Cecília
Subi os poucos lances de escada, ainda respirando mais ofegante por conta do peso da mala, abri a porta de casa e entrei, ainda em choque por tudo que acabara de acontecer. Minhas pernas estavam bambas e eu não saberia dizer se pelo susto do quase atropelamento, se por correr todo aquele trajeto ou se por ter visto aquela criança.
Apoiei minhas costas na porta que havia fechado e me deixei escorregar, sentando no chão com as mãos tapando o rosto, tentando conter o choro. Eu sabia que nunca superaria aquela situação, mas não sabia que ficaria tão atordoada apenas por ver um serzinho tão pequeno como aquele. Ela devia ter mais ou menos a idade da minha Gio agora e acho que foi isso, o que mais me abalou.
Senti meu celular vibrar no bolso da calça e peguei pra ver a mensagem da minha amiga. Percebi que a que eu tinha enviado, estava totalmente distorcida, provavelmente por conta do susto, eu devo ter apertado vários botões e enviado, mas Bia não deixara barato, já estava zombando, respondendo cheio de números no meio das letras também. Não quis assusta-la por mensagem e resolvi contar toda aquela situação vivida a pouco, apenas quando ela chegasse.
Me levantei, e fui tomar um banho pra ver se relaxava e esquecia todo aquele súbito ocorrido. Ao sair, coloquei uma roupinha leve e vi que já tinha uma nova mensagem de Bia, avisando que em meia hora chegaria e seria legal pedirmos uma pizza para comemorar minha volta. Sorri com a animação dela e mal comecei a digitar, escutei a chave girar... Nossa, acho que demorei bastante no banho, pensei.
Bia entrou correndo, vindo me abraçar e ficamos assim por longos segundos até ela mesma se afastar para falar comigo.
— Estava com tantas saudades amiga! Como foi com os seus pais? Quais as novidades? — Bia perguntava sem me dar tempo de responde-la, em um tom animado.
— Foi tudo tranquilo com os meus pais, claro, mas não tenho nenhuma novidade sobre o caso. Não achei nada por lá. Leonardo com certeza mentiu pra mim. Por isso voltei pra...
— Não Ceci! Por favor, não o confronte de novo! Não vale a pena se arriscar! — minha amiga me interrompeu antes mesmo de eu concluir meu propósito. Não pude deixar de revirar os olhos. Todos eles insistiam em querer me obrigar a não fazer nada, a não correr atrás por mim mesma, insistiam em pedir pra deixar com a polícia. Que se foda a polícia! Eu precisava daquilo! Era isso que me movia, encontrar minha filha! E o único que poderia saber era quem eu mais odiava, só que ninguém entendia aquilo. Ou fingiam não entender.
Caminhei até o sofá seguida por minha amiga e me deixei cair de qualquer jeito, bufando para o discurso que ela começaria a traçar. Mas a interrompi do mesmo jeito que fez comigo.
— Chega Bia, eu sei que todos estão preocupados comigo, com minha segurança e tudo mais, mas não foram vocês que perderam seus filhos. Eu vou fazer o que tiver que ser feito. Custe o que custar, eu quero a minha menininha! — Já começava a ficar difícil fazer as lágrimas não rolarem, minha amiga que me olhava um tanto quanto assustada, sentou-se do meu lado calmamente e colocou suas mãos sobre as minhas.
— Ceci, eu estou aqui com você e pra você! Eu sei o quanto está sofrendo ainda, o quanto essa dor só aumenta conforme o tempo, e por eu querer mais do que tudo que você a encontra, é que quero preservar a sua vida. — Ela respirou fundo, parecendo querer contar algo a mais. A olhei intrigada, mas resolvi esperar o tempo dela, e ela concluiu.
— No dia seguinte que você foi embora para a casa dos seus pais, Leonardo esteve aqui, louco da vida, querendo saber de você. Eu não contei pra onde tinha ido, só disse que ele não precisava se preocupar, que você tinha ido pra longe atrás da filha de vocês e fiz questão de frisar que foi ele quem fez o desfavor de desaparecer com ela. — Ela abaixou a cabeça, parecendo engolir o choro e foi a minha vez de confortar ela.
Sabia que não tinha acabado por ali aquela história, sabia que se tratando de quem era, ele não tinha deixado aquela história barata. Ela suspirou fundo e olhou pra mim, com os olhos marejados.
— Leonardo me bateu, insistindo pra que eu contasse pra onde tinha ido. Ele provavelmente sabe que você pode estar perto de encontrar a Gio e está desesperado. Eu só não entendo pra que tanto desespero se você já falou pra ele que não quer a paternidade. — Concluiu indignada.
Eu sinceramente também não entendia o porquê. Tinha sim, minhas suspeitas, mas eram muito irrelevantes pra dar alguma certeza. Ele tinha muito poder em toda nossa minúscula cidade, comandava muitas coisas ali, senão, tudo. Não duvido que ele tenha engravidado outras antes de mim, se fazendo de bom moço como fez comigo e elas, sabendo do seu real padrão de vida, mesmo que criminosamente, deviam ter querido os seus direitos.
Mas eu não queria absolutamente nada daquele cara. Nem sequer olhar pra cara dele se não fosse devido a situação atual que eu precisaria de mais respostas! Então para não preocupar ou até mesmo alertar mais a minha amiga com isso, pois querendo ou não, escondida ou não, eu iria atrás dele sim, ainda mais agora, desviei o assunto.
— Não íamos pedir uma pizza? Ou não quer mais comemorar a minha volta? — falei enquanto levantava e pegava meu celular na bancada da cozinha que dava acesso pra sala. Bianca enxugando as lágrimas me seguiu, mas passou direto indo em direção ao banheiro.
— Pede metade marguerita pra mim, não esquece! Vou tomar um banho enquanto isso.
Pedi a pizza e enquanto esperava tanto Bia, quanto a pizza, rolei o feed de um app de empregos que eu tinha baixado a caminho dali. Todas as pouquíssimas vagas que encontrava eram há duas cidades dali. Seriam muitas horas de viagem pra uma merda de salário que não compensaria. Fora que não teria tempo hábil pra continuar minhas próprias buscas de Gio.
Percebi que Bianca havia chegado na sala, quando senti uns pingos de água gelados caírem no meu ombro.
— Vai secar esse cabelo garota, está molhando o sofá todo. — Impliquei enquanto me levantava secando meu ombro. Ela riu e já ia começar a retrucar, quando o interfone tocou. Entre conversas banais e risadas que eu não experimentava fazia tempos, Bia me questionou sobre o app. Não queria morar ali de favor, sempre pagamos tudo juntas e não seria diferente agora.
Eu queria logo qualquer emprego que surgisse pra poder ajudar minha amiga com as contas, afazeres e tudo o mais que ela tinha direito. Sempre esteve ao meu lado, me cuidando nos melhores e piores momentos da minha vida, não seria justo e eu não me sentiria bem, sendo de outra forma.
— Mas amiga, você sabe que não tem nada a ver isso... Olha quanto tempo eu mantive a casa sozinha, sem você aqui, não se preocupe com isso agora! — Ela tentava me convencer.
— Eu sei, eu sei, fiquei quase um ano longe, mas não me sentiria bem morando aqui sem te ajudar! Amanhã mesmo, saio pra buscar alguma coisa pra mim. Vamos focar agora só em espairecer... Aliás tenho uma história engraçada pra te contar. Quase fui atropelada hoje. — Bia quase cuspiu todo o refrigerante no meu rosto se engasgando com o mesmo.
— O QUE? E ISSO É ENGRAÇADO AONDE, NO SEU PLANETA MALUQUINHO? — ela gritava com os olhos arregalados esperando que eu continuasse a história. Obviamente eu não iria contar a parte deprimente do assunto, até porque eu não queria me lembrar daquilo, então foquei na parte realmente engraçada de ter mandado a mensagem embaralhada pra ela justamente por conta daquilo.
Depois do susto, ela não conseguia parar de rir, provavelmente imaginando a cena e tirando sarro de mim como sempre, perguntando se o motorista era gato. Desde que descobri sobre Leonardo, nunca mais me relacionei com ninguém e era praticamente todo dia que Bia tentava me empurrar algum amigo novo, dizendo que eu precisava recomeçar e viver a vida e todo aquele blá blá blá. Ela parecia se divertir, se passando como cupido, então eu a deixava tentar, mesmo sabendo que nenhum deles me chamaria atenção, ou vice versa. Quem ia querer uma mãe deprimida como eu?
Logo após a pizza fomos dormir, pois no dia seguinte começaria sim a minha nova vida, mas na área profissional mesmo. Agora precisava achar um novo emprego, além da minha menininha.
Já na cama, com o aplicativo aberto novamente, resolvi dar mais uma olhada até pegar no sono e preferi filtrar algumas áreas que eu com certeza não me adaptaria, principalmente os inúmeros anúncios de babá que chegavam pra mim.
Não sei ao certo o momento que adormeci, mas sei que sonhei a noite inteira com a minha garotinha! Eu sentia que ela estava viva, bem e que eu estava próximo de acabar com aquele pesadelo. O que eu não queria agora, era acordar daquele sonho de ter minha bebezinha novamente nos meus braços.
FernandoHavia muito a ser feito, afinal, começar do zero não era mesmo fácil. Tinha levado Aurora comigo para a clínica que consegui naquele mesmo centro comercial que mostrei a Leda no fatídico dia da decisão final. As creches locais não tinham mais vagas naquele ano, então precisaria arrumar alguma babá o quanto antes para ficar com minha princesinha, pois a inauguração já estava atrasada.Abriríamos em dois dias e eu precisava planejar a finalização do local logo. O espaço não era enorme, mas era ótimo para o meu propósito. Daria pra abrigar em média 20 animais por vez. Queria poder além de tratar os animais domesticados, tratar igualmente e voluntariamente os animais de rua, então as obras para a criação de canis e gatis limpos e modernos para o confor
Cecília Acordei mais decidida que nunca a sair pra buscar emprego, afinal aqueles aplicativos não estavam dando retorno algum desde antes de ir para a casa dos meus pais até. O destino realmente não estava feliz comigo, pregando uma peça atrás da outra, desandando a minha vida sem limites há um ano, não duvidaria se em mais isso, ele não me derrubaria. Como toda manhã, nada tinha mudado, eu sempre acordava mais cedo do que Bia mesmo ela já estando atrasada, então arrumei a mesa e fiquei imaginando como havia sido esse tempo que não estive ali, ela provavelmente nem comia direito, aposto. Ouvi ela saindo do seu quarto que ficava no meio do comprido corredor que ligava a sala ao banheiro e me inclinei para frente sob a bancada da nossa cozinha americana pra implicar com ela. — Deu formiga na cama é senhorita? — ela olhou pra trás debochando, enquanto caminhava pro banheiro escovando os cabelos. — Não, eu tenho que
Fernando Cheguei cedo na clínica aquele dia, por duas razões muito nobres. Primeiro, tinha uma paciente à minha espera, com filhotinhos recém nascidos e segundo porque minha salvadora estava em casa para cuidar da minha pequena, me dando a chance de me dedicar mais àquela nova fase. Por ainda ser pequeno e pouco conhecido por ali, não via necessidade de ter uma recepcionista ainda e caso precisasse de plantão, eu procuraria algum estagiário para fazer um freelance. Conseguiria facilmente me virar sozinho por hora e assim, ter menos gastos. Não que isso fosse algum problema, mas eu prezava pelo futuro da minha princesinha dali pra frente e só queria deixar o melhor pra ela. Portanto, após verificar minha paciente especial e seus filhotinhos, sentei no balcão da recepção com meu notebook pra mais uma nova busca de babás, afinal Leda não poderia ficar muito além do final da semana. Já estava me dando por vencido e telefonando para
Cecília Meu corpo inteiro doía e eu sabia que não era só o cansaço de ter dormido pouco na noite passada. Doía de medo e nervoso por estar indo pra casa de um homem, cujo a filha tão pequena e ingênua me causou tantos sentimentos em míseros segundos. Depois que cheguei em casa na noite anterior, se passaram pouco mais de duas horas e Fernando me ligou, dizendo para que eu chegasse por volta das oito da manhã que era o horário que ele costumava sair de casa para a clínica. Ao me passar o endereço, percebi que morávamos muito próximos, em ruas paralelas, e até passei a gostar mais da ideia de trabalhar ali, já que eu poderia ir andando e pouparia muito mais o meu tempo para a busca da minha filha. Mas sempre que lembrava daquela bebezinha linda de olhos verdes, como a minha Gio, rindo para mim de dentro do carro, eu já suava frio. Por isso, passei o curto trajeto todo, mentalizando o mantra que criei na madrugada
Fernando Hoje era o dia de me despedir da minha Ledinha, ela sairia de viagem e eu não poderia deixar de leva-la à rodoviária. Por isso, no dia anterior, antes de sair, coloquei um aviso na porta do consultório, que chegaria um pouco mais tarde hoje. Os meus poucos clientes conquistados nesses cinco dias de abertura, já estavam atendidos como devido, então não tinha com o que me preocupar por ora. Porém, mesmo assim, acordei mais cedo que o normal, no intuito de preparar um belo café da manhã de surpresa para nossa convidada mais que especial. Leda merecia o mundo todo só pra ela, mas como eu não tinha esse poder ainda, o menor gesto de amor retribuído a ela, já era válido. Tomei um banho, me vesti
Cecília Já estava no meu terceiro dia com Aurora, dessa vez sem Leda e agora um pouco menos desconfortável com minha própria situação, mas ainda assim, muitas vezes nervosas com certos gestos da própria bebezinha. Com ela no colo, observamos o carro de Fernando seguir viagem em direção a rodoviária e acenamos alegres pra ele. Voltei a entrar pra dentro da casa com ela e respirei fundo olhando nos olhos daquela que tão inocentemente me assustava. — Oi minha fofinha, então, o que quer fazer hoje só com a tia Cecí? — Aurora olhava pra mim extremamente sorridente e eu me sentia estranhamente feliz com aquilo. Não completa, é claro, afinal minha filha ainda não estava comigo. Mas feliz por ter a oportunidade de ter Aurora em minha vida por agora. — Ah sim, parquinho seria uma ótima ideia. Eu ia adorar! Vamos trocar você, levar uns brinquedinhos e nos divertir muito. — Eu continuava conversando com ela
FernandoMais uma vez, ela havia corrido dele e Aurora. Como Leda poderia dizer para eu confiar nela, se era pior que bicho do mato? Ri com a comparação e caminhei até o berço da minha filha. Ela havia acordado e eu estava doido para abraça-la depois de um dia exaustivo.Claro que justo no dia que eu resolvia chegar atrasado, era o dia que receberia dois novos clientes de uma vez não é mesmo? Quando cheguei na clínica havia um papel colado por cima do meu aviso com um telefone, e assim que abri a porta, avistei outro. Telefonei para ambos e fui até suas respectivas residências. Afinal, não os faria se deslocar novamente, já que o erro havia sido meu. Atendi uma calopsita e um cãozinho filhote que havia ingerido algo indevido, típico para sua idade.Quando voltei dos dois atendimentos, recebi mais um novo cliente a procu
Cecília Acordei, mas continuei deitada. Ainda me sentia envergonhada pelo ocorrido na noite passada. Eu pegara no sono em meio ao serviço. O que Fernando devia estar pensando de mim agora? Eu deveria estar muito bem acordada, tomando conta de sua filha. Mas não, eu tinha que ter passado essa vergonha no meu primeiro dia sozinha com ela né? Bufei irritada comigo mesma e levantei logo, afinal, chegar atrasada estava longe de ser uma opção naquele momento. Fui pra cozinha começar a preparar as coisas e me deparei com Bia. — Uau, que bicho te mordeu? Levantando cedo hein, quem diria. — Impliquei e ela fez uma careta. — Pensei em ir com você até a casa do Fernando e acompanhar ele até a clínica para poder ver os filhotinhos antes de entrar na lanchonete. — Ela deu de ombros. — Ah, nem me fale em Fernando. Não sei como vou ter coragem de olha-lo hoje. — Tapei o rosto enquanto ria de vergonha.