Logo após a comissária de bordo informar que o avião pousaria em alguns minutos, e o piloto anunciar a temperatura de treze graus, bem como a chuva que caía sobre a cidade, Murilo fechou seu computador e o guardou na mochila que estava sob a poltrona à frente. Ele olhou pela pequena janela, onde a cidade iluminada se apresentou como um quadro vivo. De cima, a beleza da ilha era de tirar o fôlego; mas, dentro dele, tudo era cinza, um contraste gritante entre o espetáculo vibrante da paisagem e o peso sombrio de suas lembranças. Sentiu as mãos úmidas as secou no jeans que usava, esfregando com força, batendo as pontas dos dedos na coxa em seu estado de melancolia.
Mesmo após três anos morando e trabalhando em Manaus, tentando esquecer o passado, não imaginava que estaria tão tenso ao retornar à sua cidade natal. A mesma pergunta não saia de sua cabeça. Por que voltara? Para procuraria seu irmão e tentar uma reaproximação? Talvez. A última vez que o tinha visto, tensão era muito grande entre eles. Voltara para se aproximar de suas sobrinhas? Ser um tio presente? Ao lembrar das meninas, a visão de Pablo surgiu na sua mente e rapidamente lágrimas surgiram em seus olhos juntamente com uma pontada de dor que a imagem do menino provocava nele. balançou a cabeça espantando as tristes lembranças. Mas se suas tentativas frustrassem, por essa razão, trouxera apenas uma pequena mala. Caso não conseguisse se readaptar ou se a situação se tornasse insustentável, poderia voltar sem grandes inconvenientes.
Ao pisar fora do aeroporto, o vento frio cortou seu rosto, arrancando um estremecimento involuntário. Ajustou a gola do casaco, puxando-a para cima numa tentativa inútil de se proteger do frio que parecia penetrar até os ossos. O tempo passado em Manaus, cercado pelo calor úmido e sufocante, quase o fizera esquecer o frio intenso de Florianópolis.
Com um suspiro profundo que revelava seu estado emocional, decidido a chegar logo ao seu destino, entrou no táxi e informou o novo endereço ao motorista. Enquanto o carro avançava pelas ruas, a umidade na janela embaçada fazia a cidade parecer um borrão — distante e distorcida, como se ele a observasse através de uma bolha de vidro. Ao passarem por uma floricultura, Murilo pediu ao motorista que parasse. Poucos minutos depois, voltou segurando um buquê de rosas vermelhas. Seus dedos apertavam os caules com reverência, refletindo o peso daquele momento.
Antes de seguir para recém-comprada casa, pediu mais uma parada. Ao descer no antigo endereço, suas pernas vacilaram ao avistar o terreno onde sua residência um dia estivera. Permaneceu imóvel, encarando o vazio melancólico que substituíra tudo o que um dia existira ali. O jardim vibrante e repleto de vida transformara-se em um espaço desolado. O mato seco erguia-se como uma nota final, rompendo o solo e apagando as marcas do tempo. Aproximou-se, beijou o buquê e depositou-o na terra úmida. Era como se, ao deixá-las ali, estivesse abandonando uma parte de si mesmo — aquela que ainda se agarrava ao passado.
Lentamente, virou-se e olhou a casa onde Estelle morava com a família. Nada havia mudado. A residência estava exatamente como há três anos: intacta, mas sem vida. A visão ficou embaçada e um gosto salgado à boca, e só então percebeu que as lagrimas que tentara evitar rolavam por seu rosto, tamanha era a tristeza misturada com a saudade.
Fechou os olhos por alguns segundos, secando as lagrimas, voltou ao taxi encostou a cabeça no banco e fechou os olhos. Mas as memórias do incêndio irromperam como flashes perturbadores: os gritos abafados, o cheiro acre da fumaça, as chamas avançando como um vento furioso. Ele ouviu novamente as palavras de Paulo, cuspidas uma acusação: "Você é o responsável pela morte deles." Tentava focar nos detalhes, mas tudo permanecia enevoado. Havia discutido com Estelle naquela noite, e as palavras trocadas estavam carregadas de dor e frustração. Contudo, o momento em que as chamas surgiram — a faísca que transformou a casa em um inferno — permanecia intocável, envolto em sombras.
E se tivesse sido um acidente? Um gesto impensado, uma distração fatal? A dúvida corroía sua mente, mas havia uma parte dele, uma sombra sussurrante, que insinuava algo mais sombrio. Talvez ele tivesse feito aquilo. Ou talvez... ela tivesse. Não. Era melhor não pensar nisso. Melhor deixar a dúvida pairar, como as lembranças daquela noite que jamais seriam apagadas.
O motorista quebrou o silêncio ao anunciar a chegada. Murilo permaneceu imóvel por um instante, segurando a maçaneta com força, como se isso pudesse conter a avalanche de sentimentos que o invadia. "Você precisa enfrentar os fantasmas, precisa controlar sua mente", pensou. Após um profundo suspiro, finalmente criou coragem e desceu do carro.
Ao entrar na casa, caminhou diretamente para a sala. Com dedos trêmulos, vasculhou o bolso do casaco até encontrar um pequeno frasco de comprimidos. Num movimento rápido e quase desesperado, engoliu dois ansiolíticos sem água. Sentou-se, deixando o peso do silêncio envolver o ambiente. O passado estava ali, pulsando nas sombras. Não importava quantas cidades morasse ou quantos comprimidos tomasse — os fantasmas sempre o encontrariam.
2
Era o sexto aniversário de Pablo. Estelle, sentada em uma cadeira na varanda, observava-o com um olhar afetuoso enquanto ele corria pelo jardim com seus amiguinhos. Não conseguia conter o fascínio pela semelhança entre ela e o filho. A pele escura e os cabelos castanhos anelados faziam dele quase uma cópia sua. Já as meninas, Marina, de nove anos, e Betriza, de doze, herdaram os cabelos lisos e os olhos castanhos claros do pai.Enquanto se divertia no jardim, Pablo frequentemente lançava olhares para a mãe, como se estivesse conferindo se ela ainda estava ali. A cada troca de olhares, um sorriso aliviado surgia em seu rosto. Era como se, de alguma forma, ele temesse perdê-la. No meio da brincadeira, Pablo parou de repente. O brilho habitual em seu rosto se apagou, dando lugar a uma expressão tensa e enigmática. Era como se uma presença invisível tivesse capturado sua atenção. Ele virou-se em direção à casa em frente, fixando seus olhos na construção de paredes descascadas e vidraças qu
Sem hesitar, ela correu em direção à escada. Antes que pudesse alcançar o primeiro degrau, uma rajada violenta de areia e vento atingiu seu rosto, forçando-a a parar. O impacto a fez fechar os olhos, enquanto um gemido de dor escapava de seus lábios. Mesmo sob o castigo impiedoso do vento que cortava sua pele, Estelle continuava a gritar por Pablo. Suas lágrimas e seu desespero se perdiam no caos ao redor. O turbilhão de areia dificultava seus movimentos, enquanto o medo e a dor a consumiam por dentro. De repente, algo pesado bateu contra suas pernas, derrubando-a de joelhos. Estelle caiu com um impacto seco, o chão áspero castigando ainda mais sua pele já ferida. Com o corpo tremendo de dor e medo, um terror gelado a invadiu: seria esse o fim? Ainda ajoelhada, lágrimas escorrendo por seu rosto sujo, ela ergueu a voz em súplica:— Leve-me, e deixe meu filho viver!" Em prantos, ela ficou ali, esperando o pior.Foi então que, de forma inesperada, um silêncio profundo tomou conta do ambie
Ele suspirou, suavizando o semblante.— Eu já te falei, Estelle. O incêndio na cozinha não foi de grandes proporções. As suas cicatrizes e as de Pablo não fazem sentido quando comparadas ao que aconteceu. É algo... incompreensível. Você e Pablo eram os únicos em casa naquele dia. Sei que você se sente culpada pelo incidente, mas precisa lembrar: ambos foram hospitalizados. E você, abalada pelo trauma, sofreu um colapso nervoso que resultou na sua amnésia seletiva.— Esse pesadelo repetitivo não representa a realidade. Acredite, Estelle, você não precisa carregar essa culpa. Vamos, tome um banho. Isso vai te ajudar a se acalmar. Sem resistência, ela deixou que ele a conduzisse até o banheiro. Seus passos eram leves, quase automáticos. No chuveiro, a água quente trouxe alívio momentâneo, envolvendo-a em um conforto superficial. As gotas escorriam pela pele, mas o peso em seu peito permanecia intacto. O eco do pesadelo ainda pairava em sua mente. Pouco depois, sentada diante do espelho, E
— Filho... — disse Paulo, a voz suave. Tinha que se policiar ao pronunciar as próximas palavras. Aquele momento era muito delicado. Não poderia falar algo que despertasse em Estelle a verdade sobre o incêndio. Não podia cometer qualquer deslize. Ele temia que qualquer palavra dita, qualquer gesto pudesse fazer Estelle lembrar da noite do incêndio, uma lembrança que ele sabia que não deveria ser despertada. Os medicamentos pareciam não surtir o efeito desejado, e ele se sentia cada vez mais impotente diante da situação.— Sua mãe precisa se alimentar. Já conversamos sobre isso. A calma em sua voz parecia ensaiada, como se ele estivesse seguindo um texto. Estelle apertou o abraço mais um pouco, como se estivesse tentando proteger Pablo de algo que nem ela mesma conseguia entender. Seus olhos estavam fixos em Paulo, com uma intensidade quase desesperada. Algo estava escondido no olhar dele, uma verdade que a prendia em um labirinto de sentimentos contraditórios e dúvidas sem fim. — Mamã
Sentado em sua poltrona favorita de couro branco, Rudney, com seu corpo magro de um metro e oitenta de altura, mantinha as longas pernas cruzadas, uma sobre a outra, enquanto o pé esquerdo balançava para cima e para baixo em um ritmo acelerado, denunciando seu nervosismo. O braço descansava na lateral da poltrona, enquanto os olhos permaneciam fechados. A cabeça, inclinada para a direita, repousava na mão em uma pose que exalava contrariedade consigo mesmo. Em sua mente, a conversa trocada com Paulo antes do início da terapia de Estelle se repetia como um eco insistente. Ele buscava desesperadamente uma solução, algo que o tirasse do buraco em que se meteu. Se tivesse sido mais firme, talvez não tivesse cedido à chantagem dele. Paulo o persuadiu a colaborar, cobrando favores do passado.O tratamento de Estelle, o processo de hipnoterapia, precisava ser minuciosamente direcionado. Paulo sempre dizia que era vital focar nos momentos felizes em família, evitando qualquer lembrança que rea
O sol se punha, tingindo o céu de laranja. A luz atravessava as cortinas entreabertas, mas ela mal notava a paisagem lá fora. Suspirou diante do peso das perguntas sem resposta. Mas uma certeza ela tinha: era evidente que Paulo conhecia a mulher. Estelle cruzou os braços, como se quisesse se abraçar — uma tentativa de se proteger do turbilhão que a atormentava.A luz fraca do pôr do sol tocava suavemente seu rosto, que exibia marcas visíveis de angústia, impossíveis de esconder. Ela queria lembrar. Queria gritar. Queria rasgar o véu denso que obscurecia suas memórias e finalmente encontrar a verdade. Mas, a cada tentativa, parecia esbarrar em uma parede invisível. Sua mente estava trancada em um lugar ao qual ela não tinha mais acesso.Seu corpo começou a tremer. Rapidamente, ela foi até a mesinha e pegou um de seus comprimidos. Conforme a medicação fazia efeito, sentiu-se mais relaxada. Tomou um banho e deitou-se, sem forças, para se juntar à família no jantar. Algum tempo depois, Bea
Pelas frestas da janela entreaberta, ele observava. Os dedos apertavam o parapeito, enquanto seu olhar permanecia fixo na porta da casa em frente. O coração batia com força, quase sufocado pela expectativa. Ela chegaria, ele tinha certeza. Estava tudo pronto para o novo começo. As malas já estavam no carro. Assim que Estelle chegasse, eles partiriam e nunca mais olhariam para trás. Um futuro juntos, uma vida nova, sem o peso das mentiras que os cercavam. Paulo nunca mais os encontraria.Então, finalmente, ele a viu. Ela saiu apressada, quase correndo, e atravessou a rua. Murilo sentiu uma onda de alívio percorrer seu corpo enquanto abria a porta para ela. O momento que ele tanto aguardava havia chegado. Ela entrou na casa sem hesitar. A porta se fechou suavemente atrás dela, e ele a esperava, o corpo tenso, os olhos fixos nela.Murilo percebeu imediatamente que algo havia mudado. Estelle não o olhou como fazia antes; seus olhos estavam cravados no topo da escada. A p
Marta e Antônio saíram do consultório do obstetra transbordando de alegria. Enfim, seriam pais. Há um ano, começaram a buscar um tratamento ao perceberem que o método convencional não funcionaria. Agora, com a notícia do sucesso da fertilização, sentiam-se esperançosos. O médico informou que, em breve, poderiam descobrir o sexo do bebê, e essa novidade os enchia de expectativa. No entanto, uma sombra de tristeza cruzou o olhar de Marta ao lembrar-se de Estelle e dos sobrinhos. Queria tanto compartilhar essa felicidade com sua irmã! Mas Paulo não permitia que ela se aproximasse. A saudade era tão intensa que chegava a doer. Ela ainda recordava as ameaças dele: se insistisse, ele levaria Estelle e as crianças para um lugar tão distante que Marta nunca mais saberia deles. O medo de que ele cumprisse a promessa a fazia conformar-se em observá-los de longe. Isso ocorreu no dia em que, na clínica, precisou esconder-se ao perceber que Paulo notara sua presença. Antônio, ao notar a inquietação