CAPITULO 2 - parte 3.

Ele suspirou, suavizando o semblante.

— Eu já te falei, Estelle. O incêndio na cozinha não foi de grandes proporções. As suas cicatrizes e as de Pablo não fazem sentido quando comparadas ao que aconteceu. É algo... incompreensível. Você e Pablo eram os únicos em casa naquele dia. Sei que você se sente culpada pelo incidente, mas precisa lembrar: ambos foram hospitalizados. E você, abalada pelo trauma, sofreu um colapso nervoso que resultou na sua amnésia seletiva.

— Esse pesadelo repetitivo não representa a realidade. Acredite, Estelle, você não precisa carregar essa culpa. Vamos, tome um banho. Isso vai te ajudar a se acalmar. Sem resistência, ela deixou que ele a conduzisse até o banheiro. Seus passos eram leves, quase automáticos. No chuveiro, a água quente trouxe alívio momentâneo, envolvendo-a em um conforto superficial. As gotas escorriam pela pele, mas o peso em seu peito permanecia intacto. O eco do pesadelo ainda pairava em sua mente. Pouco depois, sentada diante do espelho, Estelle permitiu que Paulo penteasse seus cabelos. Seus dedos trabalhavam com delicadeza quase ritualística, tentando transformar aquele gesto em um momento de cuidado e proximidade. Ela fixou os olhos no reflexo no espelho. E mais uma vez via a imagem de uma desconhecida. Sentia como se não estivesse presente em sua própria vida, passava os dias distantes, desligada do ambiente em que vivia.

— Pronto... — disse ele, com um sorriso suave, a mão segurando uma mecha de seu cabelo. Ele inclinou-se levemente, tentando encontrar seu olhar.

— Obrigada... — murmurou, evitando encontrar o olhar dele através do espelho.

— Sente-se na poltrona — disse ele, com uma suavidade temerosa. — Vou buscar outra xícara de café fresco. Depois de comer, tome os medicamentos. Vai se sentir melhor.

Ele saiu do quarto em silêncio, seu semblante era um misto de preocupação e algo mais que Estelle já tinha observado em outras ocasiões. Segundos depois, Pablo apareceu hesitante na porta do quarto. Seus pequenos pés estavam firmemente plantados no chão, como se cruzar aquele limiar exigisse coragem. Seus olhos buscaram os de Estelle, carregando uma mistura de cautela e expectativa. Algo em sua expressão — um temor sutil escondido sob a inocência infantil — reluzia em seu olhar.

— Está tudo bem, meu amor? — perguntou ela, suavemente.

Pablo balançou a cabeça afirmativamente, mas sua postura denunciava uma tensão que ele não conseguia disfarçar. Ele deu um passo à frente, os olhos fixos nela, esperando algo que nem ele parecia compreender. Estelle, como sempre, teve sua atenção atraída pelas pequenas cicatrizes de queimadura no braço do garoto. Marcas quase imperceptíveis, mas que, para ela, eram protagonistas recorrentes de seus pesadelos. Instintivamente, olhou para os próprios braços, buscando uma conexão, um eco da dor que compartilhava com o filho.  As cicatrizes não eram apenas marcas físicas; eram um vínculo inquebrável com uma história sombria que ela não conseguia alcançar. No entanto, cada vez que via as cicatrizes, algo sussurrava ao fundo de sua mente, insistindo que a explicação de Paulo não era toda a verdade. Sempre que tentava recuperar as lembranças, era como se sua mente fosse invadida por uma névoa espessa, apagando qualquer vislumbre do que realmente acontecera. Ela se esforçava para conectar os fragmentos, mas era como tentar montar um quebra-cabeça onde as peças desapareciam assim que eram tocadas. Contudo, as cicatrizes nos braços de Estelle pareciam conter uma mensagem silenciosa, algo que contradizia a história cuidadosamente narrada por Paulo. Elas pareciam carregar um segredo que resistia a ser esquecido, alimentando as dúvidas que cresciam a cada um de seus pesadelos.

— Mamãe? — A voz de Pablo a trouxe de volta à realidade. Sua fala era suave, quase hesitante, como se ele soubesse que algo estava errado.

Estelle piscou, afastando o peso dos pensamentos que a envolviam. Seus olhos encontraram os dele, pequenos e atentos.

— Venha aqui, querido — disse ela, sua voz tremendo levemente. Estendeu as mãos, sentindo uma necessidade quase desesperada de abraçá-lo, como se o gesto pudesse dissolver as sombras que rondavam seus pensamentos e apagar os resquícios do pesadelo. Pablo se aninhou em seu colo, descansando a cabeça em seu peito. Um sorriso tímido surgiu em seu rosto, um reflexo de conforto que aquecia e, ao mesmo tempo, quebrava seu coração. Ela o envolveu em um braço carinhoso. O abraço foi firme, um esforço de proteger, de resgatar, de esquecer. Seus dedos deslizaram pelo bracinho de Pablo até encontrarem as cicatrizes. Foi um toque leve, quase imperceptível, mas a textura da pele marcada provocou um arrepio em Estelle. Não pela aspereza, mas pelo peso simbólico daquela conexão silenciosa entre mãe e filho. E, mais uma vez, ela sentiu o vazio dentro de si se agitar, como se aquelas pequenas marcas fossem a chave para um mistério que ela ainda não podia desvendar.

— Foi o fogo, mamãe. Mas agora já passou, não dói mais — disse Pablo, esforçando-se para soar firme, mas a leve tremulação em sua voz traiu sua tentativa de esconder o desconforto. Estelle fechou os olhos por um momento, sentindo o peso das palavras do filho. Ela pressionou os lábios contra a cicatriz no braço dele, um beijo suave que misturava ternura e uma tristeza profunda, como se tentasse apagar a dor que aquela marca carregava.

— Eu sei, querido — murmurou ela, embora soubesse que, na verdade, não sabia de nada. O vazio se espalhou dentro dela, e a sensação de impotência a envolveu mais uma vez.

O olhar de Estelle se desviou para a porta, encontrando os de Paulo. Ele estava parado ali, com a xícara nas mãos, em silêncio. Observava-os com uma expressão incomum, como se não fosse o homem que ela conhecia, mas um estranho. Seus olhos não transmitiam preocupação, nem carinho. Só havia uma análise fria e implacável, como se estivesse medindo algo que ela não conseguia entender.

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