Ele suspirou, suavizando o semblante.
— Eu já te falei, Estelle. O incêndio na cozinha não foi de grandes proporções. As suas cicatrizes e as de Pablo não fazem sentido quando comparadas ao que aconteceu. É algo... incompreensível. Você e Pablo eram os únicos em casa naquele dia. Sei que você se sente culpada pelo incidente, mas precisa lembrar: ambos foram hospitalizados. E você, abalada pelo trauma, sofreu um colapso nervoso que resultou na sua amnésia seletiva.
— Esse pesadelo repetitivo não representa a realidade. Acredite, Estelle, você não precisa carregar essa culpa. Vamos, tome um banho. Isso vai te ajudar a se acalmar. Sem resistência, ela deixou que ele a conduzisse até o banheiro. Seus passos eram leves, quase automáticos. No chuveiro, a água quente trouxe alívio momentâneo, envolvendo-a em um conforto superficial. As gotas escorriam pela pele, mas o peso em seu peito permanecia intacto. O eco do pesadelo ainda pairava em sua mente. Pouco depois, sentada diante do espelho, Estelle permitiu que Paulo penteasse seus cabelos. Seus dedos trabalhavam com delicadeza quase ritualística, tentando transformar aquele gesto em um momento de cuidado e proximidade. Ela fixou os olhos no reflexo no espelho. E mais uma vez via a imagem de uma desconhecida. Sentia como se não estivesse presente em sua própria vida, passava os dias distantes, desligada do ambiente em que vivia.
— Pronto... — disse ele, com um sorriso suave, a mão segurando uma mecha de seu cabelo. Ele inclinou-se levemente, tentando encontrar seu olhar.
— Obrigada... — murmurou, evitando encontrar o olhar dele através do espelho.
— Sente-se na poltrona — disse ele, com uma suavidade temerosa. — Vou buscar outra xícara de café fresco. Depois de comer, tome os medicamentos. Vai se sentir melhor.
Ele saiu do quarto em silêncio, seu semblante era um misto de preocupação e algo mais que Estelle já tinha observado em outras ocasiões. Segundos depois, Pablo apareceu hesitante na porta do quarto. Seus pequenos pés estavam firmemente plantados no chão, como se cruzar aquele limiar exigisse coragem. Seus olhos buscaram os de Estelle, carregando uma mistura de cautela e expectativa. Algo em sua expressão — um temor sutil escondido sob a inocência infantil — reluzia em seu olhar.
— Está tudo bem, meu amor? — perguntou ela, suavemente.
Pablo balançou a cabeça afirmativamente, mas sua postura denunciava uma tensão que ele não conseguia disfarçar. Ele deu um passo à frente, os olhos fixos nela, esperando algo que nem ele parecia compreender. Estelle, como sempre, teve sua atenção atraída pelas pequenas cicatrizes de queimadura no braço do garoto. Marcas quase imperceptíveis, mas que, para ela, eram protagonistas recorrentes de seus pesadelos. Instintivamente, olhou para os próprios braços, buscando uma conexão, um eco da dor que compartilhava com o filho. As cicatrizes não eram apenas marcas físicas; eram um vínculo inquebrável com uma história sombria que ela não conseguia alcançar. No entanto, cada vez que via as cicatrizes, algo sussurrava ao fundo de sua mente, insistindo que a explicação de Paulo não era toda a verdade. Sempre que tentava recuperar as lembranças, era como se sua mente fosse invadida por uma névoa espessa, apagando qualquer vislumbre do que realmente acontecera. Ela se esforçava para conectar os fragmentos, mas era como tentar montar um quebra-cabeça onde as peças desapareciam assim que eram tocadas. Contudo, as cicatrizes nos braços de Estelle pareciam conter uma mensagem silenciosa, algo que contradizia a história cuidadosamente narrada por Paulo. Elas pareciam carregar um segredo que resistia a ser esquecido, alimentando as dúvidas que cresciam a cada um de seus pesadelos.
— Mamãe? — A voz de Pablo a trouxe de volta à realidade. Sua fala era suave, quase hesitante, como se ele soubesse que algo estava errado.
Estelle piscou, afastando o peso dos pensamentos que a envolviam. Seus olhos encontraram os dele, pequenos e atentos.
— Venha aqui, querido — disse ela, sua voz tremendo levemente. Estendeu as mãos, sentindo uma necessidade quase desesperada de abraçá-lo, como se o gesto pudesse dissolver as sombras que rondavam seus pensamentos e apagar os resquícios do pesadelo. Pablo se aninhou em seu colo, descansando a cabeça em seu peito. Um sorriso tímido surgiu em seu rosto, um reflexo de conforto que aquecia e, ao mesmo tempo, quebrava seu coração. Ela o envolveu em um braço carinhoso. O abraço foi firme, um esforço de proteger, de resgatar, de esquecer. Seus dedos deslizaram pelo bracinho de Pablo até encontrarem as cicatrizes. Foi um toque leve, quase imperceptível, mas a textura da pele marcada provocou um arrepio em Estelle. Não pela aspereza, mas pelo peso simbólico daquela conexão silenciosa entre mãe e filho. E, mais uma vez, ela sentiu o vazio dentro de si se agitar, como se aquelas pequenas marcas fossem a chave para um mistério que ela ainda não podia desvendar.
— Foi o fogo, mamãe. Mas agora já passou, não dói mais — disse Pablo, esforçando-se para soar firme, mas a leve tremulação em sua voz traiu sua tentativa de esconder o desconforto. Estelle fechou os olhos por um momento, sentindo o peso das palavras do filho. Ela pressionou os lábios contra a cicatriz no braço dele, um beijo suave que misturava ternura e uma tristeza profunda, como se tentasse apagar a dor que aquela marca carregava.
— Eu sei, querido — murmurou ela, embora soubesse que, na verdade, não sabia de nada. O vazio se espalhou dentro dela, e a sensação de impotência a envolveu mais uma vez.
O olhar de Estelle se desviou para a porta, encontrando os de Paulo. Ele estava parado ali, com a xícara nas mãos, em silêncio. Observava-os com uma expressão incomum, como se não fosse o homem que ela conhecia, mas um estranho. Seus olhos não transmitiam preocupação, nem carinho. Só havia uma análise fria e implacável, como se estivesse medindo algo que ela não conseguia entender.
5
— Filho... — disse Paulo, a voz suave. Tinha que se policiar ao pronunciar as próximas palavras. Aquele momento era muito delicado. Não poderia falar algo que despertasse em Estelle a verdade sobre o incêndio. Não podia cometer qualquer deslize. Ele temia que qualquer palavra dita, qualquer gesto pudesse fazer Estelle lembrar da noite do incêndio, uma lembrança que ele sabia que não deveria ser despertada. Os medicamentos pareciam não surtir o efeito desejado, e ele se sentia cada vez mais impotente diante da situação.— Sua mãe precisa se alimentar. Já conversamos sobre isso. A calma em sua voz parecia ensaiada, como se ele estivesse seguindo um texto. Estelle apertou o abraço mais um pouco, como se estivesse tentando proteger Pablo de algo que nem ela mesma conseguia entender. Seus olhos estavam fixos em Paulo, com uma intensidade quase desesperada. Algo estava escondido no olhar dele, uma verdade que a prendia em um labirinto de sentimentos contraditórios e dúvidas sem fim. — Ma
Sentado em sua poltrona favorita de couro branco, Rudney, com seu corpo magro de um metro e oitenta de altura, mantinha as longas pernas cruzadas, uma sobre a outra, enquanto o pé esquerdo balançava para cima e para baixo em um ritmo acelerado, denunciando seu nervosismo. O braço descansava na lateral da poltrona, enquanto os olhos permaneciam fechados. A cabeça, inclinada para a direita, repousava na mão em uma pose que exalava contrariedade consigo mesmo. Em sua mente, a conversa trocada com Paulo antes do início da terapia de Estelle se repetia como um eco insistente. Ele buscava desesperadamente uma solução, algo que o tirasse do buraco em que se meteu. Se tivesse sido mais firme, talvez não tivesse cedido à chantagem dele. Paulo o persuadiu a colaborar, cobrando favores do passado. O tratamento de Estelle, o processo de hipnoterapia, precisava ser minuciosamente direcionado. Paulo sempre dizia que era vital focar nos momentos felizes em família, evitando qualquer
O sol se punha, tingindo o céu de laranja. A luz atravessava as cortinas entreabertas, mas ela mal notava a paisagem lá fora. Suspirou diante do peso das perguntas sem resposta. Mas uma certeza ela tinha: era evidente que Paulo conhecia a mulher. Estelle cruzou os braços, como se quisesse se abraçar — uma tentativa de se proteger do turbilhão que a atormentava. A luz fraca do pôr do sol tocava suavemente seu rosto, que exibia marcas visíveis de angústia, impossíveis de esconder. Ela queria lembrar. Queria gritar. Queria rasgar o véu denso que obscurecia suas memórias e finalmente encontrar a verdade. Mas, a cada tentativa, parecia esbarrar em uma parede invisível. Sua mente estava trancada em um lugar ao qual ela não tinha mais acesso. Seu corpo começou a tremer. Rapidamente, ela foi até a mesinha e pegou um de seus comprimidos. Conforme a medicação fazia efeito, sentiu-se mais relaxada. Tomou um banho e deitou-se, sem forças, para se juntar à família no jantar. Algum tempo depois, Be
Pelas frestas da janela entreaberta, ele observava. Os dedos apertavam o parapeito, enquanto seu olhar permanecia fixo na porta da casa em frente. O coração batia com força, quase sufocado pela expectativa. Ela chegaria, ele tinha certeza. Estava tudo pronto para o novo começo. As malas já estavam no carro. Assim que Estelle chegasse, eles partiriam e nunca mais olhariam para trás. Um futuro juntos, uma vida nova, sem o peso das mentiras que os cercavam. Paulo nunca mais os encontraria.Então, finalmente, ele a viu. Ela saiu apressada, quase correndo, e atravessou a rua. Murilo sentiu uma onda de alívio percorrer seu corpo enquanto abria a porta para ela. O momento que ele tanto aguardava havia chegado. Ela entrou na casa sem hesitar. A porta se fechou suavemente atrás dela, e ele a esperava, o corpo tenso, os olhos fixos nela.Murilo percebeu imediatamente que algo havia mudado. Estelle não o olhou como fazia antes; seus olhos estavam cravados no topo da escada. A p
Marta e Antônio saíram do consultório do obstetra transbordando de alegria. Enfim, seriam pais. Há um ano, começaram a buscar um tratamento ao perceberem que o método convencional não funcionaria. Agora, com a notícia do sucesso da fertilização, sentiam-se esperançosos. O médico informou que, em breve, poderiam descobrir o sexo do bebê, e essa novidade os enchia de expectativa. No entanto, uma sombra de tristeza cruzou o olhar de Marta ao lembrar-se de Estelle e dos sobrinhos. Queria tanto compartilhar essa felicidade com sua irmã! Mas Paulo não permitia que ela se aproximasse. A saudade era tão intensa que chegava a doer. Ela ainda recordava as ameaças dele: se insistisse, ele levaria Estelle e as crianças para um lugar tão distante que Marta nunca mais saberia deles. O medo de que ele cumprisse a promessa a fazia conformar-se em observá-los de longe. Isso ocorreu no dia em que, na clínica, precisou esconder-se ao perceber que Paulo notara sua presença. Antônio, ao notar a inquietaçã
Murilo saiu do hospital sentindo o peso da noite mal dormida arrastar-se sobre seus ombros. O corpo doía, exausto pelo turno interminável, e seus olhos ardiam com a falta de sono. Como se não bastasse, a discussão com Paulo ainda ecoava em sua mente, perturbando-o de forma inquietante. A revelação de que Pablo não era seu filho pesava em seu peito como um luto vivo, sufocante. Ao chegar ao carro, encostou-se contra a lataria fria, tentando clarear os pensamentos. Fechou os olhos por um instante e o mundo pareceu girar. Ele precisava descansar, mas não conseguiu convencer-se a voltar para casa. Não agora. A necessidade de ver Estelle era mais forte do que qualquer exaustão. Dirigiu-se até a casa dela e permaneceu ali por horas, observando em silêncio. Mas tudo o que encontrou foi um vazio angustiante, janelas fechadas, nenhum sinal de vida. Era como se o tempo tivesse parado naquele lugar. A fadiga começava a dominá-lo. Passou a mão pelo rosto, tentando afastar
Sentada diante da janela, Estelle afundava-se na maciez da poltrona de veludo azul. A sala, decorada com refinamento, refletia um gosto impecável em cada detalhe meticulosamente escolhido. Tudo ali exalava ordem e serenidade, como se o tempo fluísse sem pressa. Mas dentro dela, o caos era absoluto. Sua mente fervilhava em desordem, consumida pelas lembranças dispersas e pela inquietação que não lhe dava trégua. Seus olhos se perdiam na linha delicada do horizonte, onde o mar se fundia ao céu em um único tom azul. A memória daquela noite agitada, quando partiram às pressas para Porto Belo, ainda latejava em sua mente. Paulo estava visivelmente abalado na noite da partida. Caminhava pelo quarto como uma sombra, parando diante da janela com uma expressão tensa. Algo havia acontecido antes de ele entrar, mas se recusava a compartilhar. No fundo, sabia que esse acontecimento era apenas mais um fio na teia de segredos que Paulo escondia dela. Ele pedia para que ela confia
Do lado de fora do consultório, o sol da tarde aquecia a calçada, mas Estelle mal notava. Estava absorta, envolvida pela conversa animada das crianças. Fazia tempo que não tinha um momento assim — leve, quase normal —, e cada risada delas parecia afastar, ainda que por um instante, a sombra de inquietação que a acompanhava. Seu peito se encheu de uma sensação de gratidão: felicidade pelo momento, mas também um medo silencioso de que ele se desfizesse como um sonho.— Mamãe, podemos ir ao shopping? — perguntou Betriza, os olhos brilhando de expectativa. — Faz tanto tempo que não passeamos juntos!Estelle sorriu, sentindo o coração amolecer e um calor reconfortante se espalhar por seu peito. A ideia de um tempo descontraído em família parecia tentadora. — Podemos, sim — respondeu, passando a mão nos cabelos da filha. — O que acham de tomarmos um lanche por lá? As crianças comemoraram com empolgação, suas vozes misturando-se em risadas e pedidos animados. No