Na manhã seguinte, Joana acordou, com o sol relativamente alto, e estranhou o silêncio. Saiu do quarto, e viu a casa do jeito que estava na noite anterior. Sua avó sempre acordava muito cedo. Correu ao quarto dela, e não demorou a perceber. A avó estava desacordada. Com o coração acelerado e ainda atordoada pelo sono (pensou se não estava sonhando, afinal), tentou verificar se ela respirava. O nervosismo era tanto que balançou o corpo inerte. Tentou chamar por Samia. Sua voz não saía. As lágrimas escorriam sem que ela percebesse. Samia apareceu à porta e de imediato pegou o telefone, pedindo pelo número de algum parente. Joana apontou para a agenda, balbuciou alguns nomes e Samia, sem demora, ligou para o mesmo irmão que levara dona Irene para casa na noite anterior. Em menos de dez minutos, ele estava lá. Logo, uma ambulância estava no
Dingo sentia cada vez mais aversão pela vida bandida de Taco. Quando soube da viagem das amigas, ficou chateado. Não tanto por Joana. As ásperas discussões com a menina gótica esfriaram a amizade. Mas sabia que sentiria falta de Samia, uma garota meiga e que poderia ter um futuro decente. Logo agora que ele pensava em tentar colocá-la na empresa, sob a supervisão do irmão, Galadriel. Achava que podia “salvar” pelo menos ela daquela vida marginal. Passou noites amuado, pensando em como era incompetente. Podia ter agido mais rápido, mas ainda temia o pai. Não tinha coragem de indicar alguém. Sentia-se um mero funcionário, sem qualquer autonomia. E agora se arrependia, pois talvez nunca mais visse a amiga. Uma viagem de bicicleta? Não havia qualquer racionalidade nisso. Era perigoso, em vários sentidos. Uma irresponsabilidade inacreditável
Enquanto o homem de preto observava Taco, Joanita e Samia seguiam na estrada. Samia dava sinais de cansaço. Havia noites e noites. E nem todas as noites eram iguais. Algumas eram mais escuras. Em dois meses de longas pedaladas, as meninas não eram mais que riscos. Muito magras, mas fortes, dormiam de favor nas casas de pessoas simples, um oferecimento de Joanita, a garota mais cara de pau das galáxias. Samia jamais conseguiria.Sem destino definido, muito menos pressa, elas paravam bastante na estrada e nas cidades, para descansar, conversar e curtir a fauna e flora locais (incluindo humanos). A simplicidade das gentes interioranas as encantava sobremaneira. A sensação de liberdade, de libertar-se de rotinas extenuantes, era excelente, era vida sobre duas rodas. Debaixo de chuva, ou sob sol forte. A aventura às vezes era dolorosa. Sentiam medo em alguns momentos. H
Samia voltava pensativa no ônibus, olhando as paisagens que via de pés no chão. Uma certa melancolia no retorno para um lugar que não significava tanta coisa mais, sem a presença da sua confidente e amiga e amante. De onde extrairia forças para voltar à sua vida? Será que conseguiria retomar o tipo de vida que tivera antes da viagem? Achava bem difícil. De qualquer forma, sua primeira missão era rever a tia, Dalila.E Dalila, claro, não esperava rever sua sobrinha quando abriu a porta, naquela manhã de garoa, tipicamente curitibana. A garoa não exprimia a sensação de alívio que a tia experimentava, após meses de tortura, sem notícias da garota. O abraço se misturava às lágrimas de ambas.Samia acabou por descobrir que
Três cômodos. Uma cozinha-sala, com uma pia muito velha. Um pequeno quarto cheirando a bolor, com uma cama barulhenta, de solteiro. Um minúsculo banheiro, com um chuveiro queimado e um vaso quebrado. Era a doce vida de Taco, que chegava em mais uma madrugada abafada, aos tropeços, drogado e bêbado, amortecido até a alma. Desaba no chão da cozinha e ali mesmo dorme. Acorda vomitando, pragueja mentalmente. Sonhara com Joana aquela noite. Pareceu tão real que lamentou ter acordado. Preferia ter morrido.Os momentos de lucidez eram cada vez mais raros. Ainda frequentava o colégio, mas teria que refazer o primeiro ano ano do ensino médio em 91. Reprovaria por faltas e notas ruins. Àquela altura, sobreviver bastava. Não se preocupava mais em arranjar bicos3
Joanita seguia sua jornada rumo a lugar nenhum, geograficamente falando. Descobriu que viajar sozinha era muito melhor. Podia se concentrar em si, estudar sua própria mente, sentir o universo ao seu redor de forma plena, sem interferências. Lamentava não ter levado muito material sobre magia. Na verdade, acabou sobrando apenas uma obra em sua bagagem: o Caibalion, em fotocópia surrada. Vez em quando, sentava-se debaixo de uma árvore, e degustava o texto hermético do livro de iniciação à magia. Lia, relia e trelia diversos trechos, na tentativa vã de obter algum conhecimento. Não era fácil. Não era apenas a dificuldade com a linguagem. Achava que precisava de um Mestre, alguém que a introduzisse no mundo da magia. Mas a cada nova leitura, percebia que sua mente se abria a novos mundos, devagar, sutil, a mudança gradual nas cores, só percebida
O tempo insistia em passar, mais rápido que nunca. A urgência dos anos 90 fazia com que a rotina parecesse liquefeita. Por isso mesmo, nenhum dos quatro amigos se deu conta de que mais um ano acabara, para o início de outro, 1991. O ano anterior fechou com o time de Dingo campeão nacional pela primeira vez, para seu êxtase. Fechou com Joanita embrenhada em algum ponto da fronteira entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, cansada, com febre e fome, sem viva alma por perto. Pela primeira vez, o medo. Fechou com boas perspectivas para Samia, que considerava o novo emprego e a rotina sólida e digna presságios de um futuro decente. E fechou como começou para Taco, ladrão, noiado e paranoico. A paranoia tinha alguma razão de ser, embora até sons causados por gatos o apavorassem por completo. Difícil dizer se resistiria mais um ano inteiro. EL PUENTE (Mario Benedetti, poeta uruguaio, 1920-2009)Para cruzalo o para no cruzarloahí está el puenteen la otra orilla alguien me esperacon un durazno y un paístraigo conmigo ofrendas desusadasentre ellas un paraguas de ombligo de maderaun LIX Pegadas no chão
— Dingolêêêraaaa, chegaquimeurrei!!! Felicidade ver essa cara de bunda de novo, carai, seu animal de teta sumido, não reconhece mais os amigos??— Calma, Taco, não tente me beijar que eu saio correndo!— Correndo de alegria que eu bem sei, meu rei! Vem de lá um abraço!Nada como o tempo. Os encontros esparsos se tornaram um pouco mais rituais, especialmente agora que o pai de Dingo estava de cama em um hospital. Melhorava e piorava. 1992 começou mal para seu Astolfo, e Dingo não tinha muitos amigos com quem se sentisse à vontade para desabafar. Taco era louco, mas era todo ouvidos. Era leal, sem o pesar lacônico demonstrado por outros amigos:— Eu sei que nunca me dei muito b