Capítulo Quatro

Só quem já se modificou pode mudar os outros.

Soren Kierkegaa

Theo não havia percebido a aproximação de Valentina por trás de si e quase deixa o celular espatifar no chão. Respirou fundo, praguejando pela própria negligência.

— Não te convém saber, Valentina. — Respondeu, ríspido. — Vá comer a maldita pizza que pediu.

Ela recuou, confusa pela constante mudança de humor dele. Mesmo sendo marido de fachada, ele pareceu tão sincero tendo ciúmes do garçom e de Jonas. Não — sua percepção alertou, é apenas possessividade. Ele jamais aceitaria estar por baixo da situação com toda arrogância visível.

— Eu sei que estou presa neste contrato por dois anos, Theo. Mas continuar exibindo suas amantes assim para a mídia e ficar calada, eu não vou aceitar.

Theo arqueou uma das sobrancelhas, guardando o celular dentro do bolso da calça cruzando os braços musculosos, talvez para exercer algum efeito nela.

— Eu não sou burro ao ponto de sair com outra mulher pelas ruas para os paparazzis verem. — Respondeu, enfático. — Essa droga de contrato está me cansando.

— E o que te impede de desfazê-lo? — Alterou-se ela. — Eu ficarei eternamente grata se você declarar toda a verdade para colocar um fim nisto.

— Esqueceu-se do seus pais, lindinha? — Theo sorriu torto, puxando-a pelo braço. O contato físico com ela o sobrepunha ao fardo da penitência e apreensão. Parecia até insano possuir esses sentimentos, mas jamais admitiria. Era orgulhoso demais para se render ou confessar. — Amanhã vamos voltar para o Brasil. Tenho problemas á resolver.

— Quer saber? — Valentina o empurrou bruscamente. — Eu prefiro ficar sozinha.

O coração dela estava moído, simplesmente por ter visto a mensagem de outra mulher. Negava paixão ou indícios de palpitações fortes — ela se assegurava disso. Queria ser amada de verdade e ter um casamento real e não por um contrato insensato, mas não com ele.

Afinal, nunca havia namorado antes, agora estava casada com um homem sem escrúpulos, completamente o oposto do ideal de marido. Ignorando a presença dele, Valentina saiu de perto dele segurando as lágrimas. Precisava conversar um pouco com as amigas e seus pais para matar a saudade. Foi assim que fez, deixando o filme de lado e enfurnando-se dentro do quarto com a caixa de pizza e o celular em mãos.

— Aonde você vai? — Inquiriu Theo, descruzando as pernas do divã e tirando os olhos do macbook. Percorreu com apreço e atenção o olhar flamejante desde o salto nude e o vestido acentuado da mulher até os fios de cabelos naturalmente soltos.

— Vou à igreja.  — Sorriu, ajeitando a bíblia nas mãos. — Quer vir junto? Não vai demorar.

— Você nem sabe falar inglês. — Debochou ele. — Quem vai traduzir o sermão?

— Luna...ou Jonas. — Imediatamente os olhos dele ficaram semicerrados e os músculos enrijecidos. — Mas se você ir pode traduzir para mim. Vamos lá, Theo. O culto nem vai demorar.

Ele apenas deu de ombros, voltando a atenção para a tela do aparelho. Valentina sentiu desalento por ele usar as feridas do passado para ferir os outros. Ainda não conhecia sua história mas queria ajudá-lo a enxergar a vida em outra prisma.

— Tudo bem. Tchau. — Theo aproveitou a despedida dela para olhar seu corpo pela última vez antes de fechar a porta. Despertando de um transe momentâneo, esfregou o rosto com a palma das mãos, entorpecido.

Valentina o deixava louco por ser a mulher mais resistente que já conhecera. A teimosia dela o fascinava inteiramente, enquanto o desejo de domá-la crescia dentro de si, numa escala alarmante. Valentina ansiava conversar com Deus, mesmo que fizesse isso em casa e em todos os momentos. Como declara a passagem de 1 Tessalonicenses 5.17: "Orai sem cessar."

Passar por aquelas portas de vidro, de certa forma, acalmou seu coração. Acompanhou Luna e Jonas para o assento escolhido e acabou ficando entre os dois. Ajoelhou-se, aflita, iniciando seu diálogo em pensamento mas com a alma conturbada.

"Pai, por tudo o que tenho passado e pelo que vou passar, te dou graças. Eu sei que parece loucura para nós, humanos dizermos isso em situações imperdoáveis, mas o Senhor está sempre a nos perdoar e todo pecado é abominável aos teus olhos. Apesar de ser difícil, e o coração sangrar, sei que sofrestes muito mais por mim. Me perdoa pelo meu jeito impulsivo de ser e deixar as emoções falarem mais alto. Por favor, molda-me e me ensina a ser semelhante à Ti. Eu preciso seguir teus passos e te agradar. Sinceramente, está sendo complicado conviver com Theo. Deus, eu não sei qual o propósito o Senhor tem em nossas vidas. Ele parece nem ter um coração de tão frio e...soberbo que é. Não conheço o passado dele...só não quero me machucar outra vez. Dê à ele um coração de carne e o torna sensível a Ti. Oro, também pela vida dos meus pais. Que eles venham te conhecer assim como Tu és."

Valentina continuou orando, sentindo as lágrimas molharem o rosto. A paz fruindo no seu interior afastou a raiva e amargura, fazendo o sorriso de gratidão brotar nos lábios. Quando o período de louvor iniciou, preferiu prosseguir na conversa com seu pai celestial, embora estivesse em pé; fechou os olhos, esquecendo-se completamente dos novos amigos ao lado.

Na hora do sermão, Luna traduzia cada palavra para a jovem. A mensagem era exatamente a resposta das orações. Jeremias 24.7: E dar-lhes-ei coração para que me conheçam, porque eu sou o Senhor; e ser-me-ão por povo, e eu lhes serei por Deus, porque se converterão a mim de todo o seu coração. A transformação de vida só ocorre quando o coração é mudado; somente o Espírito Santo pode convencer o mundo do pecado, da justiça e do juízo.

— Eu precisava escutar aquele sermão.— Disse Valentina quando estavam no corredor do hotel. — Muito obrigada por ter me convidado, Luna.

 — Ah, se quiser ir novamente é só avisar. — Sorriu a loira.

A jovem transpareceu uma expressão de pesar.

— Pena que amanhã irei embora.

— Já?! — Jonas mostrou-se chateado e surpreso ao mesmo tempo. — Mas você ficou aqui só dois dias.

— É o Theo...ele precisa resolver algumas coisas na empresa. — Explicou ela. — Também, tenho a faculdade, então...precisaremos partir.

— Ah, nem! — Luna cruzou os braços, fazendo beicinho. — Que horas vocês vão ir?

— Ele não disse.

— Esse é meu número. — Articulou Jonas, pegando um cartãozinho dentro do bolso e a entregando. — Qualquer coisa me ligue ou mande mensagem.

— Tudo bem. — Sorriu Valentina.

— Ah, também vou te passar o meu. — Luna escreveu o número na parte de trás do cartão. — Pode me encher de mensagens ou ligações que eu atendo.

— Obrigada! Vocês me ajudaram bastante. Eu espero vê-los novamente.

— Igualmente. — Disseram ambos, retribuindo o abraço caloroso da jovem.

Valentina sentiu a caixa torácica comprimir dentro de si, sufocando a torrente de emoções e presságios palpitantes. Não era sobre a reação do suposto marido de vê-la chegar para despejar o sermão da noite, mas algo começou afligi-la quando entrou na suíte e encontrou as malas no mesmo lugar. Desde o dia da briga entre os dois, ela lembrou-se que as bagagens não haviam sido removidas.

"Assim, descanso mais cedo”, comemorou internamente. Encaminhou-se para o quarto e o viu deitado de bruços para cima na cama. Engoliu em seco, deixando a bíblia na pequena estante, e voltou-se, paralisada; reparando no torso dele desnudo e esculpido. Os músculos delineavam perfeitamente o contraste da pele, no entanto — mesmo na penumbra devido a janela estar parcialmente aberta, o brilho lunar a permitiu ver múltiplas cicatrizes nas costas dele. Valentina ficou estática, observando-o. A curiosidade aumentou ao se perguntar acerca do surgimento daquelas marcas. Quando ele se moveu na cama ela correu para o banheiro.

Olhou-se no espelho, percebendo que até aquele momento prendia a respiração. Soltou o ar dos pulmões e quase teve um sobressalto pelas batidas na porta. "Ele já estava acordado? Ai, meu Deus!" Vários pensamentos afligiram a jovem. Rapidamente, ajeitou os cabelos e girou a maçaneta, abrindo passagem para ele entrar e ela sair.

— Calminha aí. — A voz rouca e o toque bruto no braço a impediu de prosseguir.

— Eu...preciso descansar, Theo. — Ela evitou de encará-lo nos olhos. — Desculpe se te acordei.

— Não acordou. — As mãos dele a prenderam pela cintura, colando seus corpos. — Elas são horrendas, não são? Aquelas cicatrizes...!

— Se quiser, vamos conversar. Mas por favor, me solta.

— Olhe para mim. — Ordenou, autoritário. Debater-se e iniciar um novo combate seria em vão. Ele a segurava sem gentileza alguma, machucando seus quadris.

Valentina gemeu de dor, notando que o mesmo ainda estava sem a camisa.

— Theo, você está... — Antes que ela terminasse de falar, os lábios dele a silenciaram de maneira voraz. O beijo salientava paixão e ardor, sem conceder brechas para a jovem escapar.

Ela não queria retribuir, mas os hormônios a contradiziam. Ele a conduzia até o relento aconchegante, sentindo todas as veias pulsando para tê-la e torná-la somente sua.

— Theo, pare! — Valentina arfou quando ele cessou o beijo. As pupilas dilatadas mostraram aquele famoso brilho. O desejo de satisfazer suas vontades.

— Eu não quero conversar. Até quando vai fingir que não sente a mesma atração por mim?

— Por favor, isso é errado.

— Somos casados, querida. — Sorriu, determinado. — É hipocrisia negar sentimentos mútuos. Definitivamente isso não é errado.

Valentina arregalou os olhos, desesperada para fugir. Ele queria apenas diversão e experimentá-la; ao contraste da aspiração dela.

— Theo, eu...

— Silêncio, mulher. — Esbravejou, lançando-a sobre a cama. — Eu estava sendo paciente com você. Aceite, porque pertencemos um ao outro.

— Não sou propriedade sua. — Rebateu, tentando se levantar.

— Você é inteiramente minha.

Ele rasgou a parte inferior do vestido dela. Desesperada, Valentina iniciou um choro compulsivo sem forças para se defender.

— Eu imploro, Theo. Não faça isso.

Por um momento ele parou, observando as lágrimas cristalinas rolando pelo rosto ruborizado. A expressão angustiada e o medo palpável que transmitia tremores para o corpo.

— Se você...ainda tiver consciência...não faça isso...

Os soluços dela lhe remeteram a mesma experiência do passado. Mas ele assassinou suas emoções, pelo menos acreditava que sim. Diante da súplica, ainda que mínimo, seu coração palpitou em comoção.

— Cale-se! Você não vai mudar quem eu sou.

— Não! — Ofuscada pelo medo e pavor, Valentina desferiu um tapa na face dele.

— Acabou de assinar sua sentença de tortura. — Rosnou, prendendo suas duas mãos sem delicadeza.

O pânico contido nos gritos abafados de Valentina só aumentavam sua fúria. Nada o faria mudar de ideia. Então, se esvaiu a inocência e a pureza da alma de menina. A dor emotiva ultrapassava à física. Naquele momento, o silêncio lhe fazia companhia, como se estivesse querendo enxugar cada partícula de lágrima.

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