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Capítulo Cinco

Não sei por quais caminhos Deus me conduz, mas conheço bem o meu guia.

Martinho Lutero

O primeiro movimento deslizante pelo braço de Valentina, abriu seus olhos cansados de ter derramado lágrimas durante a noite inteira. Queria que fosse apenas um sonho, mas a estampa branca da cama manchado de sangue e a evidência das dores físicas, deprimiu novamente seu coração. De relance, olhou para o lado, sentindo asco e repúdio pelas carícias circulares que ele lhe fazia no braço. Imediatamente, se afastou, ignorando o olhar semicerrado dele.

— Bom dia, querida. — Pronunciou, estendendo a mão na tentativa de puxá-la pela cintura, mas o alerta intuitivo a fez saltar para o chão junto com o lençol envolto no corpo.

Theo franziu a testa, observando-a correr para o banheiro, enquanto ela reprimia as lágrimas. Valentina trancou a porta, sentindo o medo rodeá-la. A sua primeira experiência foi roubada por um cara que não a amava e certamente iria obrigá-la novamente a ser usada somente para satisfazê-lo.

"Por quê, Deus? Por quê?" Lamentava-se ao tomar banho, misturando as lágrimas junto com a água fria.

Nada faria esquecê-la quando implorou para ele parar, mas tudo o que enxergou naquelas orbes azuis foi frieza e impiedade. O abuso pode acontecer de várias maneiras — deixando marcas profundas na vítima. Atitudes e reações insanas, apenas degradam o caráter corrompido, rumo ao futuro destrutivo.

Uma voz, sussurrou no seu ouvido, acolhendo-a da dor e vergonha sofrida.

"Tudo o que o homem semear, isso também colherá."

Valentina não desejava a ruína de Theo, não conseguia sentir ódio, mas se ele permanecesse trilhando nessa estrada trôpega, perderia-se pra sempre. Quando abriu a porta, quase salta para trás ao vê-lo imóvel, olhando-a fixamente.

— Com licença. — Pediu, com a voz trêmula por causa do choro. Ele parecia uma parede, não movia nenhum músculo sequer.

Esquivou-se para outro lado, porém, a mão áspera travou seu braço.

— Se contar para alguém o que houve aqui, pode esquecer que tem uma família. — Ameaçou, intensificando o aperto na pele de porcelana.

— Me solta! O que você fez foi desumano. Eu me casei contra a minha vontade e agora você...você... — Puxou o braço de volta, recuando alguns passos.

A respiração dele ficou entrecortada diante das lágrimas silenciosas de Valentina. Algo queria despertar o outro lado encoberto. Ponderou os questionamentos emaranhados no cérebro. Deveria ser menos rude, mudar de ações e atitudes. Mas, como sempre, lá estava os malditos conselhos de um ser invisível.

"Você nasceu assim, Theo. Nunca poderá mudar. Ninguém irá te ajudar. Você é maldito. Maldito. Maldito."

Theo quase surtava, enraivecido consigo mesmo. Se odiava demasiado ao ponto de desejar morrer. Quantas vezes tentou dar fim à sua própria existência. Incrivelmente, não conseguia; simplesmente sua consciência ou algo dentro dela o impedia disso acontecer.

Petrificado, observou Valentina pegar a bíblia na estante e sumir de vista rapidamente para a sala. Os olhos se desviaram para a cama, expondo a mancha vermelho escarlate nos lençóis brancos. Suspirou fundo, tentando ignorar a monstruosidade que cometera. Dirigiu-se para o banho, sabendo que a situação poderia piorar com o passar do tempo.

....

No avião, eles mantinham as aparências. Ocuparam as poltronas um ao lado do outro, controlando suas respectivas vontades de não estragarem o papel teatral dos próprios atores do filme de suas vidas. Valentina olhava para a aliança dourada, presa no dedo anelar. A garganta queimava pelo bolo de lágrimas raivosas que obedeciam o comando da mente. Não chorar.

— É uma linda peça, não é mesmo? — Theo sorriu de lado, notando a expressão desconsolada da mulher.

— É só um anel inútil. — Respondeu ela, indiferente. Não o encarou nenhuma vez sequer.

— Um anel de dez mil reais. Importado da Turquia.

Em silêncio, ela fechou os olhos.

Theo mordeu o lábio inferior, incomodado por ela não estar o olhando diretamente. A má resposta não o irritou, pelo contrário, instigou-o a soltar uma pequena gargalhada.

— Você está de mal-humor, querida. —  Provocou ele, tocando de leve no queixo dela. — A noite passada não te fez bem?

— Monstro. —  Valentina fechou os dedos com as unhas grandes e beliscou sua mão áspera, o fazendo grunhir de dor, enquanto alisava o dorso dolorido.

— Selvagem...você deveria morar no mato. — Sibilou.

— E você deveria morar no quinto dos infernos. — Valentina sabia que o certo era não revidar, mas o que ele lhe fez, jamais seria apagado. Tudo o que queria era poder voltar atrás naquela noite e permanecer ao lado de Luna e Jonas.

— Hum...então, eu vou para o inferno? —  Theo disse, debochado. — Interessante. Quem sabe, lá o prazer seja mais quente.

Valentina ergueu os olhos pra ele, horrorizada. Contemplar aquele belo par de esmeraldas, acelerou o coração de Theo. O desejo era de abraçá-la e beijá-la urgentemente. Dissipou a vontade que poderia se transformar numa ação e demonstrou toda frieza, sustentando seus olhares.

— Se você acha que isso é uma brincadeira, espere no juízo final para ver o que é o "prazer quente." — Ele riu, mesmo o cérebro processando cenas da infância quando sua mãe o levava á igreja. Como dizia ele: passado é um monte de ossos enterrados debaixo da terra.

— Palhaço! — Murmurou Valentina, respirando fundo. Teve que lavar os lençóis no banheiro mesmo antes de irem embora do hotel. Só de imaginar a cara da camareira quando visse a mancha de sangue na cama, não seria confortável quanto a possibilidade de hipóteses errôneas.

Talvez, achariam normal pelo fato de um casal ter se hospedado ali, mas Valentina evitaria rastros enquanto estivesse acorrentada naquele contrato do falso matrimônio. Pensou consigo mesma que depois de ter sofrido uma exploração forçada, jamais o amaria.

— Chegamos, querida. — A voz dele rouca penetrou nos ouvidos, ressoando semelhante à notas graves de um instrumento.

Valentina abriu os olhos, pestanejando algumas vezes para firmar o campo de visão. Percebeu que o avião aterrissou e os passageiros estavam descendo pelos degraus prateados.

— Vou pegar as bagagens. — Avisou ele, ajeitando a gravata no pescoço. — Me espere na saída.

Ela não contestou, dirigiu-se ao local referido e assentou-se no banco amadeirado enquanto aguardava Theo retornar. Avistou-o segurando uma mala-bolsa e outras duas de rodinhas. Aparentava ser o marido perfeito que dedicava carinho á uma dama, mas praguejava em pensamento por conta do peso que carregava. Os pertences de Valentina pesavam o dobro e isso o irritava.

— Chamarei meu amigo para vir nos buscar. — Ele puxou o celular do bolso do terno e discou o número. — Sou eu,  estou aqui no aeroporto junto com a minha mulher...— Valentina revirou os olhos pra cima quando escutou essa parte. — Se você está próximo ao mirante melhor ainda...ótimo...até mais tarde.

Encerrando a ligação, arqueou a sobrancelha, encontrando o olhar inquiridor da jovem.

— Você deveria ser mais gentil com as pessoas, não só com seus amigos. — Sugeriu ela, sem intimidar com a expressão ameaçadora dele.

— Trato quem eu quiser da forma que eu quiser, querida. Ah, eu preciso descansar meus pés. — Ocupou o lugar ao lado dela, deixando as malas por perto.

Valentina permaneceu encarando o fluxo do local, pessoas iam e vinham. Despedidas entre lágrimas e abraços. Um militar beijava sua mulher grávida com tamanha ternura que comovia quem presenciava a cena.

Valentina sorriu sem perceber, encantada pelo casal.

— Não fique admirada. Sentimentos assim não são duradouros.

Ela não lhe encarou diretamente.

— Bom, sentimentos assim são duradouros quando são regados diariamente.

— Pobre iludida. Oh...aquele grupo de garotas com câmeras direcionadas para cá são paparazzis com certeza.

Valentina seguiu o olhar dele confirmando ser realmente paparazzi, pois logo que foram flagrados elas desviaram as câmeras.

— Ah, claro. — Ela comenta sem nenhum entusiasmo. — Paparazzi. Fofocar sobre a vida dos outros deveria ser considerado um crime e não uma profissão.

— Este é o trabalho deles. Mostrar aos fãs a vida dos artistas fora dos bastidores.

— Quão assombrados ficariam se descobrissem a sua.

Theo expirou uma pesada lufada de ar. Aquela garota o tirava do sério. O desafiava além dos limites impostos.

— Não diga, querida. — Viu câmeras direcionadas para eles e sorriu discretamente. Olhou para Valentina que o fitava, inexpressiva. Ousou acariciar o rosto dela e sentiu o mesmo tremor magnético percorrer pelo corpo. Sacudiu a cabeça antes que iniciasse uma crise de consciência. — Lembre-se do papel de esposa apaixonada.

Os flashes registraram o momento, denominado de fofo pelos midiáticos, eufóricos demais pelo casal estar se beijando. Valentina reprimia o choro, correspondendo o beijo contra sua vontade. Separaram-se, ambos forçando um sorriso de contentamento.

— Um dia, você vai chorar lágrimas de sangue. — Sussurrou Valentina, causando irritação no rapaz.

O toque do celular o fez afastar-se. Só por causa do xingamento ele iria beijá-la com mais veracidade, mas o "bendito" aparelho interrompeu. No visor, uma nova mensagem o fez semicerrar os olhos. Certamente, teria muitos problemas para resolver.

"O príncipe Almir Samir deseja sua presença no evento corporativo que acontecerá neste sábado ás 19:00hs. Ele quer firmar os laços com a empresa. Estou te enviando a mensagem porque Jussara não veio trabalhar.

Felipe."

Theo bufou, rangendo os dentes. Aquela mulher passou dos limites; só por ter usufruído de privilégios concedidos pensa que pode agir como bem quisesse. Mas ela iria pagar por isso.

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