— Nós precisamos conversar — repetiu. — Meu nome é Matthew. Desculpe vir tão cedo, mas eu queria encontrar você sozinha, e essa foi a única solução que consegui pensar.
— Falar comigo? No meio da noite? Sozinho? — enfatizei, para que entendesse o quão estranho aquilo era. Cruzei os braços e mantive-me afastada. — O que um príncipe poderia querer comigo?
— Eu sei que isso é estranho, mas, por favor, preciso que me escute. Logo vai amanhecer, não temos muito tempo.
Olhei para a janela e percebi que ele estava certo. O sol despontava no horizonte, iluminando o céu com seus primeiros raios alaranjados. Matthew virou-se e andou até o banheiro, para voltar em seguida segurando em suas mãos um jarro de vidro com pétalas de rosa.
— O que está fazendo? Isso é usado no banho.
— Eu sei. Olhe, isso vai ser incomum para você, mas, não importa o que pense, não fuja. Por favor.
Meu medo da situação cresceu quando o príncipe disse aquilo, e eu dei um passo para trás. Estávamos a um metro de distância quando ele, sem razão aparente, despejou o conteúdo do jarro no chão e deixou-o na cama. Deu um passo para o lado e a luz do nascer do sol iluminou a mancha vermelha no carpete.
De repente, uma a uma, as pétalas deixaram o chão e começaram a flutuar, até formarem uma fila no ar e começarem a rodopiar ao redor de si mesmas. Eu arfei e tropecei em meus próprios pés ao tentar recuar. Um redemoinho vermelho formava-se em meu quarto, e subia mais a cada instante. Eu estava hipnotizada, não conseguia parar de encarar aquilo. Era incrível. Com certeza, era fruto de alguma magia. Voltei meu olhar para Matthew. As pétalas caíram no chão.
— Você tem poderes — afirmei. Eu estava em choque. Em toda a minha vida, nunca havia encontrado ninguém como eu.
— Sim — respondeu, apesar de não ter sido uma pergunta.
— Por que está me mostrando isso?
Ele deu um passo em minha direção e sorriu.
— Porque você também tem.
— Não sei do que você está falando — defendi-me, mentindo descaradamente. Não importava se ele poderia ser parecido comigo, ainda era um desconhecido. Eu não sabia quais eram suas intenções.
— Vamos, Catherine... Eu conheço seu pai. Somos amigos e parceiros comerciais de longa data. Ele vende vinhos para o castelo, você sabe disso. Sou eu quem os compra — o príncipe disse. Era verdade. Parte da fama e sucesso de meu pai devia-se ao fato de que a família real e ele tinham uma parceria comercial inabalável, que perdurava por anos. — Eu a vi crescer naquela fazenda, Catherine.
— Por que eu deveria confiar em você? — perguntei e cruzei os braços. Por anos, eu fui ensinada a proteger minha verdadeira identidade e meus poderes a todo custo, principalmente de pessoas curiosas.
— Você não deveria. Na verdade, a senhorita não deveria confiar em ninguém. Mas, eu te conheço, e sei que irá. Uma hora ou outra, você vai acreditar em mim, e então eu poderei te ajudar. Porque, com os sonhos que está tendo ultimamente, é evidente que precisará de ajuda. E muita.
Eu estreitei os olhos. Sonhos. Como ele sabia? Aquilo ficava mais estranho a cada minuto, e meu instinto de sobrevivência gritava-me para mandá-lo embora dali. Mas, havia algo nele que me impedia de fazer isso, algo que me incomodava e intrigava ao mesmo tempo. Aproximei-me e encarei-o. Seus olhos amarelados eram estranhos, parecidos com olhos de gato: no lugar da pupila, encontrava-se uma fenda muito fina, e a cor de sua íris era tão vibrante que quase cegava. Aquilo não estava assim antes.
— Meus olhos mudam quando eu uso magia — admitiu, parecendo ler meus pensamentos. — Os seus também. E, caso esteja se perguntando, não. Nossos poderes não são iguais. Eu não posso controlar a natureza, mas posso controlar as pessoas, através de suas mentes.
— Mas e quanto às rosas? — perguntei, amaldiçoando a mim mesma por deixar a curiosidade falar mais alto que a desconfiança. — Elas não têm cérebro. Como consegue movê-las?
— O poder da mente humana vai muito além do que você pode imaginar, Catherine. A magia psíquica não se limita apenas a controlar pessoas, mas objetos também. Aquele truque foi apenas uma pequena amostra do quão longe vão minhas habilidades.
Cruzei os braços e ergui uma sobrancelha. Aquele cara não era nada humilde. Mas, se Matthew era tão poderoso como dizia, então seria fácil para ele entrar em minhas memórias e descobrir quem eu sou. Portanto, ele saberia de meus poderes. E dos sonhos. Querendo ou não, aquilo fazia sentido. Eu sabia, não era impossível. Afinal, magia existe, pensei.
— O que você quis dizer quando afirmou que eu vou precisar de ajuda? — indaguei, curiosa, mas ainda cautelosa. Apenas seus poderes não fariam dele uma pessoa confiável.
— Você não se lembra, mas sabe quem são aquelas pessoas — disse, referindo-se ao sonho. Matthew parecia conhecer cada canto de minha mente, e eu não estava gostando daquilo. — No fundo, você sabe. As memórias de uma pessoa só podem ser apagadas superficialmente, Catherine. Não acha estranho que nunca tenha questionado quem eram seus pais ou por que não se lembra de sua infância?
— Luke sempre me disse que quando eu tivesse de saber, eu saberia. Não me preocupo com isso.
— Mas chegou a hora de se preocupar. Você está começando a recordar-se do que aconteceu, e não é por coincidência que isso esteja acontecendo agora. Tem algo nesse castelo que desperta suas memórias, Catherine. Algo perigoso.
Um arrepio percorreu meu corpo. Eu respirei fundo. O príncipe parecia um louco falando aquelas coisas, seus olhos moviam-se rapidamente, analisando cada traço de minha expressão. O medo brotou em mim, e eu me senti uma tola por acreditar nele. Mas, aquilo fazia sentido. Por dez anos, eu cresci sem saber quem eu era e vivi tendo sonhos daquela clareira na floresta. De algum modo, eu sabia que não eram apenas imagens aleatórias criadas por meu subconsciente. Há algum tempo eu desconfiava que pudessem ser algo a mais, mas ouvir Matthew confirmando aquilo me assustou. De repente, tive medo do passado.
— Okay... — falei, finalmente, entregando-me àquela loucura. O arrependimento já começava a tomar conta de mim. Eu o ignorei e aproximei-me do príncipe. — O que eu tenho que fazer?
— Por agora, nada. O sol está nascendo, e você tem um compromisso com Jonathan hoje. Tente descansar mais um pouco, você vai precisar. O príncipe adora dar longas caminhadas pela propriedade.
Eu murchei. Havia me esquecido daquele encontro. Parecia algo fútil agora, diante do que estava acontecendo. Subitamente, o sentimento de euforia me invadiu. Existia alguém igual a mim. Uma pessoa real, e não mulheres que se passavam por videntes e portadoras da verdade. Eu não era a única pessoa com poderes. Olhei para Matthew, que sorriu para mim e colocou a mão no bolso da calça de pijama.
— Eu também me sinto empolgado com essa revelação, senhorita Fairway — ele disse, e eu sabia que havia lido meus pensamentos. O príncipe foi em direção à porta, preparando-se para sair. — Nós teremos mais tempo para conversar sobre isso, eu espero.
Eu assenti. Queria saber o que ele conseguia fazer, e desejei poder mostrar-lhe do que era capaz. De repente, ficar no castelo poderia não ser tão ruim quanto imaginara. Sorrindo, Matthew rodou a maçaneta e saiu do quarto, deixando-me sozinha novamente.
Sentei-me na cama. Não conseguiria dormir, e ainda estava com o vestido da noite passada. Devido ao meu cansaço, não o havia tirado. Inquieta, levantei-me mais uma vez e enrolei-me no roupão de banho. O tecido fofo e grosso me esquentou, e eu saí do quarto para dar uma volta. Não podia acreditar que, depois de todo esse tempo sentindo-me estranhamente única, descobrira que, na verdade, havia outros como eu. Eu não estava sozinha.
Eu me perdi em pensamentos enquanto andava pelo corredor e acabei esbarrando em algo. Ou melhor, alguém. Um vulto amarelo passou por mim, e eu me assustei. Era uma das competidoras. Acabei tropeçando na barra de seu vestido e derrubei nós duas no chão.
— Vê se olha por onde anda, garota! — ela disse, ao se recompor.
Era uma menina loira de olhos azuis que usava uma camisola longa de seda dourada. Seu cabelo estava estranhamente arrumado para essa hora da madrugada, e ela usava saltos bem altos. Reconheci-a como sendo a garota que saíra com o batom borrado da pequena audiência com o príncipe na noite passada. Acho que seu nome era Charlotte.
— Desculpe, eu não te vi — admiti, levantando-me. Estendi-lhe um braço, mas ela recusou com um gesto de indiferença.
— Tanto faz. Da próxima vez, preste atenção no seu caminho e pare de delirar por aí! — gritou.
Eu me espantei. Mas que garota mais rude!
— E por acaso você sabe o que é que eu estava fazendo? — rebati, me defendendo.
— Escute aqui, garota — começou, despejando grosseria gratuitamente. Ergui uma sobrancelha. — Eu não me importo com o que estava fazendo, você me derrubou no chão!
Eu contive uma risada e ela me olhou com horror, como se fosse alguma rainha e eu tivesse feito algo muito grave para ofendê-la. Tentei voltar a andar e ignorá-la, mas Charlotte segurou meu braço e aproximou nossos rostos, dizendo por entre os dentes:
— Você sabe quem eu sou, garota? Meu pai é Dakota Lewis, o homem mais rico desse reino, então é melhor que você tome muito cuidado com o jeito que fala comigo. Não quero vê-la perambulando por aí novamente, me ouviu?
Eu estreitei os olhos e soltei-me de seu aperto. Lewis era um sobrenome familiar. Pelo que me lembrava, Dakota Lewis era um antigo cliente de meu pai que havia arruinado sua carreira antes de eu sequer ter sido adotada por ele. Acho que não faria mal descontar em sua filha, certo?
Encarei seu cabelo e alguns fios loiros começaram a transformar-se em galhos cheios de folhas, fazendo parecer que ela tinha esfregado a cabeça em uma árvore. Abafei o riso e voltei-me novamente para ela.
— Eu não me importo com o seu dinheiro, senhorita Lewis. E você não é minha mãe para me dar ordens, e muito menos a rainha. Agora, se me der licença, eu tenho mais o que fazer — falei, e me virei. — Ah, e, se eu fosse você, me olharia no espelho antes de aparecer em público.
Dei alguns passos e já estava do outro lado do corredor quando ouvi seu grito estridente atravessar o castelo. Voltei para meu quarto rapidamente para despistá-la e fechei a porta calmamente quando entrei no cômodo, com medo de provocar algum barulho que denunciasse minha localização e despertasse em Charlotte uma súbita vontade de se vingar.
Depois do meu incidente com Charlotte, eu fiquei a manhã toda no quarto. Íris, que passara pelo corredor alguns minutos depois do acontecido, se assustara com a garota cheia de galhos na cabeça e resolvera ajudar. Aparentemente, eles haviam se enroscado em seu cabelo, mas não era nada impossível de resolver, e não fora necessário cortar ou fazer coisas absurdas. Quando Íris me disse aquilo, eu soltei uma gargalhada alta. Todo aquele escândalo por nada. Seria possível que um pedacinho de planta assustava tanto assim uma pessoa?
Jonathan me conduzia pelo castelo, sempre segurando minha mão. Ele havia se desculpado em nome da condessa, e depois o silêncio entre nós pesara, aumentando minha tensão. Contudo, ele sorria, aparentando bom humor, e vez ou outra me olhava, como que esperando por algo. O príncipe andava por um caminho que eu desconhecia e do qual provavelmente jamais me recordaria, e eu estava começando a ficar impaciente quando ele parou no meio de um corredor e virou-se para me encarar. O sorriso usual de seu rosto tornava-se falso aos meus olhos. —
Um vento frio e cortante nos atingia fortemente, fazendo o cabelo dourado de John voar para seu rosto. Eu ainda estava em seu colo, e ele parecia procurar um lugar no chão para me deitar. Fechei os olhos quando percebi o que tudo aquilo significava. Era esse lugar que havia despertado minhas memórias quando cheguei ao castelo. Era a esse lugar que o príncipe Matthew havia se referido como perigoso quando dissera que eu precisava lembrar-me do meu passado. Apesar de ter tido aqueles flashes de memórias, eu ainda não me recordava do que havia acontecido — pelo menos não completamente e com detalhes —, mas não estava certa de que queria mesmo saber. Meu sangue gelou quando ouvi galhos se quebrarem. Eu olhei para Jonathan, mas ele estava ocupado procurando a fonte do som. A floresta era cheia de animais selvagens e perigosos, e muitos deles saíam para caçar à noite. E, pior que isso: havia bárbaros que aproveitavam a falta de segurança do castelo para esconderem-se entre as árvores e tentarem saquear o lugar. Eu não duvidaria se um homem surgisse dos arbustos com uma espada na mão e tentasse nos matar, porque ele certamente reconheceria Jonathan como o príncipe herdeiro. O pior de tudo era que, se algo acontecesse conosco, a culpa seria toda minha.Capítulo 12
O ar da sala pareceu ficar enquanto o rei me encarava por longos segundos, parecendo fazer um imenso esforço para controlar a raiva. Eu tentei manter a compostura e não fraquejar, embora fosse imensamente impossível. Quando ele finalmente desviou os olhos dos meus, foi para fixar em um ponto abaixo de meu pescoço. Eu suspirei levemente, aliviada, mas depois percebi que não havia me livrado da situação. Apenas entrado em outra ainda pior.Os olhos dourados do rei lentamente cresceram até ficarem de um tamanho humanamente impossível, preenchidos d
Cinco dias se passaram e, durante todos eles, eu não parei de me fazer perguntas um único segundo. Como Matthew sabia de tudo o que havia me contado? Quem apagou minhas memórias? Por que o rei me chamara de bruxa, e como ele e meu pai se encaixavam em tudo isso? E, o mais importante, quem matou meus pais biológicos?Obviamente, quando perguntei essas coisas para Matthew, ele não respondeu. A nenhuma delas. "
Jonathan e eu não conversamos sobre o que houve na torre, mas ambos sabíamos que algo mudou lá. Ele ainda estava proibido de me ver, porém isso não impediu que continuasse me fazendo visitas e me levando para conhecer o imenso castelo. Em segredo, é claro. Pouco a pouco, voltamos a nos falar e o príncipe parecia mais aberto e feliz do que já o tinha visto. Acho que amigos fazem isso com você. Durante alguns dias, tudo pareceu voltar a como era quando cheguei. Ou quase tudo.
Tudo em meu corpo doía. Da cabeça aos pés, cada osso, cada músculo e cada nervo pareciam estar em fogo, e a dor lancinante me deixava paralisada. Tive forças para abrir os olhos e piscar algumas vezes, ajustando minha visão aos poucos. Encarei algo vermelho à minha frente e demorei alguns segundos para perceber que era a parte da cortina da minha cama de dossel que escondia o teto. Eu estava em meu quarto. Como havia chegado ali? Ou será que nunca havia saído? Tentei mexer a cabeça, mas só o que consegui fazer foi movê-la para o lado alguns cent