CAP-3

Cecilia sempre foi o alicerce do pai. Desde que a mãe morreu, ela assumiu o papel de cuidadora com uma devoção que ia além do dever filial — era amor puro, incondicional. Pietro Romano seu pai seu herói, mesmo nos dias mais confusos, ainda enxergava a filha como sua maior alegria.

Nos bons momentos, ele a chamava para sentar no jardim e contava histórias do tempo em que servia à máfia com honra. Falava dos amigos que se tornaram irmãos e de como o código de lealdade era tudo para ele. Cecilia ouvia cada palavra com atenção, mesmo que já conhecesse as histórias de cor. Ela sorria, concordava, fazia perguntas — tudo para prolongar aqueles momentos de lucidez que pareciam se dissipar cada vez mais rápido.

Nos dias ruins, porém, era como se Pietro se perdesse dentro de si mesmo. Havia vezes em que ele não reconhecia Cecilia, a olhando com desconfiança ou chamando-a pelo nome da falecida esposa. Isso dilacerava a alma dela, mas, ao invés de se afastar, ela se agarrava ainda mais a ele. Trocava as lágrimas por beijos na testa, palavras doces e músicas antigas que ele gostava de ouvir.

Ela se recusava a desistir dele, mesmo quando a doença o fazia esquecer como andar ou se alimentar. Cecilia aprendia sobre cada nova fase do Alzheimer com uma determinação feroz, quase obsessiva. Ela lia artigos, assistia a vídeos, perguntava tudo aos médicos enviados pelo Dom. Sentia que, se entendesse a doença, poderia encontrar uma maneira de resgatar o pai, nem que fosse por alguns minutos a mais.

Nos raros momentos de clareza, Pietro olhava para ela com os olhos marejados.

— Você é forte como sua mãe — ele dizia, com a voz trêmula. — Mas não se esqueça de viver a sua vida, minha menina.

Cecilia sorria, mesmo que aquelas palavras a machucassem. Porque, no fundo, ela sentia que sua vida era ele. E talvez fosse por isso que ela se agarrava tanto a Fellipo — porque, de alguma forma, o subchefe da máfia a fazia sentir que ela ainda existia para além do papel de filha e cuidadora.

Mas quanto mais ela tentava equilibrar as duas coisas, mais cansada ficava. Era como carregar dois mundos pesados demais nos ombros. E ela sabia que, se continuasse assim, uma hora acabaria quebrando.

Os dias de Pietro oscilavam como as marés. Às vezes, ele acordava com um brilho nos olhos, reconhecendo Cecilia, chamando-a de “minha menina”. Em outras, ele se perdia em um labirinto de memórias, e o olhar vazio dele doía mais do que qualquer golpe físico.

Naquela tarde, Cecilia voltava da cozinha carregando uma bandeja com o chá preferido do pai quando parou na porta do jardim. A visão a fez congelar. Pietro estava sentado sob a sombra de uma árvore, com um cigarro entre os dedos trêmulos — mesmo proibido pelos médicos — e, ao lado dele, Fellipo.

O subchefe, sempre tão fechado e sombrio, estava relaxado, soprando a fumaça para o céu, ouvindo atentamente as palavras do velho soldado. Pietro falava com animação, gesticulando, como se estivesse contando a maior façanha da vida.

A enfermeira, encostada no batente, ria baixo da cena inusitada. Cecilia tentou se acalmar, respirando fundo. Mas, quando os olhos do pai se voltaram para ela, seu mundo desmoronou.

— Quem é você? — Pietro perguntou, franzindo a testa.

Cecilia sentiu como se o coração tivesse parado de bater. Os olhos dela se encheram de lágrimas, mas ela as engoliu, apertando a bandeja contra o peito.

— Eu sou... uma amiga — respondeu, a voz embargada.

Ele sorriu, satisfeito com a resposta, e fez um gesto para que ela se aproximasse.

— Venha, sente-se. Estou contando para o rapaz aqui como conheci o amor da minha vida.

Cecilia olhou para Fellipo, que a observava com atenção. Ele percebeu o tremor nos dedos dela, a forma como ela lutava para manter o controle. Sem dizer nada, ele estendeu a mão para ela, com um gesto simples, mas carregado de significados.

Ela hesitou por um segundo, mas depois largou a bandeja sobre a mesinha e segurou a mão dele. A pele áspera de Fellipo era um ancoradouro, um lembrete de que ela não estava sozinha.

Sentou-se ao lado do pai, ouvindo-o falar sobre a mãe com os olhos brilhando, como se ela ainda estivesse viva. Pietro descrevia o primeiro encontro deles, o jeito que ela ria, como usava um vestido azul que ele dizia ser a cor do céu mais bonito que já vira.

Enquanto ele falava, Cecilia deixou as lágrimas silenciosas escorrerem pelo rosto. Doía saber que o pai não sabia quem ela era, mas também era reconfortante vê-lo sorrir, mesmo que fosse em um mundo onde o tempo corria de maneira diferente.

Fellipo não soltou sua mão. E, naquele momento, sem dizer nada, ele a segurava no sentido mais literal possível — não apenas a mão, mas a alma dela, como se estivesse dizendo que, mesmo que ela desmoronasse, ele estaria ali para sustentá-la.

E, por mais contraditório que fosse, naquele instante de dor, Cecilia sentiu-se feliz. Feliz por ouvir mais uma história, feliz por ver seu pai vivo dentro das memórias que restavam, e feliz por ter alguém ao lado dela, mesmo que esse alguém fosse o homem que mais confundia seus sentimentos.

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