. O turbilhão de areia dificultava seus movimentos, enquanto o medo e a dor a consumiam por dentro. De repente, algo pesado bateu contra suas pernas, derrubando-a de joelhos. Estelle caiu com um impacto seco, o chão áspero castigando ainda mais sua pele já ferida. Com o corpo tremendo de dor e medo, um terror gelado a invadiu: seria esse o fim? Ainda ajoelhada, lágrimas escorrendo por seu rosto sujo, ela ergueu a voz em súplica:— Leve-me, apenas a mim, deixe meu filho viver!" Em prantos, ela ficou ali, esperando o pior.Foi então que, de forma inesperada, um silêncio pr
Ele suspirou, suavizando o semblante.— Eu já te falei, Estelle. O incêndio na cozinha não foi de grandes proporções. As suas cicatrizes e as de Pablo não fazem sentido quando comparadas ao que aconteceu. É algo... incompreensível. Você e Pablo eram os únicos em casa naquele dia. Sei que você se sente culpada pelo incidente, mas precisa lembrar: ambos foram hospitalizados. E você, abalada pelo trauma, sofreu um colapso nervoso que resultou na sua amnésia seletiva.— Esse pesadelo repetitivo não representa a realidade. Acredite, Estelle, você não precisa carregar essa culpa. Vamos, tome um banho. Isso vai te ajudar a se acalmar. Sem resistência, ela deixou que ele a conduzisse até o banheiro. Seus passos eram leves, quase automáticos. No chuveiro, a água quente trouxe alívio momentâneo, envolvendo-a em um conforto superficial. As gotas escorriam pela pele, mas o peso em seu peito permanecia intacto. O eco do pesadelo ainda pairava em sua mente. Pouco depois, sentada diante do espelho,