— Filho... — disse Paulo, a voz suave. Tinha que se policiar ao pronunciar as próximas palavras. Aquele momento era muito delicado. Não poderia falar algo que despertasse em Estelle a verdade sobre o incêndio. Não podia cometer qualquer deslize. Ele temia que qualquer palavra dita, qualquer gesto pudesse fazer Estelle lembrar da noite do incêndio, uma lembrança que ele sabia que não deveria ser despertada. Os medicamentos pareciam não surtir o efeito desejado, e ele se sentia cada vez mais impotente diante da situação.
— Sua mãe precisa se alimentar. Já conversamos sobre isso. A calma em sua voz parecia ensaiada, como se ele estivesse seguindo um texto. Estelle apertou o abraço mais um pouco, como se estivesse tentando proteger Pablo de algo que nem ela mesma conseguia entender. Seus olhos estavam fixos em Paulo, com uma intensidade quase desesperada. Algo estava escondido no olhar dele, uma verdade que a prendia em um labirinto de sentimentos contraditórios e dúvidas sem fim.
— Mamãe, está doendo! Pablo reclamou, tentando se soltar ao sentir o abraço apertando-o com mais força. O corpo de Estelle reagiu imediatamente, afrouxou o abraço rapidamente, seus olhos permaneceram fixos nele, procurando desesperadamente por algum sinal de que tudo estava bem. Sua voz saiu trêmula:
— Você está bem, meu amor? Pablo, com um olhar assustado, pulou de seu colo, se escondendo atrás de Paulo. — Desculpe, meu filho, te machuquei? Perdoe a mamãe, meu amor. Só estou um pouco cansada, não tenha medo, eu nunca faria nada para te machucar, eu te amo, meu filho... — disse ela, tentando forçar um sorriso. O sorriso falhou ao ver lágrimas de Pablo antes de ele esconder seu rosto na perna de Paulo. A reação do filho a fez sentir um golpe no peito. Ela quase havia machucado Pablo, mas não foi por querer — foi um reflexo, uma reação instintiva, um impulso de proteção.
O que estava acontecendo? As perguntas se acumulavam em sua mente, mas as respostas continuavam sendo nada mais que sombras impenetráveis. De repente, uma dor lancinante tomou a cabeça de Estelle. A intensidade era tão avassaladora que ela levou uma mão à testa, os dedos pressionando a pele com força, tentando aliviar a pressão crescente. O mundo ao seu redor começou a perder o foco. As paredes do quarto se distorciam, se afastando e se aproximando, como se o espaço ao seu redor estivesse em movimento, desmoronando lentamente.
O som da sua própria respiração se tornava abafado, distante. Cada pulsação de dor era um eco em sua mente, como se tentasse arrancar dela a compreensão de que realmente havia acontecido. Ela sentia que a verdade estava ali, ao alcance de seus dedos, mas a cada tentativa de alcançá-la, ela se distanciava mais e mais. Paulo ainda estava com o olhar fixo nela, tentando manter a calma, mas havia um receio evidente em seus olhos. Vendo Estelle pegar a xícara de café com as mãos trêmulas, o receio de perder o controle tomou conta dele. A urgência de agir foi súbita e implacável. Virando-se para Pablo, ele colocou uma mão no ombro do filho, com um gesto firme, tentando não revelar o tumulto interno que o consumia.
— Vamos. Precisamos sair agora. Pablo olhou para Estelle uma última vez, os olhos cheios de incerteza, antes de seguir o pai para fora do quarto. O som de seus passos ecoou pelo corredor, e o silêncio que se seguiu foi quase opressor. Estelle permaneceu ali, sozinha, com a dor pulsando em sua cabeça, acompanhada de uma sensação avassaladora de que algo vital estava sendo tirado dela. Algo que ela não conseguia alcançar, mas que sabia que estava lá, esperando para ser descoberto.
Paulo desceu os degraus rapidamente com Pablo nos braços. Assim que entrou na cozinha, se deparou com os olhos acusadores de suas duas filhas.
— Pai. Chamou Beatriz, observando Paulo enquanto ele colocava Pablo sentado à mesa.
— Sim — respondeu ele, sem olhar para ela.
— Pai, quando vai contar a verdade para ela? Não percebe que essa mentira está machucando minha mãe cada dia mais? Estou vendo ela piorar, não melhorar. Essa versão do incêndio que você contou não muda a realidade. Marina e eu já decidimos: se você não contar, nós mesmas contaremos.
Paulo ergueu a voz:
— Escutem!
Ao notar o olhar assustado de Pablo e o início de um choro, ele respirou fundo e controlou o tom.
— Escutem bem, vocês duas. Eu proíbo! Vocês não podem nem sequer insinuar esse assunto para sua mãe. Sabem que ela está fazendo terapia justamente para lembrar sem traumas. Eu também sou médico dessa área, esqueceram? Se o tratamento não estivesse correto, eu seria o primeiro a contestar o médico dela. Então, não se envolvam no que não entendem. Não queiram ser responsáveis por algo trágico acontecendo com sua mãe.
Ele lançou um olhar severo, sua expressão deixando claro que não admitiria objeções.
— Fui claro?
Diante do silêncio das filhas, ele virou-se para Pablo.
— Cuidem do seu irmão.
A ordem ríspida foi a última coisa que disse antes de sair da cozinha, deixando um silêncio pesado atrás de si.
6
Sentado em sua poltrona favorita de couro branco, Rudney, com seu corpo magro de um metro e oitenta de altura, mantinha as longas pernas cruzadas, uma sobre a outra, enquanto o pé esquerdo balançava para cima e para baixo em um ritmo acelerado, denunciando seu nervosismo. O braço descansava na lateral da poltrona, enquanto os olhos permaneciam fechados. A cabeça, inclinada para a direita, repousava na mão em uma pose que exalava contrariedade consigo mesmo. Em sua mente, a conversa trocada com Paulo antes do início da terapia de Estelle se repetia como um eco insistente. Ele buscava desesperadamente uma solução, algo que o tirasse do buraco em que se meteu. Se tivesse sido mais firme, talvez não tivesse cedido à chantagem dele. Paulo o persuadiu a colaborar, cobrando favores do passado. O tratamento de Estelle, o processo de hipnoterapia, precisava ser minuciosamente direcionado. Paulo sempre dizia que era vital focar nos momentos felizes em família, evitando qualquer
O sol se punha, tingindo o céu de laranja. A luz atravessava as cortinas entreabertas, mas ela mal notava a paisagem lá fora. Suspirou diante do peso das perguntas sem resposta. Mas uma certeza ela tinha: era evidente que Paulo conhecia a mulher. Estelle cruzou os braços, como se quisesse se abraçar — uma tentativa de se proteger do turbilhão que a atormentava. A luz fraca do pôr do sol tocava suavemente seu rosto, que exibia marcas visíveis de angústia, impossíveis de esconder. Ela queria lembrar. Queria gritar. Queria rasgar o véu denso que obscurecia suas memórias e finalmente encontrar a verdade. Mas, a cada tentativa, parecia esbarrar em uma parede invisível. Sua mente estava trancada em um lugar ao qual ela não tinha mais acesso. Seu corpo começou a tremer. Rapidamente, ela foi até a mesinha e pegou um de seus comprimidos. Conforme a medicação fazia efeito, sentiu-se mais relaxada. Tomou um banho e deitou-se, sem forças, para se juntar à família no jantar. Algum tempo depois, Be
Pelas frestas da janela entreaberta, ele observava. Os dedos apertavam o parapeito, enquanto seu olhar permanecia fixo na porta da casa em frente. O coração batia com força, quase sufocado pela expectativa. Ela chegaria, ele tinha certeza. Estava tudo pronto para o novo começo. As malas já estavam no carro. Assim que Estelle chegasse, eles partiriam e nunca mais olhariam para trás. Um futuro juntos, uma vida nova, sem o peso das mentiras que os cercavam. Paulo nunca mais os encontraria.Então, finalmente, ele a viu. Ela saiu apressada, quase correndo, e atravessou a rua. Murilo sentiu uma onda de alívio percorrer seu corpo enquanto abria a porta para ela. O momento que ele tanto aguardava havia chegado. Ela entrou na casa sem hesitar. A porta se fechou suavemente atrás dela, e ele a esperava, o corpo tenso, os olhos fixos nela.Murilo percebeu imediatamente que algo havia mudado. Estelle não o olhou como fazia antes; seus olhos estavam cravados no topo da escada. A p
Marta e Antônio saíram do consultório do obstetra transbordando de alegria. Enfim, seriam pais. Há um ano, começaram a buscar um tratamento ao perceberem que o método convencional não funcionaria. Agora, com a notícia do sucesso da fertilização, sentiam-se esperançosos. O médico informou que, em breve, poderiam descobrir o sexo do bebê, e essa novidade os enchia de expectativa. No entanto, uma sombra de tristeza cruzou o olhar de Marta ao lembrar-se de Estelle e dos sobrinhos. Queria tanto compartilhar essa felicidade com sua irmã! Mas Paulo não permitia que ela se aproximasse. A saudade era tão intensa que chegava a doer. Ela ainda recordava as ameaças dele: se insistisse, ele levaria Estelle e as crianças para um lugar tão distante que Marta nunca mais saberia deles. O medo de que ele cumprisse a promessa a fazia conformar-se em observá-los de longe. Isso ocorreu no dia em que, na clínica, precisou esconder-se ao perceber que Paulo notara sua presença. Antônio, ao notar a inquietaçã
Murilo saiu do hospital sentindo o peso da noite mal dormida arrastar-se sobre seus ombros. O corpo doía, exausto pelo turno interminável, e seus olhos ardiam com a falta de sono. Como se não bastasse, a discussão com Paulo ainda ecoava em sua mente, perturbando-o de forma inquietante. A revelação de que Pablo não era seu filho pesava em seu peito como um luto vivo, sufocante. Ao chegar ao carro, encostou-se contra a lataria fria, tentando clarear os pensamentos. Fechou os olhos por um instante e o mundo pareceu girar. Ele precisava descansar, mas não conseguiu convencer-se a voltar para casa. Não agora. A necessidade de ver Estelle era mais forte do que qualquer exaustão. Dirigiu-se até a casa dela e permaneceu ali por horas, observando em silêncio. Mas tudo o que encontrou foi um vazio angustiante, janelas fechadas, nenhum sinal de vida. Era como se o tempo tivesse parado naquele lugar. A fadiga começava a dominá-lo. Passou a mão pelo rosto, tentando afastar
Sentada diante da janela, Estelle afundava-se na maciez da poltrona de veludo azul. A sala, decorada com refinamento, refletia um gosto impecável em cada detalhe meticulosamente escolhido. Tudo ali exalava ordem e serenidade, como se o tempo fluísse sem pressa. Mas dentro dela, o caos era absoluto. Sua mente fervilhava em desordem, consumida pelas lembranças dispersas e pela inquietação que não lhe dava trégua. Seus olhos se perdiam na linha delicada do horizonte, onde o mar se fundia ao céu em um único tom azul. A memória daquela noite agitada, quando partiram às pressas para Porto Belo, ainda latejava em sua mente. Paulo estava visivelmente abalado na noite da partida. Caminhava pelo quarto como uma sombra, parando diante da janela com uma expressão tensa. Algo havia acontecido antes de ele entrar, mas se recusava a compartilhar. No fundo, sabia que esse acontecimento era apenas mais um fio na teia de segredos que Paulo escondia dela. Ele pedia para que ela confia
Do lado de fora do consultório, o sol da tarde aquecia a calçada, mas Estelle mal notava. Estava absorta, envolvida pela conversa animada das crianças. Fazia tempo que não tinha um momento assim — leve, quase normal —, e cada risada delas parecia afastar, ainda que por um instante, a sombra de inquietação que a acompanhava. Seu peito se encheu de uma sensação de gratidão: felicidade pelo momento, mas também um medo silencioso de que ele se desfizesse como um sonho.— Mamãe, podemos ir ao shopping? — perguntou Betriza, os olhos brilhando de expectativa. — Faz tanto tempo que não passeamos juntos!Estelle sorriu, sentindo o coração amolecer e um calor reconfortante se espalhar por seu peito. A ideia de um tempo descontraído em família parecia tentadora. — Podemos, sim — respondeu, passando a mão nos cabelos da filha. — O que acham de tomarmos um lanche por lá? As crianças comemoraram com empolgação, suas vozes misturando-se em risadas e pedidos animados. No
No hospital onde começara a trabalhar, Murilo estava em seu consultório. Com os cotovelos apoiados na mesa, ele segurava a cabeça, seus pensamentos girando em torno do momento em que passara por detrás da cadeira de Estelle no restaurante. Três anos acreditando em sua morte, três anos consumido pela culpa, sem um dia de trégua. E agora, sabendo da mentira cruel de Paulo, sua dor, em vez de aliviar, parecia aumentar a cada instante.— Inferno! — Sua voz ecoou pelas paredes brancas do consultório, mas o verdadeiro abismo estava dentro dele, queimando como uma chama incontrolável.Levantou a cabeça e, com as mãos trêmulas, abriu a gaveta, fixando o olhar nos comprimidos. Já havia ultrapassado a dose recomendada, como médico sabia muito bem do risco que estava correndo, mas precisava calar os pensamentos, precisava de paz. Estendeu a mão em direção ao frasco, mas o som do telefone à sua frente interrompeu seu gesto. Fechou a gaveta com força e, segundos depois, cam