Já faz mais de uma semana que estou me afastando da Cecilia, e a cada dia que passa, abro uma ferida nova em mim. Sei que nela também. Cada vez que vejo os olhos dela evitarem os meus, sinto como se estivesse arrancando pedaços do próprio peito.Mas é melhor assim.Antes que o Dom tome as dores dela. Antes que a Samara me olhe com aquele desprezo silencioso que fere mais do que um soco.Antes que eu destrua a Cecilia do mesmo jeito que meu pai destruiu minha mãe.Sei que vou traí-la. Sei que não vou conseguir ser fiel, porque o sangue doente do meu pai corre nas minhas veias.E só de lembrar do sofrimento da minha mãe...Lembro dela no quarto, chorando baixinho, as mãos trêmulas alisando o vestido para esconder a barriga que ela achava grande demais. Porque ele tinha dito:"Você tá ficando gorda."Ou penteando o cabelo com tanta força que arrancava fios, porque ele falou:"Esse cabelo tá horrível."Ela foi se apagando, se encolhendo, até virar uma sombra.E eu jurei que nunca seria co
Saí da mansão e fui para as ruas.Caçei qualquer desgraçado que estivesse devendo para a Trindade, qualquer verme que pudesse me dar uma desculpa para descontar a raiva que estava me consumindo por dentro.Encontrei dois traficantes que deviam meses para o Dom. Não dei chance para eles falarem nada. Só parti para cima, com os punhos e a violência transbordando pelos poros.Eu queria sentir dor.Queria apagar Cecilia da minha cabeça nem que fosse à base de sangue.A cada soco, eu pensava nela.A cada chute, eu via o sorriso dela.E quanto mais eu batia, mais a imagem dela se misturava com os gritos.Ela, rindo.Ela, me olhando com ternura.Ela, gemendo meu nome.Ela, correndo de mim.Quando terminei, estava coberto de sangue — dos outros e meu.Joguei os corpos no rio, voltei para o galpão e me tranquei no escritório.Mas não adiantou.O cheiro de sangue não apagou o cheiro dela que estava impregnado na minha pele.Eu não consegui arrancar ela de mim.E, no silêncio da madrugada, quand
O sol já estava alto quando Fellipo finalmente se levantou do sofá. A cabeça latejava, o corpo pesado, e o gosto amargo do uísque ainda estava na boca.Ele foi até a pia, jogou água no rosto e se encarou no espelho.Olhos vermelhos. O maxilar travado.Parecia um fantasma.Pegou o celular e viu as notificações: nenhuma mensagem de Cecilia.Ela realmente tinha desistido dele.Ele apertou o aparelho com força, os nós dos dedos ficando brancos. Parte dele queria que ela mandasse pelo menos um insulto, que gritasse com ele, que o xingasse por tudo que fez.Mas ela estava em silêncio.E isso doía mais do que qualquer coisa.Ele saiu do apartamento, sem se importar com a ressaca, e foi direto para o galpão da máfia.Passou o dia inteiro espancando quem devia para a Trindade, descontando toda a raiva acumulada. Quando a noite caiu, ele estava coberto de sangue — nenhum dele próprio.Mas a dor interna ainda estava lá.Fellipo dirigiu sem rumo pela cidade, até que, por reflexo, parou na frente
Fellipo virou uma máquina de destruição.Qualquer missão, qualquer problema, qualquer ameaça que surgisse, ele era o primeiro a se voluntariar montar as equipes e sair para a missão. Não importava o nível de risco, não importava se ele saía inteiro ou não. Na verdade, parecia que ele procurava ser machucado, como se cada ferimento fosse uma punição que ele achava merecer.Fernando já tinha costurado o braço dele três vezes. E, na última, perdeu a paciência.— Por que você não se mata de uma vez, então? que porra nós estamos aqui — gritou, jogando a gaze ensanguentada no chão do galpão. — Porque, do jeito que tá indo, é questão de tempo!Fellipo riu, mas o riso foi vazio.— Que dramático, Fernando.— Dramático é você se enfiar na linha de tiro como se fosse de ferro! — Fernando estava vermelho de raiva. — Você acha que eu não sei que isso é por causa da Cecilia? Porque é óbvio! e não adianta negar .O nome dela bateu como um soco.Fellipo desviou o olhar, mordendo o lábio até sentir g
Nos dias seguintes, Fellipo virou uma sombra do que já foi.Ele saía para as missões mais brutais, caçando qualquer um que ousasse atravessar o caminho da Trindade. Se não houvesse inimigos suficientes, ele inventava. Se não houvesse sangue para derramar, ele provocava até que houvesse.Fernando teve que costurar Fellipo mais vezes, cada corte mais profundo que o outro.— Qual é o seu problema? — Fernando explodiu uma noite, jogando a agulha na mesa com raiva. — Tá difícil se matar?Fellipo só riu, com o cigarro pendurado no canto da boca e o sangue escorrendo pelo braço.— Eu tô me mantendo vivo — respondeu, com uma expressão vazia. — Do meu jeito. por que assim eu penso menos.Ele não voltava mais para a mansão só as vezes ou no café da manhã ou almoço pegava sua dose diária do perfume dela eia embora. Ficava no apartamento imundo, bebendo até desmaiar, acordando com pesadelos da mãe chorando no banheiro, as palavras cruéis do pai ecoando na mente dele.E, mesmo assim, o pior de tu
Fellipo saiu do bordel com os punhos cerrados, o peito arfando de raiva. O cheiro do cigarro barato e do perfume enjoativo das mulheres ainda grudava na roupa, como se quisesse esfregar na cara dele o quão quebrado ele estava.Ele subiu na moto e arrancou pelas ruas escuras, o ronco do motor abafando os gritos das mulheres assustadas que ainda tentavam se recompor do surto dele. A cada curva, ele acelerava mais, o vento cortando sua pele como navalhas.Ele queria se sentir vivo. Queria sentir alguma coisa.Mas tudo o que sentia era um vazio que o corroía por dentro.Parou a moto numa área abandonada da cidade, perto do porto, onde os ratos disputavam espaço com os corpos que a máfia descartava. Sentou-se mais a frente olhando para o mar , encostado numa parede descascada, e acendeu um cigarro com as mãos tremendo.A imagem dela não saía da cabeça.Cecilia.O sorriso, os olhos, a maneira como ela mordia o lábio quando estava nervosa.O jeito como ela gemia o nome dele como se ele foss
Fellipo virou um fantasma.Ele parou de voltar para casa ou para o apartamento — ou para qualquer lugar que pudesse chamar de lar. Depois do bordel, depois do fracasso, ele só precisava de uma coisa: Cecilia.Não para falar. Não para tocar.Ele só precisava vê-la.Nas madrugadas, quando Cecilia saía para passear com Thor, ele a seguia pelas ruas escuras. Ficava nas sombras, o cigarro apagado tremeluzindo no escuro, enquanto ela caminhava, fones nos ouvidos, ouvindo seus romances.Ele via quando ela sorria para o cachorro, abaixava-se para brincar com ele. Quando seus olhos brilhavam ao observar o céu estrelado — como se ela ainda acreditasse que havia algo bonito para acontecer na vida dela.Fellipo ficava parado, a respiração pesada, o peito comprimido.Ele sabia que era doentio. Que era errado.Mas era o único momento em que ele se permitia existir perto dela.Às vezes, ele ficava tão próximo que quase podia sentir o cheiro dela trazido pelo vento. O coração dele batia descompassado
Fellipo 38 anos nasceu com o destino traçado dentro da máfia, e isso nunca o incomodou — pelo contrário, ele amava a vida que levava. A adrenalina de caçar traidores ou inimigos o fazia se sentir vivo, e ver o medo nos olhos de suas vítimas lhe trazia uma satisfação sombria. Filho do antigo subchefe, ele cresceu sob a sombra de um pai que era um exemplo de liderança e perfeição na máfia, mas um marido cruel e destrutivo em casa.O pai de Fellipo humilhava a esposa constantemente, comparando-a com prostitutas, menosprezando sua aparência e minando sua autoestima. A mãe de Fellipo, desesperada para agradar o marido, fez inúmeras cirurgias plásticas, tentando alcançar um padrão impossível, mas nada era suficiente para conquistar o respeito ou o amor dele. Aos poucos, ela foi se tornando apenas uma sombra de si mesma, perdendo a vontade de viver.Fellipo foi a única fonte de conforto da mãe, salvando-a em vários momentos de tentativas de suicídio, implorando para que ela largasse a arma e