Capítulo 3

Fernando

Os últimos meses tinham sido insuportáveis sem ela. Eu estava quase desistindo de tudo se não fosse por minha filha e Leda, que aliás, se tornara essencial nas nossas vidas. Se não fosse Leda, eu não sei de onde teria achado forças após a partida de Paty.

Minha esposa, falecera de modo quase que natural, sua saúde, segundo o médico estava estável, mas por alguma razão, naquela última semana havia piorado três vezes mais. Havia aproximadamente um ano agora que ela partira, e gosto de pensar que ela não sofrera tanto quanto em vida com aquela doença maldita que já à perseguia por anos. A luta diária agora era pra me reerguer, pois eu tinha certeza que Paty estaria muito triste me vendo destruído assim.

Minha filha chegara em nossas vidas e convivera com a mãe apenas por pouquíssimo tempo, mas eu tinha a impressão de que ela sentia sua falta tanto quanto eu, ou até mais, já que Paty, mesmo que um pouco mais debilitada que antes, fazia questão de ser uma mãe modelo em todos os sentidos. Ela acordava sempre que Aurora chorava e precisava dela, levava ao parquinho pela manhã mesmo que só por alguns minutos por não aguentar muito tempo o pique da nossa bebezinha, dava leite e papinha todas as horas que precisava, e, contudo, não deixava que a ajudassem, dizia que eram os seus momentos com ela.

E sabe de uma coisa? Parecia que Paty sentia que não teria muito mais tempo com o maior amor de sua vida, com o seu maior sonho realizado, mesmo a vida a impossibilitando de tal, com a sua filha, pois ela passou cada últimos segundos de sua vida com a nossa garotinha. E ai de quem dissesse que ela não era nossa. Patrícia amava Aurora como se tivesse saído de seu próprio ventre.

Eu estava jogado no sofá, observando Aurora brincar sobre o tapetinho emborrachado que ficava ali na sala, a TV estava ligada em qualquer canal que eu não prestava atenção, minha mente vagava em lembranças doloridas que eu precisava aprender a afastar quando ouvi a porta se abrindo.

— Pelo amor de Deus, Nando, não acredito que ame tanto esse sofá que não desgruda dele... — Leda chegava carregando algumas sacolas que eu reconhecia ser do mercadinho no final da rua. Escutei ela resmungando indo em direção a cozinha e logo voltando para sala. Sem sequer me cumprimentar, já pegava Aurora no colo e sentava ao meu lado no sofá dando um longo suspiro.

— Meu querido, eu sei que você tem seus dias altos e outros baixos, mas eu não posso permitir que faça mais isso consigo mesmo, e muito menos com a pequena Aurora. — Ela dizia com sua voz calma e seu olhar pesaroso por trás de seus óclinhos redondos. — Sabe o quanto é difícil pra mim ter que mentir em um relatório, dizendo que está bem psicologicamente para cuidar da sua filha? Eu não quero ter que tirar ela de você, meu bem. Por favor, você mais do que ninguém sabe que Patrícia lutou muito para ter a sua menininha e ela com certeza deve estar muito triste e nada em paz com toda essa sua tristeza. Siga em frente, é doloroso, mas já vai completar quase um ano desde a sua morte. Você não pode mais adiar a abertura da sua clínica, era um sonho também, não era? — Finalmente tomando coragem para encara-la, à olhei com os olhos marejados e afirmei com a cabeça.

Eu sabia que Leda tinha toda a razão, eu precisava de uma vez por todas sair daquela fossa, pelo bem de Aurora principalmente. Eu morreria de vez se me tirassem o meu bem mais precioso, a minha princesinha. Olhei pra Leda enquanto enxugava as lágrimas que insistiram em rolar e me levantei decidido de uma vez por todas a nunca mais voltar para aquele estado de espirito deprimente.

Pegando meu laptop sobre a mesa no outro lado da sala, abri uma aba com um site de imóveis e mostrei uma casa que havia salvo há alguns meses atrás.

— Olha, essa casa, eu vi há alguns meses, mas ela ainda está à venda, e segundo algumas pesquisas minhas, eu encontrei um tipo de centro comercial que sempre tem lojas disponíveis para alugar há duas quadras de distância dela. Eu podia quem sabe, abrir a minhas clinica lá. Minha cidade natal nunca me decepcionou e eu tenho ótimas lembranças dela. Acho que vai ser bom pra nós dois. — disse pegando Aurora de seu colo e passando o computador para Leda.

— Eu acho uma excelente ideia, meu querido! Fico feliz de ainda dar ouvidos à essa velha metida a sabe-tudo aqui. — Ela disse parecendo realmente animada olhando as fotos da casinha na cidade vizinha. Olhei pra ela dando um leve beijo em sua bochecha e me levantando com Aurora.

— Vamos para a cozinha, não tenho seus biscoitos prontos, mas vou providenciar, imediatamente. — Ela sorriu pra mim, e colocando o notebook apoiado na mesinha de centro à sua frente, me seguiu dando pulinhos felizes.

Leda nos visitava todo final de semana, as vezes até durante a semana, se ela sentisse meu tom de voz tristonho ao telefone, ela corria pra cá. Já não saberia mais o que seria da minha vida sem a Dona Leda nela e eu já até propus dela morar conosco, mas ela recusara, dizendo brincalhona, que perderia o encanto, conviver com os meus defeitos. Eu sabia que era mentira e que ela prezara mesmo, era por sua autonomia e livre arbítrio, mas também não só por mim, mas por ela, eu vivia insistindo na proposta. Não queria mais que ela vivesse sozinha, podendo estar aqui conosco, alegrando a mim e a Aurora igualmente como vivia dizendo que nós a alegrávamos.

Quando adotamos Aurora, Leda veio inclusa nas entrelinhas do processo e era ela quem cuidava de nós como uma verdadeira mãe todo esse tempo. E eu nunca viraria as costas para um conselho de mãe tão rico como aquele que me dera a poucos minutos em seu sermão. Era claro que ela tentara me dar um susto quando disse que teria que tirar a guarda de Aurora de mim, e por nada nesse mundo eu permitiria isso, então eu entendi o recado e quase que instantaneamente eu criei forças para lutar mais.

***

Uma semana depois daquela decisão certeira que Leda me intimou a tomar, eu já estava com tudo resolvido e pronto para partir. Arrumei a última mala de Aurora e desci com ela no colo para pegar o carro e viajarmos para nossa nova cidade. Mas antes uma última olhada na casa onde fomos felizes, construímos nossa família e fizemos boas lembranças.

— É minha princesinha, eu espero que essa casinha faça outras pessoas e novas famílias tão felizes como nós. Mesmo com todas as peças que a vida nos pregou até hoje. — Aurora olhou pra mim e como se entendesse realmente o que eu falava, soltou uma risadinha doce que só ela tinha e que me fazia ser tão feliz.

Coloquei minha filha na cadeirinha de bebe no banco traseiro do carro e me certificando mais uma vez de que estava bem firme e presa, fechei a fivela de segurança, bati a porta e dei a volta no carro para entrar no banco do motorista. Respirei fundo, chequei o retrovisor e olhei pra Aurora que me seguia com seus olhinhos parecendo nitidamente intrigada com a minha demora. Por um segundo achei realmente que me autossabotaria e desceria do carro, desistindo de tudo, mas quando virei a chave na ignição e partimos pra nossa nova vida, me senti aliviado e mais uma vez convicto daquela escolha decisiva.

Após um pouco mais de hora dirigindo até a cidade vizinha, finalmente chegamos ao nosso novo lar e me permitindo percorrer sem pressa as ruas que haviam feito a minha distante infância feliz, eu apresentava as poucas coisas de que me lembrava à Aurora como se ela realmente estivesse interessada e entendendo tudo aquilo que eu apontava.

Mostrei minha primeira escola, que aliás, tentaria uma vaga pra ela assim que começassem a liberação de vagas, a praça central onde brinquei e andei muito de bicicleta até os meus oito anos, a padaria próxima à rodoviária que agora era um mini mercadinho e a própria rodoviária como se tudo fosse muito interessante para uma bebezinha. A cidade havia crescido muito e nem parecia mais com as lembranças que tinha, mas também eu tinha pouco mais de oito anos quando sai de lá, tais lembranças não eram lá muito confiáveis né?

Estava virando a esquina da rodoviária em direção à quadra da nossa casa quando acionei o freio bruscamente ao ver que quase batia em uma mulher. Meu primeiro instinto foi verificar minha filha que diferente de mim que estava tremendo de nervoso, parecia achar graça com aquilo tudo, pois gargalhava olhando para a jovem que congelou de medo, acredito eu, na frente do carro nos encarando.

Já estava abrindo a porta para acudir a moça e ver se tinha se machucado, quando ela sem esperar que eu dissesse qualquer coisa, fugiu correndo. Fiquei ainda alguns segundos fitando-a de longe até voltar a entrar no carro e voltando a cabeça pra trás, falei com minha filha.

— Ela parecia estar chorando né meu amor? Tomara que esteja bem. A cidade não é gigante, se eu a ver novamente, pedirei minhas sinceras desculpas. Mas agora vamos pra casa, parece que alguém precisa de um banho não é mesmo? — fiz uma cosquinha na barriga da minha bebezinha e voltei a ligar o carro, partindo finalmente pra casa.

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