A expressão de desapontamento no rosto de Dick fez com que a culpa e o medo dentro de Rebecca se transformassem mais uma vez em raiva. Sacodiu a cabeça, com o polegar e o indicador em pinça na ponte do nariz, estalando a língua. O trio não apenas fracassara, como também se humilhara. Ele certamente não lhes daria outra chance como aquela, e isso significava que estavam de volta ao posto de ladrões de galinha.
Foi Stain quem ajudou Rebecca a cuidar dos ferimentos, tinha um toque delicado. Disse que sentia muito, que ela havia feito o melhor possível e que era ele quem não conseguira contribuir em nada. Ela não respondeu; sentia que, caso abrisse a boca para consolá-lo ou pedir desculpas, acabaria lembrando-o de que ela estivera com a fórmula. Pelo que imaginava, no calor do momento, a corrente devia ter se agarrado a algum arbusto do jardim e se arrebentado em seu pescoço enquanto
Ao descer do táxi no dia seguinte, Rebecca tentou enxergar os muros dos Heiler com outros olhos. Hoje, seu personagem tinha seu rosto, sua voz e seu nome — não usaria um de seus nomes falsos e sujos em algo que deveria ser insuspeito e rápido. Infelizmente, nada lhe tirava a imagem daquela jovem da cabeça, o som do grito ao pé do seu ouvido.Vai acabar logo, encorajou-se. Só precisaria de alguns minutos sozinha no jardim da casa. Aquela correntinha havia de estar em algum lugar.Entrou pelos enormes portões de ferro negro, onde longas serpentes forjadas se enroscavam até o topo, e caminhou pelo largo caminho de seixos, flanqueado por arbustos de cravos brancos e amarelos. O aroma do jardim era soprado em direção às nuvens de algodão-doce. Ventou mais forte quando Rebecca, mais uma vez fascinada pela visão da romântica mansão alemã, parou um inst
— Muito bem — disse Wilford. — Por que não começamos pelo andar de baixo? — O homem não soava particularmente animado; forçava uma gentileza frígida. Passou pelo batente que levava ao pátio interno. — Desde que a senhorita Martinez se acidentou, Jonathan não vem se sentindo muito motivado.— O senhor Heiler fica fora o dia todo? — perguntou ela.— Com exceção dos domingos — assentiu. — Volta próximo da hora do jantar. Agora… Jonathan deve estar aqui em algum lugar…Ele perscrutou o pátio, tão verdejante quanto Rebecca se lembrava, talvez até mais bonito sob a incidência de um sol tão quente.Ao ouvir seu nome, o garotinho louro saiu de trás de um arbusto e caminhou lentamente na direção dos adultos.— Jonathan! Esteve sentado na grama? — ind
O gazebo respondia à chuva torrencial com escândalo, remetendo Rebecca a uma noite de verão, exceto que torturada por um tipo de frio que precedia o inverno. Não se surpreendera ao ser direcionada ao quarto de hóspedes em vez de a uma das dependências de empregados, haja vista que sua estadia na mansão seria temporária — se tudo saísse conforme o planejado, e de acordo com as últimas notícias acerca do estado de saúde estagnado de Jessica, seria ainda mais curto do que seu novo empregador supunha. O quarto de hóspedes, portanto, era mesmo mais adequado; o aposento da babá seria mantido intocado até o retorno da jovem, suspeitava.Agora, esperava seu celular tomar um pouco de carga, conectado à tomada.Jantara na cama, uma vez que, por costume da família, a última refeição nunca era compartilhada na sala de jantar; impressionou-
Foi diante de uma loja de sapatos qualquer que Rebecca, no banco traseiro do Honda New Civic, pediu que o motorista particular de Jonathan parasse o carro. O homem atarracado diante do volante, de nome que ela se esquecera logo após terem sido apresentados e cuja barba farta começava a apresentar frações cinza, não questionou, o que transformou num desperdício elucubrativo toda a justificativa que Rebecca vinha ensaiando durante o caminho desde que haviam deixado Joe na escola.Ele reduziu velocidade no acostamento e lhe desejou um bom-dia. Ainda se sentiu impelida a explicar que voltaria de transporte público, mas aquele não era um homem pago para fazer perguntas, muito menos a uma desconhecida cuja presença no carro era um mero resultado das circunstâncias. Portanto saiu para a calçada e observou enquanto o automóvel preto, lustroso, tomava rumo sem ela.Respirou profundamente e fez si
Durante a sesta, Joe praticou os movimentos das primeiras etapas da resolução do cubo mágico. Deitados com as costas contra a madeira do gazebo, ele e a babá se concentravam no quadrado colorido sobre o rosto. Depois, por algumas horas, Rebecca o ajudou a fazer o dever de casa e, finalmente, quando o sol começava a se pôr, voltou a lhe explicar como reposicionar os lados amarelos a fim de levá-los ao topo.— Amarelo — cantarolou ele. — Minha cor favorita.— Mas não era o azul?— Era. Mas o amarelo é minha favorita agora. Ele fica no topo — argumentou. Rebecca, com os cabelos espalhados em torno do rosto, não pôde deixar de sorrir. — Qual é sua cor favorita?— Acho que… preto.— Sua bobinha, preto não é uma cor!— Como não?— Preto é o que dá se mis
A primeira vez que Rebecca se lembrava de ter se perguntado o que havia de errado com sua mãe fora aos seis anos. Ela a levara numa viagem, Rebecca não se recordava aonde. Ficaram num hotel — ou numa pensão? — durante uns dias. Seu pai não pudera ir, precisava trabalhar na fábrica durante os dias de semana, mas lhe preparara uns sanduíches de manteiga de amendoim com geleia para a viagem e — perante um muxoxo de reprovação de sua mãe, que considerava a receita americana demais, além de, francamente, indigesta — adicionara alguns de queijo com presunto na lancheira.Oito horas de passeio de carro. No início, empolgante; depois, dolorido para as costas e nádegas. Vira estrada, árvores, estrada e mais árvores. Mas não reclamara, atendo-se à promessa de que seria divertido quando finalmente chegassem.Não havia sido divertido. Rebec
Em épocas de estresse, Rebecca tinha muito apetite ou nenhum. Por isso quase não mexera no jantar, e, de madrugada, sentia fome. Foi até a cozinha, aproveitando que ninguém andava pela casa àquela hora, e encheu uma vasilha de cereal puro.No início, achara a mansão intimidadora à noite, mas com o tempo passara a apreciar as luzes artificiais dos candelabros, os vagalumes no pátio interno e o zumbido dos eletrodomésticos.Encostada na bancada, engoliu um punhado de cereal quase sem mastigar quando o sensor de movimento fez as luzes do corredor se acenderem. E, quando Heiler surgiu no cômodo, fora de seu costumeiro caráter, usando camiseta, calça de moletom e chinelos, ela se viu batendo no próprio peito a fim de se recuperar de um engasgo.Heiler correu até a geladeira, encheu um copo de suco de laranja e lhe ofereceu.— Tome. Assustei você?
Ajeitou o boné sobre a cabeça de Joe e lhe deu um beijo na bochecha.— Nada de cubo na aula, hein? — repetiu, com o indicador na direção do seu queixo. Vinha permitindo que ele levasse o brinquedo na mochila com a promessa de que só o sacaria na hora do intervalo.— Está bem — resmungou.O motorista esperava dentro do carro. Joe segurava a mochila na mão, com olhinhos ainda pesados de sono, enquanto Rebecca, ajoelhada sobre o cascalho, certificava-se de que ele não esquecia nada.— Joe, preciso lhe fazer uma pergunta, mas tem que dizer a verdade, tudo bem? — entabulou. — Sua mãe costuma buscá-lo na escola?Ele bocejou.— Às vezes.— Ela faz isso quando seu avô vem visitar? — investigou. Ele arregalou os olhos, mas tentou conter a reação. Permaneceu calado, quase como se não