“O tempo é a chave para encontrar coisas perdidas”
Provérbio Chinês
Nada nesse mundo começa por acaso. E mesmo sem saber disso, Dru Ruver ansiava por um mundo que não exigisse tantas explicações de uma garota de dezessete anos.
Como leitora voraz, aproveitava o tempo livre consumindo livros de novos autores de Literatura Fantástica e Ficção Científica, ora se imaginando lutando contra monstros e criaturas fantásticas, ora salvando o mundo de uma iminente destruição.
Como qualquer jovem de sua idade, ela sonhava em viver uma grande aventura e mal podia imaginar que isso estava prestes a acontecer.
O verão tinha se iniciado há duas semanas e Dru Ruver pôde finalmente rumar para merecidas férias, sempre acompanhada de sua fiel amiguinha Dolly, a poodle mais graciosa que se tem notícia.
Nos próximos dois meses, ela ficaria hospedada na casa de veraneio de seus pais no Litoral Norte, em uma pequena e amável cidade do Atlântico Sul, há exatos duzentos e oitenta quilômetros da capital.
A casa de verão se destacava pela altitude da face norte na mais bela parte da costa, rodeada pela Mata Atlântica e há poucos graus do Trópico de Capricórnio.
Fincada entre os rochedos e a trinta metros do nível do mar, a construção de estilo rústico pintada na cor flamingo, continha uma harmonia que realçava graciosamente a ampla cozinha arejada por claraboias; além da aconchegante sala de estar adornada por portas basculantes que conduziam ao terraço à beira-mar.
Na noite anterior Dru havia deixado a capital e todas as responsabilidades do ano escolar de lado, imaginando que aquele verão seria tão bom, ou quem sabe até bem melhor do que os anteriores.
No primeiro dia oficial de suas férias, ela dormiu até tarde, tomou o café da manhã ao meio-dia e aproveitou para dar um longo passeio com Dolly até a ponta da praia.
Era um dia perfeito de verão, mas com a temperatura alta e o sol flamejante Dru ao voltar para casa, procurou abrigo na sombra da varanda onde podia contemplar toda a face leste da costa, observando as oscilações da maré.
Foi quando por latidos insistentes da poodle, Dru Ruver avistou um homem zagueando pela praia que parecia estar vindo em sua direção; a cada minuto que passava, ele ficava mais próximo do atalho e das escadas esculpidas em baixo relevo, que conduziam à entrada lateral das dependências da casa.
Aquele homem estava cada vez mais próximo e por razões que nem mesmo Dru podia explicar — desde o momento que o viu — ela sentiu um profundo abatimento que lhe desesperançou a alma. Será que aquele homem era um mau presságio?
Foi quando aquele homem parou no último degrau da escada e se anunciou, batendo as palmas da mão em um compasso irregular:
− Bom dia, alguém em casa? – como se ele, educadamente não a tivesse visto no terraço.
− Sim, o que deseja? - ela interpelou friamente.
− Eu...? Eu desejo revê-la!
− Rever-me? Como pode desejar rever alguém que não conhece?
− Mas eu a conheço!
− Me conhece?
− Sim eu a conheço! Talvez... Bem... Talvez, você não me reconheça, após tantos anos! No passado, eu fui vizinho dos seus pais, lá na Baía Norte. Meu nome é Hansiorki, filho da senhora Berger, lembra-se?
Neste momento Dru ficou imóvel com o coração apertado por lembranças amargas e perturbadoras, mas ele fingiu não perceber e continuou:
− Talvez ainda se lembre de como minha mãe apreciava a sua companhia, “que doce criança”, ela sempre dizia, encantada com sua educação, respeito pelos mais velhos e zelo pelos animais. Mas hoje é tolice esperar algo tão simples e raro entre as novas gerações! Desculpe-me por tê-la incomodado.
Ele se virou e começou a descer as escadas esculpidas em baixo-relevo, mas Dru gritou:
- Eu sinto muito, Sr. Hansiorki. O senhor não está me incomodando, é que eu não fazia ideia de quem era! Por favor, entre! – disse Dru. Mas ela não se sentia à vontade e muito menos feliz em revê-lo.
Enquanto Dolly latia sem trégua para o intruso, Hansiorki subiu agilmente as escadas passando pelo portão lateral, alcançando com rapidez o terraço à beira-mar.
Na mesma hora, o passado veio à tona e Dru pôde lembrar-se da fisionomia daquele homem: alto, meia-idade, pele muita clara, com um olhar penetrante adornado por sobrancelhas simetricamente esculpidas, o que dava ao seu rosto uma expressão ainda mais fria e maligna.
O Sr. Hansiorki - ou melhor, Hans, o estrangeiro - como ele era conhecido - era o tipo de sujeito que não se esquece com facilidade. Na Baía Norte, Hans e sua mãe, Sra. Berger eram conhecidos como vizinhos de hábitos excêntricos: eles possuíam uma coleção de estátuas de bronze, placas de metal espalhadas por todo o jardim, tapetes de lã de carneiro adornando o hall, além de cortinas de plástico cobrindo todas as janelas. A Família Berger convivia com iguanas e gatos. Além disso, Hans cultivava plantas carnívoras em uma estufa e inúmeras cobras e aranhas.
Então, Hans parou em frente ao portão amarelo de grades altas com palavras bem articuladas ditas em um timbre rouco pouco comum e disse:
- Com licença, posso entrar? Ou devo ficar aqui fora?
- Por favor, entre! – disse Dru sem jeito.
No mesmo instante que Hans cruzou o portão, Dolly parou de latir e amedrontada disparou correndo para dentro da casa; talvez Dru devesse fazer o mesmo, mas, segundo as regras do mundo, ela não podia agir mais como uma criança.
Por Deus, ela não via este homem desde a infância. E respirando fundo, perguntou:
− Como vai o senhor?
− Vou muito bem e fico feliz de reencontrá-la! Afinal, em minha velha terra dizem que “encontram-se almas conhecidas em qualquer vilarejo”.
- Então, o senhor também está de férias aqui na Baía Norte?
- Não estou de férias. Eu moro aqui! E por uma estranha coincidência somos novamente vizinhos! Estou morando há sete meses naquela casa de colunas cinzas e arandelas niqueladas que ficou muito tempo à venda.
− Ah, claro! Eu sei qual é! É a única casa do declive sul e eu não sabia que a casa tinha sido vendida!
− Eu a comprei! Moramos eu, mamãe e alguns gatos, como sempre!
− Ah, que bom! E como está a Senhora Berger?
− Na verdade, ela não está muito bem. A saúde dela anda delicada pela idade avançada! – ele se calou, abaixando a cabeça e desviando o olhar para que suas palavras surtissem efeito - Por isso vim procurá-la!
− Ah, não me diga! Eu sinto muito! Mas porque eu?
− Não se pode esconder para sempre: o inevitável!
Neste momento ela sentiu um calafrio percorrer-lhe a nuca e disse:
- Mas como eu posso ajudá-lo?
− Amanhã bem cedo, partirei para a capital. No momento, mamãe necessita de cuidados especiais e pretendo levá-la para um tratamento especializado. No entanto, terei que deixar os meus gatos sozinhos, o que parte o meu coração! – ele reforçou a afirmação sendo dramático, colocando as mãos sobre o peito e continuou:
- Será que você poderia fazer algo pelo qual estou esperando por toda uma vida?
Dru ficou confusa e atordoada. Tentando desfazer a má impressão, Hans emendou:
- Mas como sou tolo! Eu acho que não me expliquei direito! Será que você poderia ir até a minha casa? Para cuidar dos gatinhos e alimentá-los?
− Mas é claro! É o mínimo que posso fazer pelo senhor e por sua mãe. Mas o senhor não precisa de ajuda para levá-la a capital, ou qualquer outra coisa?
− Não, não... Muito obrigado! A única coisa de que necessito é que vá até a casa... - ele pareceu engasgar as palavras - e que..., quero dizer que cuide deles!
− Lógico! Não se preocupe com nada, eu cuidarei de tudo!
− Tenho certeza disto! Vou lhe deixar uma cópia da chave da casa e uma lista escrita com os horários, nomes e rações e de tudo mais que vier a precisar. Muito obrigado, senhorita Ruver. Eu sabia! Eu sempre soube que um dia eu poderia contar com a sua ajuda!
− Imagina, não precisa me agradecer! Mas o senhor pretende demorar muito para voltar?
− Eu não sei ainda! Eu não sei durante quanto tempo vou precisar me ausentar desta vez!
− Tudo bem, faça uma boa viagem e boa sorte. Até a volta!
Ele nada respondeu. Esta foi a primeira e única conversa entre Dru Ruver e Hans, o estrangeiro. Mesmo após a sua partida, ela permaneceu desconcertada e com uma sensação estranha que lhe embrulhava o estômago. Ela estava chateada consigo mesma, porque ela não tinha tido a esperteza suficiente para perguntar como Hans, conseguiu encontrá-la e reconhecê-la após tantos anos.
Já era final da tarde, quando Dru decidiu fazer um lanche e checar com a cozinheira Sra. Lile algumas informações: − Sra. Lile, conhece aquele homem? O nosso vizinho – ela apontou involuntariamente para o terraço - com quem eu estava conversando? − Vizinho, ele? Ah... Srta. Ruver, eu nunca vi este homem antes por aqui! − Não viu? Tem certeza? − Não, não vi, tenho certeza! E olha que conheço bem nossa vizinhança. Sei quem trabalha pra quem. O nome dos patrões, a que horas eles acordam e dormem, quem trabalha, quem não trabalha e onde trabalham! Os filhos, os filhos dos filhos, quem é da capital, quem mora mesmo aqui e quem fica só por uns dias... − Eu entendo que a senhora conhece bem todo mundo por aqui! Mas aquela casa cinza, a única na encosta do declive sul que estava à venda, quem mora lá? A Sra. Lile pensou seriamente, olhou para cima e fez três movimentos com os olhos da esquerda para direita, conferindo em sua lista mental
Após três semanas de intenso trabalho, o grupo de especialistas formado pelo Dr. Filipe Meine finalmente iria se reunir para discutir as primeiras informações decifradas pela força-tarefa. Aproveitando o feriado prolongado de Carnaval, o encontro se daria na casa de Dru Ruver, para que os especialistas pudessem fazer uma incursão na Encosta de Capricórnio, na única casa de arandelas niqueladas, com a intenção de conhecer o lugar exato onde ela havia encontrado o livro. Todos os detalhes foram organizados por Meine: o grupo partiria de sua casa rumo ao litoral por volta das dez horas da noite. Logo, a campainha soou e a primeira especialista a chegar foi a Dra. Vitina Almén, acompanhada de sua chow-chow Wendy. - Olá, será que não vou mesmo incomodar trazendo minha cachorra? – perguntou a tradutora antes de atravessar a porta. A Dra. Almén era professora, tradutora de Línguas Arcaicas e uma das mais conceituadas especialistas em Mitologia
Todos prontamente concordaram e a jovem pousou as mãos sobre a fechadura: duas voltas e meia para direita e a porta se abriu sem esforço. Por um momento, ela prendeu a respiração, retirando a chave da porta e guardando-a no bolso. Dando um passo firme cruzou o escalão de entrada, seguida de perto pelo Dr.Meine e por Roddie. Atrás deles vieram o Dr. Kupis e Ada de mãos dadas. A Dra. Vitina e o Sr. Felpes logo atrás, e em seguida o Dr. Takei e a Dra. Lítica, que foi a última a cruzar o escalão de entrada da desolada construção. A sala estava igualmente fria e limpa como há dois meses, e Dru não notava nada fora do comum: − Foi aqui que eu achei o livro! – ela apontou para o chão branco, após caminhar cinquenta e cinco passos – Tinha um pequeno buraco aqui neste ponto! Olhem! Foi aqui! – Dru agachou recriando imaginariamente os fatos – Eu acionei um pequeno botão prateado que estava aqui! Aí uma alavanca abriu um quadrado e eu apanhei o livro! − Tem certeza de q
Na manhã seguinte o grupo ainda dormia quando um grito da Dra. Vitina os acordou em sobressalto: − Ele está morto! Meu Deus, ele está morto! Todos acudiram a doutora, tentando entender suas palavras de desespero e desamparo. Ela gritava, chorava e soluçava. Ada Kupis a abraçou ternamente tentando de alguma forma consolá-la. O Dr. Meine e o Dr. Kupis acudiram a vítima, realizando massagem cardíaca e respiração boca-a-boca, na tentativa de retomar o pulso; prestando os primeiros socorros. Mas de nada adiantou: o Dr. Takei estava morto. A hipotermia tirou-lhe a vida durante a noite passada. O Dr. Meine declarou com pesar: − Ele está morto! Ele não resistiu ao frio, o coração não aguentou tanto esforço! – ele suspirou um profundo lamento e prosseguiu – Há mais de cinco anos o Dr. Takei vinha sofrendo de uma disfunção cardíaca e fazia tratamento para controlar a doença! É lamentável! Realmente lamentável! − Ele tinha família, tio? − Sim, cl
Levando as duas lanternas, os dois jovens rastejaram pela entrada. Roddie tomou a iniciativa e Dru, sem perder tempo, foi logo em seguida. Desde o primeiro degrau deu para notar como a escada e a escotilha eram colossais. Os dois jovens desciam simultaneamente, lado a lado, tateando, degrau a degrau, iluminando com a lanterna os próprios passos. Os degraus eram largos e bem espaçados. Dru suava frio e tinha a boca seca tentando imaginar o que os esperava lá embaixo. O trajeto era lento e só conseguiam ver os degraus e as paredes também metálicas daquele cilindro, que nada revelavam. − Está tudo bem aí? – bradou Meine. − Tudo bem, tio! Em silêncio continuaram com prudência a descida que parecia interminável: vinte degraus, trinta degraus, quarenta degraus... - Veja a moeda! – Dru constatou aliviada quando sua lanterna capturou o reflexo. - Isso! É ela mesma! E assim os jovens apressaram a descida, tocando no fundo
Reduzido o grupo, reduzida a preocupação. Afinal, é certo que todas as situações oferecem prós e contras. Tomar decisões sempre implica abrir mão de uma, em favor de outra possibilidade, e no caso do grupo de Dru Ruver não era diferente. Logo, reuniram suprimentos de água e mais castanhas, porque não sabiam ao certo se encontrariam mais alimento ou água pela frente. Só nos bolsos, Dru carregava praticamente a mesma quantidade de castanhas do resto do grupo e, notando que eles a olhavam surpresos, ela se justificou: − Uma garota prevenida vale por duas! Partiram por volta do meio-dia e tudo em volta da trilha parecia familiar: plantas, árvores, rochas, o céu azul, exceto, é claro, pelas dimensões avantajadas. Caminharam por toda tarde, fazendo pausas regulares para descansar. Dentro de pouco tempo, o grupo se deparou com um achado inestimável: - o que sustentou o ânimo até o anoitecer: batatas doces. Sim, batatas doces e gigantes, cada uma pesava
O Dr. Oscar Kupis, Ada Kupis, a Dra. Lítica e o Sr. Felpes partiram logo após o desjejum, deixando para trás a floresta tropical e o grupo de Dru Ruver. Preveniram-se, carregando rações extras de água, castanhas, a única lanterna que ainda funcionava, um maço de cigarros e dois isqueiros. Naquela manhã, partiam esperançosos, sonhando que em breve pudessem estar no confortável e seguro lar de onde vinham. Para aqueles quatro viajantes, esta esperança era o único elo no qual podiam se agarrar, evitando assim o inconformado desespero. O Sr. Felpes se tornou, mesmo a contragosto, o líder do grupo. − Vamos fazer o caminho inverso. – Felpes declarou – Nós vamos voltar exatamente por onde viemos. Chegando no deserto, vamos para o sul! − Certo, Felpes, isto é muito lógico e racional – concordou a Sra. Kupis – No entanto, o que mais me apavora é que o que vamos fazer, quando chegarmos ao mesmo ponto de partida? − Ada, meu bem, – falou suavemente o Dr. Ku
Já era o segundo dia consecutivo desde a descoberta da escotilha. Apesar da distância percorrida, nada parecia alterar a paisagem daquela floresta tropical, eram apenas árvores e mais árvores, Vitina até brincou dizendo que jamais havia visto, nem mesmo pela televisão, tantas árvores juntas. Contudo, o grupo se considerava com sorte, não sofriam nem com a escassez de alimento e muito menos de água, sem contar que a última noite tinha sido excessivamente tranquila: sem chuva, sem sentinelas, sem nenhum fato inusitado. O dia passou lentamente com a caminhada exaustiva, a noite já caia quando o Dr. Meine sugeriu: − Que tal pararmos? Vamos preparar o jantar e dormir por aqui. Foi um dia longo e estou muito cansado! Todos concordaram, escolhendo uma fresta privilegiada entre duas árvores enormes para passarem a noite. Vitina preparou a fogueira, Roddie a comida e Dru Ruver, por medida de precaução, foi explorar alguns metros ao redor do improvisado acampamento para verifi