— Bom dia, senhorita. O senhor Fairway está? — o homem para quem abri a porta perguntou, com um sorriso gentil. Seus olhos examinaram a casa, e pousaram na figura chocada de meu pai, que estava em pé no meio da cozinha.
— Do que se trata? — perguntei, posicionando meu corpo em seu campo de visão.
O guarda, que vestia uma armadura de ferro reluzente e não parecia ter mais do que a minha idade, voltou-se para mim. Devido à sua altura, que aparentava ser o dobro da minha, o homem teve que abaixar a cabeça ao me encarar, fazendo com que mechas de seu cabelo loiro caíssem em seus olhos.
— Temos assuntos do reino a tratar, senhorita — explicou, afastando com a mão o cabelo do rosto. Dirigiu-me um sorriso educado de canto de boca ao falar novamente. — Posso entrar, ou teremos que conversar aqui fora?
— Mas é claro, vossa al... — meu pai começou, parecendo sair de uma espécie de transe ou choque, que começou ao botar os olhos no guarda. De algum jeito, eles pareciam se conhecer. Estranho...
— Por favor, me chame de oficial Jonathan — o rapaz interrompeu Luke rapidamente ao apresentar-se, passando por mim e entrando na casa. Se eles se conheciam, esse oficial claramente não queria deixar transparecer. Franzi o cenho. Ele parou na frente de meu pai e dirigiu seu olhar para mim. Antes que pudesse perguntar algo sobre isso, o guarda começou a falar.
— Creio que essa seja Catherine Fairway, certo?
— Sim, sou eu — respondi, erguendo o queixo e dando um passo a frente. — Posso saber o que o senhor veio fazer em nossa casa, assim tão cedo?
— Estou aqui para convidá-la a participar da Competição Real, senhorita — entoou, dando um ar de grandiosidade nas últimas palavras, claramente esperando que eu ficasse feliz ou ao menos demonstrasse interesse. Mas, o que obteve foi exatamente o oposto.
— Desculpe-me, senhor, mas podemos recusar a oferta? Não estamos interessados, no momento.
O homem piscou, seu sorriso sumindo. Ele parecia surpreso, muito surpreso. E confuso. Mas, para minha tristeza, isso durou pouco, pois meu pai se prontificou a corrigir a situação. Clareando a garganta e lançando-me um olhar de repreensão, disse:
— O que minha filha está tentando dizer é que... — ele pensou por um segundo antes de falar, procurando as palavras certas. — Seu trabalho é de grande ajuda na fazenda, e, se ela se ausentar, sobrarei apenas eu para cuidar desses vinhedos tão grandes. Com a crise que percorre o país, decorrente dos ataques bárbaros, não sobreviveria uma semana sem metade de minha mão de obra nas plantações!
O tom que Luke havia usado para explicar nossa situação foi ligeiramente dramático, mas não deixava de ser verdade. Quando ele me adotou e descobriu sobre meus poderes, decidiu que seria perigoso demais continuar com os funcionários que o ajudavam na fazenda, pois haveria uma grande chance de descobrirem sobre mim e acabarem agindo por impulso devido ao medo. Ninguém sabe do que as pessoas são capazes quando agem controladas por seu instinto protetor, mas duvido que seja algo bom para mim.
Com isso, durante anos, fomos apenas eu e ele a administrar as plantações. Todos ainda se perguntam como é que papai não faliu, depois das demissões. A resposta era simples para mim, mas ninguém sequer desconfiava — e nem podiam. Portanto, se eu fosse embora, mesmo que apenas por alguns meses, eu estava certa de que a fazenda passaria por muitas dificuldades... Isso, se conseguisse sobreviver, como Luke dissera.
O jovem guarda ficou um tempo refletindo, e pareceu acreditar. Era verdade, afinal. O desapontamento era visível em todo seu rosto, e ele me olhou com tristeza. Parecia verdadeiramente determinado a cumprir as ordens do príncipe de achar as garotas perfeitas para a competição. Segurei uma risada com a ideia: não era nem de longe uma delas, e ver que alguém pensava o contrário era cômico. Porém, ao notar aquele olhar profundamente frustrado, não pude deixar de sentir pena. Ele estava apenas fazendo seu trabalho, afinal, e não era sua culpa se eu não gostava da ideia de ser vendida a um príncipe para ser escolhida como escolhem carne no açougue.
— Escute, oficial... Realmente sentimos muito, não queríamos atrapalhar seus... planos reais — tentei amenizar a situação, me aproximando dele com um sorriso gentil. — Apenas não é a melhor época para nós.
— Bom, então eu acho que... — o oficial começou a dizer, mas se interrompeu ao olhar para a janela, onde começava a plantação de uvas. Quando voltou a falar, sua voz saiu um murmúrio baixo que quase não pude ouvir. — Não é a melhor época, hum? Não é o que me parece... Como vocês dois conseguem manter uma fazenda deste tamanho, tão bem conservada e com muitos frutos?
— É exatamente o que estamos tentando dizer ao senhor. Mal conseguimos manter isso aqui com nós dois, imagine se tiver apenas um! — meu pai dramatizou... novamente. Ele parecia estar levando o que falava a sério, agora que percebeu que era realmente verdade.
— Eu tenho uma solução — o guarda declarou, virando-se para nós com um sorriso e deixando de lado os vinhedos.
Papai e eu nos entreolhamos. Ah, não...
— E qual seria ela? — Luke perguntou, já que eu me mostrei bastante interessada.
— Eu posso pedir ao rei para enviar trabalhadores extras para a fazenda do senhor, assim a senhorita Catherine poderá deixar a casa tranquilamente.
— Absolutamente...
— Sim! — bradou Luke antes que eu pudesse recusar. Ele queria que eu fosse àquela competição, afinal.
Lancei um olhar flamejante ao meu pai.
— Não! Eu sinto muito, oficial Jonathan, mesmo, mas as plantas são algo delicado...
— Eu entendo perfeitamente, e é por isso que mandarei enviar vinte dos nossos melhores fazendeiros. Isso deve bastar, certo? — o guarda Jonathan perguntou, franzindo o cenho. Claramente, não tinha noção alguma das dificuldades que cuidar de uma fazenda trazia.
Mas, meu pai tinha, e, ao ouvir a oferta, seus olhos arregalaram em espanto e empolgação. Claramente era uma proposta tentadora. Porém, quando dirigiu seu olhar para mim, um pouco de seu entusiasmo desapareceu, deixando apenas seu sorriso mais que satisfeito.
— Isso seria maravilhoso, oficial Jonathan! Mas, se nos perdoa, ainda temos que discutir sobre isso. Sabe como é... Não gostamos de tomar decisões precipitadas.
— Eu entendo perfeitamente — o guarda disse, devolvendo o sorriso de meu pai com igual satisfação e euforia. — Espero que aceitem a proposta, o príncipe realmente gostaria de tê-la em seu castelo, senhorita Catherine. É uma jovem muito encantadora.
As palavras gentis de Jonathan me fizeram corar, e o sorriso que me dirigiu fez com que suas íris douradas brilhassem. Desviei o olhar para o chão, agradecendo com um murmuro. Ele diz isso para todas as garotas?, pensei comigo mesma, sarcasticamente.
— Bom, eu devo ir. Está na hora de vocês começarem seu trabalho e eu preciso convidar muitas outras jovens — o oficial voltou a falar, dessa vez dirigindo seu olhar a Luke. — Estarei hospedado em uma pensão em Ienov, amanhã de manhã passarei por aqui para saber da resposta de vocês. Se aceitarem, senhorita, não se preocupe em levar roupas e pertences para a viagem. Providenciaremos tudo no castelo.
— Obrigada, oficial Jonathan — Luke agradeceu quando eu não disse nada. Não estava gostando dessa história... Nem um pouco. — Tenha uma boa tarde.
Quando o guarda foi embora e meu pai bateu a porta, finalmente pude falar.
— Nós não podemos aceitar. Você está louco? E se as coisas se complicarem por aqui? Vinte pessoas são demais, papai, muito mais do que o senhor está acostumado. E se alguém perguntar por que demitiu seus antigos funcionários? E se quiserem ficar por aqui até depois do meu retorno? E se alguém fizer algo errado e a safra toda for perdida?! — eu bombardeei Luke com perguntas, andando de um lado para o outro.
— Catherine, se acalme, pelo amor de Deus. Vinte pessoas é um número perfeito, e eu tenho certeza que tudo dará certo. Filha... você precisa parar de se preocupar comigo e começar a viver a sua vida.
Eu parei de andar e o encarei, franzindo o cenho.
— Eu estou vivendo a minha vida! — falei, exasperada.
— Não, meu amor. Você não está. Você se preocupa demais com essa fazenda. Você é jovem e vai ter muito tempo para se preocupar em trabalhar. Mas, agora, precisa aproveitar enquanto pode!
— Eu só tento ajudar você, papai. Nós precisamos sobreviver. Eu o privei da possibilidade de contratar pessoas aqui por conta da minha magia. É o mínimo que posso fazer por esse lugar.
— Eu sei, Cath, eu sei. Mas você tem uma bela oportunidade de conhecer o mundo lá fora. Não quer desfrutar disso? Conhecer pessoas novas, experimentar comidas, usar roupas finas... Eu me lembro de quando seu sonho era ser uma princesa... — Luke disse, nostalgicamente, me abraçando.
— Isso foi antes de eu saber o real motivo dessa competição.
— O real motivo é que o reino não é seguro o suficiente para que um príncipe viva entre nós, num vilarejo comum, e você sabe disso. A realeza também não gosta dessa competição, dá muitos gastos alimentar tantas pessoas. Vocês, jovens, comem demais. E os vestidos, então?!
Eu ri, balançando a cabeça. Meu pai adorava fazer piadas fora de hora. Isso era uma das coisas que eu mais gostava nele: ele nunca levava a vida a sério, estava sempre fazendo alguma brincadeira. Seu bom humor sempre contagiava quem quer que estivesse por perto, e era impossível manter raiva ou rancor dele por muito tempo. Raramente brigávamos e, quando o fazíamos, nenhum dos dois conseguia manter distância por muito tempo. Nossa relação era especial, e tudo o que tínhamos era um ao outro. Por isso, era tão difícil querer sair de casa para me aventurar no castelo, enquanto Luke permanecia em casa trabalhando e dando o melhor de si para manter a fazenda em pé... sozinho.
— Se eu concordar — comecei, meu sorriso desaparecendo —, o que acontece se algo der errado com meus poderes? E se eu vencer a competição? Nós dois sabemos que a última vez que tentei me envolver com alguém e compartilhar minha magia não deu muito certo...
Dois anos atrás, eu tive meu primeiro namorado, Jordan. Ele era bonito: alto, moreno, olhos incrivelmente azuis. Obviamente foi meu primeiro e único, pois foi um total desastre: fazia cinco meses que estávamos juntos e ele decidiu — sozinho e sem meu consentimento — me fazer uma visita na fazenda. Já que sempre nos encontrávamos em Ienov Village, a vila mais próxima de minha casa, ele nunca havia me visitado antes e, portanto, não sabia o que iria encontrar.
Acidentalmente, ao entrar de fininho na propriedade, Jordan me viu usando meus poderes para criar uma nuvem de chuva em cima da plantação, e, quando eu percebi o que havia acontecido, era tarde demais. Ele me chamara de bruxa e saíra correndo, com medo que eu o matasse. Apesar de gostar dele, eu superei rapidamente, e percebi que deveria tomar muito cuidado ao me envolver com outra pessoa. Papai e eu sabíamos muito bem o quão perigoso poderia ser se eu me expusesse novamente para alguém, mesmo que por acidente.
— Você nem sabe se vai vencer, meu amor. Não sofra por antecipação. Além disso, você pode sempre voltar para casa se achar que for necessário, certo?
— Certo... Mas eu torço para perder na primeira semana.
— Pelo menos você vai ter aproveitado um pouco da comida grátis!
Eu gargalhei, sendo seguida por Luke. Definitivamente, ele era ótimo com piadas. Papai passou um braço por meu ombro e me guiou até a porta, perguntando uma última vez.
— Então estamos decididos?
Eu revirei os olhos, mas não pude deixar de sorrir com sua persistência. Sentiria falta disso.
— Sim. Eu vou para o castelo.
Revirei-me no colchão a noite toda. Não conseguia deixar de pensar no pressentimento ruim que me invadia sempre que me lembrava dessa competição. Bobagem, repreendi a mim mesma mentalmente.
A carruagem andou por alguns minutos e eu não podia deixar de pensar no castelo e no que estava por vir. A competição poderia parecer algo estúpido para mim, mas sabia que era importante para o príncipe e para a família real; afinal, era a futura rainha que estava sendo escolhida, além de ser a mulher que traria herdeiros para o trono. Era muito relevante, apesar de errôneo. Eu suspirei, passando a mão na testa e tentando aceitar o fato de que agora eu era uma poss
Nós andamos por pelo menos mais dez minutos por um pasto verde vazio, quando finalmente avistei o castelo. Era uma construção imensa, com as paredes feitas de tijolo de pedra, empilhados um por um, o que causava certo desnível na textura. Havia duas torres grandes e quatro torres menores, que guardavam, no topo de cada uma, um arqueiro vigilante e a bandeira do país, com as cores do reino em destaque: branco, azul e prata. Afundei na banheira para enxaguar o rosto. A água estava morna e Íris havia colocado espuma e pétalas de rosa em meu banho. Eu fiquei impressionada, mas percebi que provavelmente era algo comum para quem morava em um castelo. Estava com a leve impressão de que sentiria falta das coisas simples que tinha em casa. A vida da realeza poderia ser maravilhosa, mas certamente não era perfeita. Pelo menos, não para mim. Tantas coisas com as quais lidar... O reino, o povo, as guerras e invasões, os impostos, as responsabilidades... Era preciso ser muito cauteloso e minucioso. Uma decisão tomada errada, quanto ao que fazer num campo de batalha ou quanto a tentar satisfazer as necessidades de seu povo, poderia colocar tudo a perder. Saí de meus devaneios quando percebi que ainda estava com a trança de hoje de manhã. A água não havia desfeito o penteado. Passei os dedos no cabelo e, conforme eu desemaranhava os fios, eles ondulavam-se. Lavei-o com um shampoo cheiroso que eu achei ao lado da banheCapítulo 6
Enquanto comia lentamente um delicioso pudim, eu tentava controlar minha raiva do príncipe por ter me enganado e questionava a mim mesma por que ele havia feito isso. Ele convencera Íris a mentir para mim! O que havia de errado com esse sujeito? As perguntas rondavam minha mente, e eu imaginei se os guardas me prenderiam caso eu gritasse com o único herdeiro do trono. Deduzi que sim, então tentei achar um jeito de controlar meus sentimentos. Apesar de não ser nada demais, não gostava de ser enganada. Acho que ninguém gostaria, na verdade, até porque aquilo não fazi
O homem entrou às pressas no quarto, andando de um lado para o outro. Ele aparentava ter acordado há pouco, assim como eu, pois suas roupas estavam amassadas e seu cabelo negro estava bagunçado. Sua pele levemente bronzeada e seus olhos verdes meio amarelados faziam dele uma pessoa atraente, e eu levei algum tempo para reconhecê-lo, devido ao sono. Era o filho da condessa. Eu não tinha ideia de qual era seu nome, tudo o que sabia sobre ele era que seria o conde do reino em alguns anos, mas, por agora, era chamado de príncipe. O que é que ele estava fazendo em meu quarto?
Depois do meu incidente com Charlotte, eu fiquei a manhã toda no quarto. Íris, que passara pelo corredor alguns minutos depois do acontecido, se assustara com a garota cheia de galhos na cabeça e resolvera ajudar. Aparentemente, eles haviam se enroscado em seu cabelo, mas não era nada impossível de resolver, e não fora necessário cortar ou fazer coisas absurdas. Quando Íris me disse aquilo, eu soltei uma gargalhada alta. Todo aquele escândalo por nada. Seria possível que um pedacinho de planta assustava tanto assim uma pessoa?
Jonathan me conduzia pelo castelo, sempre segurando minha mão. Ele havia se desculpado em nome da condessa, e depois o silêncio entre nós pesara, aumentando minha tensão. Contudo, ele sorria, aparentando bom humor, e vez ou outra me olhava, como que esperando por algo. O príncipe andava por um caminho que eu desconhecia e do qual provavelmente jamais me recordaria, e eu estava começando a ficar impaciente quando ele parou no meio de um corredor e virou-se para me encarar. O sorriso usual de seu rosto tornava-se falso aos meus olhos. —