— Está ansiosa, senhorita? — o guarda me perguntou, analisando minha expressão. Forcei um sorriso.
— Um pouco — confessei. — Nunca estive no castelo antes.
— A maioria das pessoas nunca esteve. Mas, posso dizer que é maravilhoso. Repleto de histórias antigas e misteriosas...
Eu sorri e olhei para o chão, pensando em algo que estava preso em minha mente. Criei coragem para perguntar e consegui dizer, vencendo a súbita timidez:
— O oficial Jonathan está fora de serviço?
Ean Listern franziu o cenho, me olhando por um segundo. Depois, sua mente pareceu clarear e o entendimento invadiu sua face.
— Ah! Sim. Ele não está trabalhando hoje. Voltou ao castelo assim que acabou de visitar as jovens da competição, convidando-as para a estadia no palácio.
— Presumo que todas tenham dito sim imediatamente — deduzi amargamente. Recostei-me no banco e olhei pela janela.
— Bom, nem todas — o oficial disse, surpreendendo-me e inclinando-se em minha direção para apoiar o cotovelo nos joelhos. Um pequeno sorriso brincou em seus lábios. — Você não disse.
— Eu quis dizer com exceção de mim.
— Sabe, Jonathan ficou muito surpreso ao ouvir que você não queria participar da competição — Ean disse, franzindo o cenho e me olhando de modo especulativo.
— Eu imagino. Todas as garotas desse reino devem babar no famoso príncipe de Cannehor — falei, afinando a voz ao dizer as últimas palavras. Ean abafou um riso com minha imitação.
— Presumo que você não seja uma delas.
— Presumo que esteja óbvio. Sabe, eu não ligo muito para o fato de ele ser um nobre ou membro da corte — disse e suspirei, olhando pela janela. — Eu sei que é errado julgar alguém antes de conhecê-lo... Mas, meu julgamento não se deriva do fato de ele ser o príncipe, e sim do fato de ele e o rei estarem promovendo essa competição estúpida.
— Por que tem tanta raiva da competição, senhorita? — o guarda perguntou, estranhando minhas palavras. Ele se inclinou novamente em minha direção e tombou levemente a cabeça para o lado, como se estivesse muito interessado em saber o que eu teria para dizer.
— Eu sei o motivo pelo qual fora criada, eu sei do ex-rei Carlos VIII e sei que ele adorava fazer as mulheres de objeto. Também sei que a lei havia sido abolida, e que fora reconstituída por causa da morte da princesa. Mas ainda tem o mesmo princípio, e eu ainda não gosto dela.
— Senhorita, me perdoe, mas você está errada — ele disse, apoiando as costas no banco da carruagem. — Originalmente, não era bem uma competição. Era apenas uma semana de festa, durante a qual, à noite, o príncipe dava bailes com o propósito de dançar com as pretendentes e conhecer seus dotes. No fim, ele escolheria a melhor, baseando-se no dinheiro da família, e a levaria para cama. O rei Stephen mudou isso ao reinstituir a lei e o príncipe concordou, achando melhor a ideia de uma competição fundamentada em caráter pessoal e não financeiro; desse jeito, teria a chance de ao menos conhecer a futura rainha, antes de casar-se.
Eu ergui as sobrancelhas, de repente me sentindo estúpida. Encolhi-me, sem poder encarar o oficial, que ainda me olhava. Então não era tão horrível como eu pensara, afinal... Eu sempre achara que era a única garota a saber da história toda e por isso não gostava da ideia de competir no castelo, mas, aparentemente, ninguém do povo sabia a história toda. O ex-rei fez muito bem escondendo a verdade.
— Acho que lhe devo desculpas, oficial — admiti timidamente, encarando meus pés. Ean Listern riu, o que fez seus olhos azuis brilharem, e relaxou no banco.
— Não precisa se desculpar, senhorita. Apenas prometa que irá tentar não perder a competição propositalmente — falou, ainda com um sorriso. Acompanhei-o com uma gargalhada e cobri a boca com a mão para abafar o som.
— Certamente, senhor. Eu prometo — declarei, estendendo minha mão para selarmos o acordo. Ele apertou-a.
— Então estamos entendidos.
Eu sorri e olhei para a janela, me surpreendendo com a vista. Um rio de águas cinzentas e turbulentas passava ao nosso lado, criando uma divisa natural com o lado norte do reino, onde era possível ver montanhas e árvores criando imensas florestas. Era lindo, e fiquei tão distraída observando a paisagem que apenas me dei conta do que acontecia na carruagem quando Ean abriu a porta, tirando-me de meus pensamentos. Havíamos parado. Ele pulou para o chão de terra, virando-se para mim em seguida e estendendo uma mão.
— Você não vem? — ele perguntou, quando não soube o que fazer. Rapidamente, aceitei sua ajuda e desci da carruagem.
— Por que paramos aqui?
— O cavalo precisa descansar, e nós precisamos esticar as pernas — Ean respondeu-me, apontando para o grande corcel branco que trotava lentamente até a margem do rio. Ele abaixou a cabeça e bebeu a água.
— Esse rio não é muito sujo para ele? — disse, olhando a cor acinzentada da água.
— Na verdade, nunca soubemos o que causa essa cor, mas definitivamente não é algo sujo. Algumas pessoas dizem que é a vegetação do próprio rio, como as algas, mas ninguém tem certeza disso — o guarda explicou, e fez uma pausa antes de voltar a falar. — Nós o chamamos de Storm River.
Dei uma leve risada com o trocadilho da tempestade e olhei para o rio. Aproximei-me da margem, postando-me ao lado do cavalo. Ele tinha uma coleira no pescoço, onde estava escrito seu nome. Maximus. Sorri e tentei alcança-lo para um breve afago, mas Ean me impediu ao segurar meu braço. Embora o toque tenha sido leve, me assustou e me fez recuar do animal.
— Eu não faria isso se fosse você. Maximus é realmente muito arisco, e não gosta que o toquem — ele alertou e, quando me afastei, Ean soltou-me, dirigindo-se para a sombra de uma árvore próxima.
O guarda e o cocheiro pegaram comida de uma cesta e me olharam, oferecendo uma fruta. Recusei e voltei a observar o animal à minha frente, sentando-me no chão.
Eu o observei de longe. O garanhão bebia a água com dificuldade por conta da forte correnteza, que ricocheteava nas pedras das margens e erguia-se, atrapalhando o animal a enxergar o que fazia. Contudo, ele não desistiu. Continuava tentando matar sua sede, que parecia ser grande. De repente, tive uma ideia.
Olhei para a correnteza tempestuosa e me concentrei, recheando minha mente de pensamentos positivos e calmos. Lentamente, a água parou de bater nas pedras e se acalmou, por um breve momento. Maximus afundou seu focinho no rio e bebeu uma grande quantidade de líquido, aproveitando a chance que aparecera. Após alguns segundos, o efeito de minha magia se esvaiu, permitindo que Storm River voltasse ao normal.
Quando isso aconteceu, me senti infinitamente mais cansada. Mudar a natureza, mesmo que por um breve momento, tinha o seu preço. A noite havia sido péssima e usar meus poderes esgotara todo o meu estoque de energia. Estava pronta para deitar na grama e fechar os olhos quando uma sombra cobriu meu rosto. Era Maximus. O cavalo abaixou sua cabeça e esfregou o focinho em meu braço, relinchando levemente e balançando sua crina. Sorri e tomei isso como um agradecimento, passando a mão em seu pescoço.
— Você é tão bonzinho, não é? — sussurrei e sorri para ele. — Tenho certeza que não é tão bravo quanto Ean disse.
Debaixo da árvore, o guarda e o cocheiro nos olhavam, boquiabertos e alarmados. Aparentemente, viram o corcel se aproximar de mim e acharam que iria fazer algo, mas Maximus era um bom cavalo. Ele estava apenas agradecendo-me por ter possibilitado que tomasse água. Levantei-me e acompanhei o animal até onde os outros dois estavam.
— Eu acho que vou voltar para dentro da carruagem — declarei, reprimindo um bocejo. — Não dormi nada esta noite, e a viagem pode ser cansativa.
— Fique à vontade, senhorita. Gostaria que eu a acompanhasse?
— Não há necessidade, Ean. Apenas me avise quando chegarmos ao castelo, caso eu não acorde antes.
— Tudo bem, senhorita.
Agradeci e me despedi de Maximus, prometendo que o visitaria no castelo. Fui até a carruagem e deitei-me no banco, me encolhendo um pouco para que meu corpo inteiro coubesse nele. A superfície de veludo almofadada era muito confortável, embora eu não tivesse muita liberdade de movimento. Fechei os olhos e o sono veio, sem nenhum esforço, juntamente com mais um pesadelo.
Assim como em todos os outros sonhos que eu tinha, eu era uma versão mais nova de mim mesma e estava correndo pela floresta, aparentemente me divertindo. Parei de andar quando cheguei a uma clareira, onde uma toalha de piquenique estava posta, e uma cesta de comidas estava à vista. Eu esperava que o sonho parasse nesse momento e eu acordasse, como aconteceram em todas as outras vezes. Mas, eu estava errada. Dessa única vez, meu pesadelo foi invadido por vozes vagamente familiares. Eu conseguia ouvi-las, mas entender o que diziam era um desafio. Olhei em volta, procurando a origem do som, e foi quando, lentamente, duas pessoas se materializaram na minha frente.
Eram um homem e uma mulher. Eles estavam sentados na toalha, tirando coisas da cesta e me olhando com sorrisos no rosto. Eu me assustei. Nunca havia visto aquelas pessoas na minha vida, mas elas me pareciam remotamente familiares e, de alguma forma, eu sabia que as conhecia. Apenas não me lembrava.
O solavanco que a carruagem deu ao passar por uma pedra na estrada me fez bater com a cabeça no banco e acordar, com dor. Passei a mão onde havia machucado e abri os olhos, me sentando de vagar, ainda tomada pelo sono.
— Desculpe por isso, senhorita — Ean disse, e pude ver que seus olhos examinavam o local da pancada. — Dói muito?
— Não, estou bem. Obrigada.
Esfreguei os olhos e bocejei, pronta para perguntar se eu havia dormido muito. Quando olhei pela janela, as palavras fugiram de minha mente, e eu encarei o grande e pesado portão pelo qual acabáramos de passar. O ferro antigo e descascado rangia conforme fechava, mas continuava sendo imensamente lindo. Detalhados de forma peculiarmente redonda e contorcida, o portão e o muro que nos cercavam serviam de proteção contra ataques e invasões bárbaras, mas também confinava a todos os que viviam dentro deles.
— Chegamos à capital, senhorita — Ean anunciou. — Bem-vinda a Damelok.
Nós andamos por pelo menos mais dez minutos por um pasto verde vazio, quando finalmente avistei o castelo. Era uma construção imensa, com as paredes feitas de tijolo de pedra, empilhados um por um, o que causava certo desnível na textura. Havia duas torres grandes e quatro torres menores, que guardavam, no topo de cada uma, um arqueiro vigilante e a bandeira do país, com as cores do reino em destaque: branco, azul e prata. Afundei na banheira para enxaguar o rosto. A água estava morna e Íris havia colocado espuma e pétalas de rosa em meu banho. Eu fiquei impressionada, mas percebi que provavelmente era algo comum para quem morava em um castelo. Estava com a leve impressão de que sentiria falta das coisas simples que tinha em casa. A vida da realeza poderia ser maravilhosa, mas certamente não era perfeita. Pelo menos, não para mim. Tantas coisas com as quais lidar... O reino, o povo, as guerras e invasões, os impostos, as responsabilidades... Era preciso ser muito cauteloso e minucioso. Uma decisão tomada errada, quanto ao que fazer num campo de batalha ou quanto a tentar satisfazer as necessidades de seu povo, poderia colocar tudo a perder. Saí de meus devaneios quando percebi que ainda estava com a trança de hoje de manhã. A água não havia desfeito o penteado. Passei os dedos no cabelo e, conforme eu desemaranhava os fios, eles ondulavam-se. Lavei-o com um shampoo cheiroso que eu achei ao lado da banheCapítulo 6
Enquanto comia lentamente um delicioso pudim, eu tentava controlar minha raiva do príncipe por ter me enganado e questionava a mim mesma por que ele havia feito isso. Ele convencera Íris a mentir para mim! O que havia de errado com esse sujeito? As perguntas rondavam minha mente, e eu imaginei se os guardas me prenderiam caso eu gritasse com o único herdeiro do trono. Deduzi que sim, então tentei achar um jeito de controlar meus sentimentos. Apesar de não ser nada demais, não gostava de ser enganada. Acho que ninguém gostaria, na verdade, até porque aquilo não fazi
O homem entrou às pressas no quarto, andando de um lado para o outro. Ele aparentava ter acordado há pouco, assim como eu, pois suas roupas estavam amassadas e seu cabelo negro estava bagunçado. Sua pele levemente bronzeada e seus olhos verdes meio amarelados faziam dele uma pessoa atraente, e eu levei algum tempo para reconhecê-lo, devido ao sono. Era o filho da condessa. Eu não tinha ideia de qual era seu nome, tudo o que sabia sobre ele era que seria o conde do reino em alguns anos, mas, por agora, era chamado de príncipe. O que é que ele estava fazendo em meu quarto?
Depois do meu incidente com Charlotte, eu fiquei a manhã toda no quarto. Íris, que passara pelo corredor alguns minutos depois do acontecido, se assustara com a garota cheia de galhos na cabeça e resolvera ajudar. Aparentemente, eles haviam se enroscado em seu cabelo, mas não era nada impossível de resolver, e não fora necessário cortar ou fazer coisas absurdas. Quando Íris me disse aquilo, eu soltei uma gargalhada alta. Todo aquele escândalo por nada. Seria possível que um pedacinho de planta assustava tanto assim uma pessoa?
Jonathan me conduzia pelo castelo, sempre segurando minha mão. Ele havia se desculpado em nome da condessa, e depois o silêncio entre nós pesara, aumentando minha tensão. Contudo, ele sorria, aparentando bom humor, e vez ou outra me olhava, como que esperando por algo. O príncipe andava por um caminho que eu desconhecia e do qual provavelmente jamais me recordaria, e eu estava começando a ficar impaciente quando ele parou no meio de um corredor e virou-se para me encarar. O sorriso usual de seu rosto tornava-se falso aos meus olhos. —
Um vento frio e cortante nos atingia fortemente, fazendo o cabelo dourado de John voar para seu rosto. Eu ainda estava em seu colo, e ele parecia procurar um lugar no chão para me deitar. Fechei os olhos quando percebi o que tudo aquilo significava. Era esse lugar que havia despertado minhas memórias quando cheguei ao castelo. Era a esse lugar que o príncipe Matthew havia se referido como perigoso quando dissera que eu precisava lembrar-me do meu passado. Apesar de ter tido aqueles flashes de memórias, eu ainda não me recordava do que havia acontecido — pelo menos não completamente e com detalhes —, mas não estava certa de que queria mesmo saber. Meu sangue gelou quando ouvi galhos se quebrarem. Eu olhei para Jonathan, mas ele estava ocupado procurando a fonte do som. A floresta era cheia de animais selvagens e perigosos, e muitos deles saíam para caçar à noite. E, pior que isso: havia bárbaros que aproveitavam a falta de segurança do castelo para esconderem-se entre as árvores e tentarem saquear o lugar. Eu não duvidaria se um homem surgisse dos arbustos com uma espada na mão e tentasse nos matar, porque ele certamente reconheceria Jonathan como o príncipe herdeiro. O pior de tudo era que, se algo acontecesse conosco, a culpa seria toda minha.Capítulo 12