Estive tão perdida em pensamentos que não percebi que as garotas haviam se levantado. Um guarda estava em cima do palanque, e ele tinha dito algo ao qual não dei a mínima atenção, mas aparentemente seu aviso era a razão pela qual as competidoras pararam de comer imediatamente e dirigiram-se até uma porta interna do salão. O príncipe passou pela mesa onde eu estava e foi até o canto do salão, onde uma fila de garotas formava-se, desaparecendo dentro do que parecia ser uma pequena salinha de boas vindas.
Dei uma última garfada em meu pudim — comida não se desperdiça! — e me levantei, indo para o final da fila. Encarei as quatorze garotas que antecediam a minha vez de falar com o príncipe e suspirei, sendo subitamente invadida pelo cansaço. Ah, Deus, isso vai demorar, pensei, lamentando não poder estar na minha cama neste momento. Imaginei como aqueles lençóis de seda deveriam ser confortáveis e como aqueles travesseiros pareciam muito convidativos agora... Apoiei-me na parede e fechei os olhos, esperando o tempo passar.
Uma a uma, vi as garotas saírem da salinha com sorrisos no rosto, e deduzi que provavelmente o príncipe estava sendo gentil e galã com todas elas. Rolei os olhos. O típico cavalheiro agradando a todas as suas pretendentes. Quando a última competidora saiu da sala, eu notei que seu batom rosa estava um pouco borrado e ela arrumava seu vestido, abaixando a saia colada. Ergui as sobrancelhas e me perguntei o que havia rolado ali dentro, mas não tive tempo para pensar sobre isso, pois o guarda me chamou.
Suspirando, entrei na pequena salinha e olhei ao redor. Era mal iluminada, possuía apenas um sofá grande de couro branco e uma mesinha de centro de madeira, onde estavam postas três pequenas velas — a única luz do ambiente. Tive vontade de rir, mas consegui conter-me ao morder o lábio e fazer uma pequena reverência.
— Boa noite, senhorita — Jonathan disse, levantando-se do sofá onde estava sentado.
— Boa noite, alteza.
Tentei manter a educação e não demonstrar o pouco da raiva que ainda sentia por não saber desde o início sua verdadeira identidade. Pensando bem, poderia ser por uma questão de segurança... Mas, então, por que Íris havia achado tão engraçado quando comentei que não sabia quem era o príncipe? E por que eu era a única a não saber? Se fosse realmente uma questão de prevenção, não haveria razões para que ela risse, e todas as competidoras estariam na mesma situação que eu.
— Estou muito feliz que tenha aceitado o convite, senhorita Fairway — ele falou e sorriu. Apontou para o sofá e lançou-me um olhar gentil. — Sente-se, por favor.
— Eu estou bem aqui, obrigada.
Dei um sorriso falso que contribuiu para desmanchar o seu e fez com que se aproximasse cautelosamente, dizendo:
— Você deve estar se perguntando por que eu me passei por um guarda quando fui à sua casa. Eu peço desculpas por isso, mas foi necessário. Fazia parte de um... Experimento.
— Experimento? Que tipo de experimento? — perguntei, sem conseguir conter a curiosidade. Jonathan abaixou a cabeça, parecendo constrangido, e vi suas bochechas corarem.
— Eu não queria que vocês se interessassem pelo meu cargo ou pelo meu dinheiro. Eu queria alguém que me amasse por ser quem sou.
Eu ergui as sobrancelhas, surpresa. O príncipe não era nada como eu pensei que fosse. Inclinei a cabeça para o lado e aproximei-me um passo, curiosa. Eu era uma mera estranha e ele estava dividindo segredos comigo, como se me conhecesse há muito tempo.
— Por que está me contando isso, alteza?
Jonathan franziu o cenho.
— Como assim?
— Você poderia ter dado uma desculpa ou simplesmente não dito nada, mas escolheu me contar algo pessoal que nem todos entenderiam, e muitos achariam ridículo. Por quê?
— A confiança tem que começar de algum lado, senhorita Fairway. Além disso, eu sabia que você me entenderia.
— Como?
— Eu vi quando você recusou o convite. Você não se importa com o fato de que eu seja o príncipe, e eu sei que não gosta da competição por parecer desumana. Então, concluí que, se soubesse meu plano, você o aprovaria.
Estava pronta para concordar, quando algo que ele disse me chamou a atenção.
— Como sabe que não gosto da competição, alteza? — perguntei, erguendo uma sobrancelha e cruzando os braços. Jonathan me lançou um sorriso de canto de boca.
— Um passarinho me contou.
— Ean... — murmurei, balançando a cabeça. — Sabia que não podia confiar nele!
— Muito pelo contrário, senhorita. Você pode confiar nele. O oficial Listern nunca me contaria nada que prejudicaria sua privacidade.
— Você poderia ter apenas falado comigo.
— Poderia mesmo? — Arqueou as sobrancelhas com ironia, referindo-se à minha relutância inicial em relacionar-me com ele.
— Está falando agora, não está? — retruquei e semicerrei os olhos.
— Fale a verdade: se pudesse escolher entre estar aqui e em qualquer outro lugar, não estaríamos conversando agora. Estou certo?
— Não exatamente... Se o lugar for mesmo muito ruim, talvez eu prefira estar aqui — brinquei e arranquei uma risada do príncipe, mas depois percebi que era realmente verdade. Suspirei, temendo que fosse quebrar a promessa que fizera ao meu pai e a Ean. — Olha, não é que eu não goste de você... Eu nem te conheço! E, pra falar a verdade, eu não sei muito sobre o amor, mas eu acredito que ele seja algo automático, sabe? Não pode ser controlado ou mudado de acordo com a vontade de alguém. Então, não me leve a mal, você parece mesmo ser uma pessoa maravilhosa: gentil, bonito, romântico... Mas, eu não acho que eu vá te amar. Entende? Nós daríamos belos amigos, mas não sei se funcionaríamos como casal.
Por alguns segundos, Jonathan apenas me encarou, seus olhos fixos nos meus. Se ele sentiu-se ofendido ou chateado, não demonstrou. Mas, algo brotou em suas íris douradas, um sentimento de desafio. Franzi o cenho quando ele se aproximou com o fantasma de um sorriso nos lábios. Eu havia acabado de dizer que não queria casar-me com ele e muito menos competir por sua mão. O príncipe deveria ao menos estar bravo ou, então, deveria estar me dispensando do castelo. Fiquei ainda mais confusa quando ele disse:
— Eu gostaria de uma chance de mudar a imagem aparentemente horrível que a senhorita possui de mim. Mesmo que não queira estar aqui, você está, e, se for embora um dia, não quero que vá com pensamentos errados e ruins sobre mim. Por isso, te peço mais algumas semanas e, se ainda for sua decisão retornar para casa, assim será.
— E eu tenho alguma escolha que não envolva aceitar essa proposta? — perguntei, sentindo-me uma prisioneira sendo convidada para permanecer em sua sela. Ainda que estivesse aqui por vontade própria, eu não queria permanecer, mas Jonathan desejava, a todo custo, manter-me consigo.
— É claro que tem. A senhorita pode recusar, se quiser, mas peço que pense bem em sua resposta. Por favor.
Os olhos dourados e suplicantes do príncipe cravaram-se nos meus, e o sorriso nervoso que ele me dava freava minha vontade de dizer não imediatamente. Eu suspirei, encarando-o. Ele era bonito, e estava determinado a me conhecer e abrir-se para mim. Senti um pouco de pena. Afinal, o que eu tinha a perder? Umas semaninhas não era nada e, com sorte, ele se cansaria de mim mais cedo do que isso. Rezei para que realmente acontecesse desse modo, e disse:
— Está bem, eu aceito.
Jonathan colocou as mãos no bolso e seu sorriso abriu-se ainda mais, tornando-se tímido.
— Bom, então não vou tomar mais de seu tempo. E, por falar em tempo, penso que não há nada mais justo do que começarmos nosso acordo amanhã, já que a senhorita deseja ir embora o quanto antes. O que acha?
— Amanhã, então — disse, apreciando seu modo de pensar. Quanto mais rápido ele desistisse de mim, melhor. — Após o almoço?
— Perfeito. Eu encontro a senhorita em seus aposentos. Esteja pronta.
Assenti e fiz uma pequena reverência, despedindo-me do príncipe. Finalmente saí da salinha e encontrei-me novamente no salão principal. Tentei recordar-me do caminho até meu quarto, mas acabei me perdendo algumas vezes. Quando consegui encontrar as escadas e subir até o quarto andar, havia se passado mais de meia hora.
Cansada e com muito sono, entrei em meu quarto, joguei os saltos em um canto e atirei-me na cama, sem importar-me com o vestido que usava. Imediatamente, meus olhos se fecharam e o sono me engoliu, trazendo com ele mais um pesadelo.
Mais uma vez, eu corria pela trilha da floresta, brincando com o vento. Achava estranho sonhar com o meu eu de anos atrás, mas havia me acostumado após tanto tempo vendo a mesma imagem repetir-se diversas vezes em minha mente. Mas, dessa vez, o pesadelo mudou, assim como quando dormi na carruagem. Naquela tarde, além de ter chegado à clareira com a toalha de piquenique, a Catherine de nove anos encontrara-se com duas pessoas no sonho.
Nesta noite, não foi diferente. Quando saí da floresta, o homem e a mulher estavam à minha espera, e sorriam para mim. Eles me chamavam com gestos, e novamente suas vozes podiam ser ouvidas, mas as palavras não eram distinguidas. Eu me aproximei correndo e sentei-me no meio do casal. Apesar de suas feições estarem um pouco anuviadas, ainda tinha o pressentimento de que os conhecia. Estava pronta para tentar me comunicar quando algo me interrompeu.
Uma batida soou na porta, forte e alta. Por alguns segundos, meu cérebro ficou confuso. Não havia nada no sonho que pudesse causar tal barulho. De onde vinha aquilo? Mais uma batida, dessa vez acompanhada de uma voz dizendo meu nome. Eu percebi, então, que não se tratava de um barulho na minha mente, e sim no mundo real. Aos poucos, eu acordei.
O barulho de mão contra madeira tornou-se incessante e extremamente irritante, e só parou quando abri a porta. Um homem estava em minha frente, alto, moreno, com olhos verdes e feições asiáticas. Esfreguei os olhos. Quem era aquele cara?
— Nós precisamos conversar — o desconhecido disse.
O homem entrou às pressas no quarto, andando de um lado para o outro. Ele aparentava ter acordado há pouco, assim como eu, pois suas roupas estavam amassadas e seu cabelo negro estava bagunçado. Sua pele levemente bronzeada e seus olhos verdes meio amarelados faziam dele uma pessoa atraente, e eu levei algum tempo para reconhecê-lo, devido ao sono. Era o filho da condessa. Eu não tinha ideia de qual era seu nome, tudo o que sabia sobre ele era que seria o conde do reino em alguns anos, mas, por agora, era chamado de príncipe. O que é que ele estava fazendo em meu quarto?
Depois do meu incidente com Charlotte, eu fiquei a manhã toda no quarto. Íris, que passara pelo corredor alguns minutos depois do acontecido, se assustara com a garota cheia de galhos na cabeça e resolvera ajudar. Aparentemente, eles haviam se enroscado em seu cabelo, mas não era nada impossível de resolver, e não fora necessário cortar ou fazer coisas absurdas. Quando Íris me disse aquilo, eu soltei uma gargalhada alta. Todo aquele escândalo por nada. Seria possível que um pedacinho de planta assustava tanto assim uma pessoa?
Jonathan me conduzia pelo castelo, sempre segurando minha mão. Ele havia se desculpado em nome da condessa, e depois o silêncio entre nós pesara, aumentando minha tensão. Contudo, ele sorria, aparentando bom humor, e vez ou outra me olhava, como que esperando por algo. O príncipe andava por um caminho que eu desconhecia e do qual provavelmente jamais me recordaria, e eu estava começando a ficar impaciente quando ele parou no meio de um corredor e virou-se para me encarar. O sorriso usual de seu rosto tornava-se falso aos meus olhos. —
Um vento frio e cortante nos atingia fortemente, fazendo o cabelo dourado de John voar para seu rosto. Eu ainda estava em seu colo, e ele parecia procurar um lugar no chão para me deitar. Fechei os olhos quando percebi o que tudo aquilo significava. Era esse lugar que havia despertado minhas memórias quando cheguei ao castelo. Era a esse lugar que o príncipe Matthew havia se referido como perigoso quando dissera que eu precisava lembrar-me do meu passado. Apesar de ter tido aqueles flashes de memórias, eu ainda não me recordava do que havia acontecido — pelo menos não completamente e com detalhes —, mas não estava certa de que queria mesmo saber. Meu sangue gelou quando ouvi galhos se quebrarem. Eu olhei para Jonathan, mas ele estava ocupado procurando a fonte do som. A floresta era cheia de animais selvagens e perigosos, e muitos deles saíam para caçar à noite. E, pior que isso: havia bárbaros que aproveitavam a falta de segurança do castelo para esconderem-se entre as árvores e tentarem saquear o lugar. Eu não duvidaria se um homem surgisse dos arbustos com uma espada na mão e tentasse nos matar, porque ele certamente reconheceria Jonathan como o príncipe herdeiro. O pior de tudo era que, se algo acontecesse conosco, a culpa seria toda minha.Capítulo 12
O ar da sala pareceu ficar enquanto o rei me encarava por longos segundos, parecendo fazer um imenso esforço para controlar a raiva. Eu tentei manter a compostura e não fraquejar, embora fosse imensamente impossível. Quando ele finalmente desviou os olhos dos meus, foi para fixar em um ponto abaixo de meu pescoço. Eu suspirei levemente, aliviada, mas depois percebi que não havia me livrado da situação. Apenas entrado em outra ainda pior.Os olhos dourados do rei lentamente cresceram até ficarem de um tamanho humanamente impossível, preenchidos d
Cinco dias se passaram e, durante todos eles, eu não parei de me fazer perguntas um único segundo. Como Matthew sabia de tudo o que havia me contado? Quem apagou minhas memórias? Por que o rei me chamara de bruxa, e como ele e meu pai se encaixavam em tudo isso? E, o mais importante, quem matou meus pais biológicos?Obviamente, quando perguntei essas coisas para Matthew, ele não respondeu. A nenhuma delas. "
Jonathan e eu não conversamos sobre o que houve na torre, mas ambos sabíamos que algo mudou lá. Ele ainda estava proibido de me ver, porém isso não impediu que continuasse me fazendo visitas e me levando para conhecer o imenso castelo. Em segredo, é claro. Pouco a pouco, voltamos a nos falar e o príncipe parecia mais aberto e feliz do que já o tinha visto. Acho que amigos fazem isso com você. Durante alguns dias, tudo pareceu voltar a como era quando cheguei. Ou quase tudo.