Eu bato forte na mesa. Tão forte que na mesma hora sinto o arrependimento chegar em mim, quando aquela pontada dolorida se arrasta por todo o meu braço depois de ter batido o ossinho do meu cotovelo no carvalho duro.
Mas não vou deixar que nenhum deles saiba disso, então engulo a dor enquanto pronuncio mentalmente todos os palavrões que consigo me lembrar, até os em outra língua.
Ao meu lado está a querida minha tia por parte de pai. Uma vagabunda sem coração que chora e chora de uma forma muito teatral, apesar de nunca ter feito uma aula de teatro sequer em toda a sua vida. Na minha frente, o homem parrudo de grandes bochechas que mais parece o senhor bundovisk do filme “Meu malvado favorito” me analisando atentamente como se eu fosse uma criminosa. Seus olhos caídos me analisam por trás de óculos redondos de lentes grossas, que fazem seus olhos ficarem muito pequenos, e desproporcionais ao resto do seu rosto.
A sala ao meu redor é cheia de quadros entediantes e cafonas, que provavelmente o dono dela comprou em brechós sem ter nem sequer uma segunda opinião de alguém que tenha o mínimo senso decorativo. Tem também uma mesa de escritório e as três cadeiras em que estamos agora, obviamente de lados diferentes porque afinal isso é como se fosse um julgamento de tribunal. Também tem uma foto de família com crianças e uma mulher sorrindo, e bem ao lado, um certificado de médico psiquiatra..
Pro inferno ele e seu certificado, ele é um mentiroso que está treinando junto com a minha tia para arruinar a minha vida.
-ISSO É UM ABSURDO! - bato mais uma vez, dessa vez com menos força. - Como podem acreditar nessa mocreia! Tudo que ela diz e fala é tão falso quanto seu cabelo. Até essas lágrimas de crocodilo idiotas! Isso não é justo! Eu preciso chorar também pra que vocês acreditem em mim?
O cabelo castanho da minha tia realmente não é dela e já faz muito tempo. Desde que ela apostou todas as suas fichas em descoloração global várias e várias vezes até seus pobres cabelos ficarem com a textura de uma borracha. Agora ela usa alongamentos de segunda mão e fica tão longe do natural, que se a vissem de longe achariam que todo seu cabelo é uma grande peruca. Talvez realmente seja a essa altura do campeonato. Se eu puxar será que ele sai todo de uma vez na minha mão? Nunca fui uma pessoa violenta, mas eu ia gostar de fazer esse experimento.
-Senhorita Lovett, eu peço que se acalme. Se a senhorita sente vontade de chorar, saiba que isso aqui é um local seguro, se sinta confortável para se expressar da forma que bem entender. Eu só peço que tenha um pouco de consideração pela sua tia e por tudo que ela já fez por você. É inaceitável que descarregue seu temperamento nela desse jeito. Ouça, você já é madura o suficiente para entender a situação delicada em que se encontra e que a melhor forma de você lidar com isso é cooperar conosco
Seu tom de voz me causava uma raiva rançosa. Eu não estava calma, eu não tinha motivo nenhum para estar minimamente calma. Não fazia o menor sentido esse assunto dele sobre maturidade, já que ser adulto tem como um de seus significados ser responsável pelas consequências de suas ações, ou basicamente “Colher o que foi plantado.” Mas eu não plantei absolutamente nada disso. Sabotaram a minha horta e agora faziam questão de jogar a culpa disso em cima de mim.
As lágrimas de crocodilo da minha tia ao meu lado aumentam de quantidade, e ela assoa o nariz muito ruidosamente no lencinho de papel que lhe deram.
-Escute, vocês nem sequer tem o direito de fazerem isso comigo, eu sou maior de idade! Sou responsável pelo meu próprio nariz, e se eu não quiser ficar nessa merda de lugar então vocês não podem me obrigar a ficar nessa merda de lugar. - Eu digo, como se fosse um raciocínio simples, por que realmente é. Mas não de acordo com eles, não de acordo com a “lei”.
Meu nome é Odette. Sim, como a rainha dos cisnes. Talvez minha mãe ou até mesmo meu pai tenham sido grandes fãs de ballet clássico. Mas não tem como eu perguntar a eles já que não estão mais vivos pra contar história. Morreram os dois em um incêndio que atingiu a antiga casa há muito tempo. Eu não tinha muita idade para me lembrar de tudo com clareza. Só sei que fui retirada da casa antes que ela fosse consumida pelo fogo. Mas depois disso? Ir morar com o pior lado da minha família, com minha tia arrogante que mal pode esperar pra pegar a droga do dinheiro do seguro e seguir a vida, mesmo que pra ela agora, tivesse um fardo pra aguentar.
-Senhorita, como já lhe disse, vou mais uma vez pedir que se acalme. Este é um lugar seguro em que não há o que temer. Sim, você pode ser considerada responsável por si mesma graças a sua idade, mas legalmente falando, a sua tia é a responsável por você, considerando que não está totalmente nas suas faculdades mentais. Pela lei, ela é a pessoa que se responsabiliza pelas suas ações no nosso país, e você deveria agradecê-la por ser essa alma tão preocupada e caridosa com a sobrinha, que está pensando tanto no melhor pra você. Resolveu te mandar para um lugar como esse. Há tantos como você por aí nas ruas e desamparados, largados pelos entes queridos. Seja grata ao que tem, e deixe de agir como uma pirralha mimada.
Pirralha mimada? Que vontade que tenho de dar chute bem no meio de suas bolas depois de ouvir uma palhaçada como essa. Que me mandassem pras ruas então. Não é como se eu já não fosse grandinha e soubesse me virar. Tenho 21 anos e sou responsável por mim mesma desde que parei de usar fraldas. Mas eu não iria aguentar isso calada. Era um absurdo que eles pensassem que só poderiam se livrar de mim assim, desse jeito. Da mesma forma que se livram de algo que perdeu a utilidade. Não aguentando mais um segundo dessa farça, eu finalmente estourou, deixando a raiva e mágoa sair de dentro de mim enquanto grito na cara deles.
-PRO INFERNO TUDO ISSO! VOCÊ PARA O INFERNO, MINHA TIA PRO INFERNO, VOCÊS TODOS PRA MERDA DO INFERNO! FIQUE SABENDO QUE EU NÃO ESTOU FORA DAS MINHAS MALDITAS FACULDADES MENTAIS SEUS DESGRAÇADOS.. EU ESTOU EM MINHAS PLENAS CAPACIDADES E CAPAZ DE FALAR POR MIM MESMA. ESSA VÍBORA ARMOU PRA MIM, VOCÊS DOIS ARMARAM QUE EU SEI, COM LAUDOS FALSOS E TUDO MAIS QUE PODIAM ARRANJAR. E FOI SÓ EU ME DESCONTROLAR UM POUQUINHO EMOCIONALMENTE, EU DAR UMA DESLIZADA E PRONTO. JOGADA AQUI DENTRO PARA APODRECER COMO UM PEDAÇO DE LIXO, ENQUANTO ELA DANÇA E SAMBA POR AÍ COM O DINHEIRO DO MEU FALECIDO PAI..
-Esse é meu último aviso, se você não se acalmar agora e medir as suas palavras para com sua tia, serei obrigado a chamar os enfermeiros, e não vai ser nada agradável passar o seu primeiro dia aqui de castigo, senhorita.
-Meu caro senhor - Eu me levanto da cadeira e pela primeira vez minha tia tira os olhos e o nariz do seu lencinho, olhando diretamente pra mim. - Por que não pega o seu castigo, seus enfermeiros e esse lugar todinho…-Eu o encaro com uma fúria que queima meus olhos, e aproximei meu rosto no melhor desafio que consegui - e enfia tudo dentro desse seu rabo. - Pra encerrar, eu junto todo o cuspe que consigo, aquele nojento mesmo vindo bem do fundo da garganta, e formar uma bola de saliva que cuspo bem na cara dele.
POV CEDRICCedric Bellini não estava tendo um bom dia. Mas sendo sincero consigo mesmo, nenhum dos seus dias no “Centro de reabilitação Boa Esperança” era um bom dia. Na verdade eram todos como o inferno na terra, ao contrário do que o nome sugere. Pra começar, ele era um alfa. Ou ele tinha sido há muito tempo atrás. Um alfa em uma situação como essa não é algo que se vê todo dia. Aqui não era e nem nunca seria lugar para alguém como ele, apesar de não ser o único da sua espécie aqui dentro. Se você tem dinheiro e inimigos, no final é aqui que todos vão parar. Era bem mais fácil ser trancado aqui dentro esquecido e largado do que qualquer outra coisa. Você nem precisa ter feito nada de muito errado. Só basta ter um inimigo, esperto o suficiente para armar contra você e pronto, você conseguiria um ingresso só de ida pra essa academia de loucos. Sendo um alfa de sangue quente 24 horas por dia, sem nada pra fazer a não ser aceitar a vida na qual foi submetido. Bom, “aceitar”. Poi
POV ODETTE E pronto, depois disso acho que já dá pra imaginar o que aconteceu, não é? O homem berrou e berrou, e de repente tinha enfermeiros me arrastando pelo corredor. É óbvio que eu me debati, o máximo que pude, afinal, mesmo que eu soubesse que eles não me soltariam assim, não podia deixar ser levada tão facilmente. Questão de orgulho. Mas quando eu fui trancada naquele quarto branco que seria minhas acomodações pelos próximos não sei quanto tempo, não pude deixar de pensar que valeu a pena quando vi a cara de espanto do homem e seu rosto ficando cada vez mais vermelho, como se ele fosse explodir em milhares de pedacinhos depois de ter sido irritado. Mas depois disso, tudo foi só ladeira abaixo. Eu podia listar a quantidade significativa de coisas que eu passei as últimas semanas tentando evitar e que simplesmente aconteceram praticamente fora do meu controle. Minha Tia havia me internado em um hospital psiquiátrico. Pra que? Ora, ficar com a droga do dinheiro que eu tenho d
Já no dia seguinte, oficialmente meu primeiro dia desde que eu havia chegado aqui, não estava mais suportando olhar um segundo sequer para essas paredes brancas e sem graça que me cercavam no quarto em que me colocaram. Eu estava realmente, realmente enlouquecendo. Deixando cada vez mais, sem ter escolha, esse castigo que me colocaram me subir a cabeça. É como aquelas vezes quando somos crianças e nossas mães, pais, tias e até professores nos colocam de castigo para “pensar no que fizemos” enquanto olhamos pra parede, e você nunca quer pensar no que fez pois na sua cabeça, você não está errada. Mas acontece que olhar pra parede é chato, e você não tem escolha a não ser pensar em tudo que te vier na mente. Eu também fiquei andando de um lado pro outro, alonguei todos os meus músculos, joguei minha maldita bolinha de uma parede a outra e tentei, tentei muito me concentrar em um dos livros que eu havia trago, mas a falta do que fazer me deixava agitada, com energia acumula até as bor
POV CEDRICOs dedos ansiosos de Cedrik batucavam incessantemente na parede. Suas pernas estavam pro alto totalmente descontraídas no seu familiar quarto branco. E não era o quarto branco tradicional em que era obrigado a passar seus dias, mas sim outro quarto branco. O que colocavam os que passavam da linha.Nesse lugar esquecido,só tinha um colchão e aquelas paredes que te encaravam de volta quando você as encarava por muito tempo. Ele já tinha tido muitas chances de sair de lá, tantas oportunidades que no final valeram menos que nada, mas decidiu aceitar o destino a qual foi encaminhado, e se tivesse que passar seus dias apodrecendo aqui por causa desse destino, é isso mesmo que ia fazer. Essa era a sua punição e ele já tinha aceitado ela há muito tempo. Mesmo que enlouqueça de verdade por nunca encontrar sua companheira fora daqui, mesmo que nunca mais sinta o vento da liberdade ou possa assumir sua forma de lobo, e fazer tudo que ele tinha sido feito pra fazer. Fazia 5 ano
Para começo de conversa, a aberração literária que estavamos sendo obrigados a ler era uma espécie de alto ajuda para crianças, sobre dois ratos que perdem o seu queijo precioso e não sabem o que fazer a respeito disso. Um dos livros mais chatos e entediantes disfarçados de conto juvenil que eu vi na minha vida. Só a mínima discussão sobre a proposta inicial me faz bocejar, rolar de um lado pro outro na cadeira extremamente desconfortável e balançar os pés inquietamente querendo ir embora. Passei mais tempo prestando atenção nos arredores do que na explicação da senhora alta que estava na ponta da roda,comentando sobre a proposta do grupo, da leitura e todo o blábláblá que parece que não acaba. Ela passa um tempo desnecessariamente longo repetindo palavras e falando frases que pra mim são a mesma coisa, como por um exemplo: “a mudança é uma coisa crucial para nós como seres humanos”, “devemos lidar com isso”e mais blá blá blás que passei anos ouvindo de terapeutas medíocres.Eu mud
POV CEDRICDepois de mais de um dia trancado, Cedric estava em fim sendo levado pro seu quarto. Horas infernais que ele jurava ter se acostumado, mas descobriu do pior jeito que não.A m*****a “sala de repouso” ou o quarto branco como chamavam por aqui.Tinha tido a sua prova final. Era pra ser mais um dia comum, mais uma passagem de tempo como qualquer outra, mas nada era mais como antes, nem nunca mais seria. Se ele se concentrasse um pouco, ainda conseguia sentir aquele cheiro, que mudou tudo.Agora ele olha pra todos os lados dos corredores enquanto segue, procurando. Tudo sempre continua tão igual, mas de repente se tornando tão diferente.Ele sabia que a essa hora a maior parte do pessoal estava lá fora aproveitando um dia de sol, ou dentro dos quartos esquecendo que existe um lado de fora, ou qualquer outra coisa além daqui. Mas mesmo assim, era uma tarefa impossível pra ele, parar de esperar que em algum lugar vá sentir de novo aquele aroma, e que ao virar um corredor vai enc
Quando fecho os olhos naquela noite e me deixo ser levada pelo sono, estou em um jardim. Um jardim que no fundo da minha mente tenho a lembrança de já ter o visto antes em outros sonhos, mas algo está diferente. Reconheço campânulas, rosas e não-me-esqueças. Há outras variedades, e libélulas voam pela grama alta, que roça meu tornozelo e eu sinto cócegas. Sinto cócegas? Não se pode sentir cócegas enquanto sonha. Mas eu sinto. Independente disso tenho certeza que estou sonhando, com cócegas ou sem cócegas.Sabe quando se olha para um objeto dentro de um sonho? Ele não parece real. Não tem detalhes, e sua forma não é muito parecida a como ela é na realidade. Às vezes a textura até se mexe enquanto você está olhando. Causa uma sensação esquisita, mas é crucial que exista esses pontos para que haja diferença do sonho pra realidade.Quando eu olho para uma das não- me-esqueças, é isso que acontece. Uma hora ela tem 5 pétalas, mas logo depois tem 6, depois 7, e depois 5 de novo. Sua cor
Algo tinha ficado claro pra mim: Para o Dr. LeClerc, eu não era mais do que um insetinho e algo pra que ele pudesse se vangloriar, mostrar poder e dominância, além de todo aquele discurso chato de “Sou eu que mando aqui e você não decide nada.”.Como ele é o responsável pela minha internação em partes, e foi com certeza o responsável por forjar um laudo fraudulento que foi a minha porta de entrada pra cá, então ele sabe mais do que ninguém que, por ser um laudo FRAUDULENTO, eu com certeza não precisava estar aqui, e muito menos fazer qualquer uma das atividades propostas.Isso só aumenta a minha raiva. Eu não vi a cara dele ainda depois da minha cusparada. Mas ainda assim, ele deixa claro que cada pontinho de liberdade que eu ganho &ea