Após receber as instruções sobre a rotina da casa, Lily acompanhou Sulivan em suas tarefas, observando com atenção. No decorrer da semana, mais adaptada, passou a cuidar das coisas de Collin, mas procurando se manter resignada em relação a ele. Não queria forçar uma aproximação prematura. Desde que Lily chegou ele raramente saía do quarto, seu dia a dia se resumia as necessidades básicas, como única distração passava horas escutando os canais de esportes, documentários e notícias na TV a cabo, mas sem demonstrar qualquer sinal de ânimo ou interesse. Era apenas uma tentativa de manter a mente ocupada.
Lily esperava que teria dificuldades para obter a aceitação dele. Porém, foi pior do que havia presumido. O rapaz parecia ter encontrado uma nova ocupação, a de tornar o contato entre eles o mais odioso possível. Era agressivo, escandaloso e quando acuado, a humilhava. Ela se esforçava para compreendê-lo, e tentava manter o autocontrole. Pelo bem do seu emprego, não podia sair falando a primeira coisa que vinha na cabeça. Ao final do expediente ia para casa destruída, mas depois de uma noite de sono, recuperava as forças e retornava já sabendo o que a esperaria.
Quase um mês depois Lily tentava ignorar a frustração por não ter conseguido nenhum progresso, enquanto ele, se revoltava cada vez mais com a capacidade de resistência dela. Mas, não se daria por satisfeito até ver a intrusa fora de sua casa.
— Eu não vou comer isso! Leve de volta.— ele gritou, quando ela trouxe seu almoço, pela segunda vez naquele fim da tarde.
— Mas, o senhor precisa. Não se alimentou o dia inteiro. — insistiu Lily, aproximando-se.
— Eu não vou comer coisa nenhuma que vier pelas suas mãos!
— Pensa que vai fazer sua mãe me demitir com essa chantagem?
Por certo que era o que ele pretendia. Passava o dia recusando tudo que ela levava para ele. Porém, a noite quando ela ia embora, comia como um esfomeado.
— Pelo menos faça por consideração a sua mãe. — Ela pediu com estupefação. — Ela passa horas na cozinha preparando as comidas que você gosta.
— Você não sabe o que é ter limites? Ainda não fui claro? — ele questionou batendo na bandeja que ela segurava. — Quem sabe assim você entende. Como alguém, tão estúpida consegue arranjar um emprego?
Lily observou a comida voar para o outro lado do quarto e espalhar-se até seus pés. Ela mordeu o lábio inferior e o fuzilou com olhar furioso, tentando conter as lágrimas de raiva.
— Chega! Pra mim já deu.
Atento as pisadas dela se distanciando do quarto, ele sentiu-se vitorioso. Ela estava desistindo embora tivesse resistido mais que do que ele pretendia. Estava se aperfeiçoando. Se sua vida não fosse tão trágica, poderia até se divertir com a situação. No entanto, esse sentimento durou pouco.
— Está tudo bem, Lily. Você tem vontade de dar na cabeça dele com o cabo dessa vassoura, mas você não vai fazer isso. — Ela retornou murmurando para si, na verdade, não tanto apenas para si.
— Você não foi embora? — inquiriu sobressaltado.
— Eu fui embora? Claro que não! Fui buscar uma vassoura e pano para limpar a sujeira que você fez. Seu moleque mimado! Você que deveria estar limpando essa bagunça.
Collin soltou um palavrão inaudível.
— Quer saber? Eu não vou ficar aqui insistindo com você, nem ouvindo seus insultos. Você não é criança. Se não quer comer, não coma!
— Enfim, disse algo que se aproveite — Ele zombou.
— É assim que vai ser? Você vai agir como uma criança no maternal?
— Se eu quiser. — ele encheu o peito até tossir.
— Quer guerra? — Lily marchou até a porta do quarto. — Então, veremos quem se rende primeiro. — ela o desafiou. — Já que não precisa mais dos meus serviços, por hoje estou indo embora.
— Já vai tarde. Não faz nada de útil mesmo.
— A senhora Sulivan deve voltar logo. Estarei aqui pela manhã. — Ela já ia saindo do quarto, quando ele ordenou que parasse.
— Minha mãe... não está em casa? — ele gaguejou, esperando que tivesse ouvido mal.
— Esqueci de avisar, que sua mãe saiu hoje para o supermercado. Ah! E ela me ligou dizendo que encontrou uma antiga conhecida, que a convidou para um café.
— Não acredito. Ela não me deixaria com uma estranha em casa. — disse perplexo.
— Parece que as coisas estão mudando. Boa noite! — despediu-se fechando a porta.
— Espere. Não pode ir agora. — Collin não ouviu resposta e foi tomado pelo pânico, questionando para si. Como assim as coisas estavam mudando? Ele odiava mudanças! De que forma seu modo de vida seria afetado por isso?
***
Pela manhã a mais velha estava curiosa, sobre como a moça havia lidado sozinha com seu filho.
— A senhora já deve imaginar. — Lily respondeu com um pequeno sorriso.
— Está sendo um começo difícil, não é? — disse cortando legumes no balcão da cozinha.
— Ele se sente ultrajado pela minha presença e não confia em mim. Além disso, não está acostumado a ser contrariado, já que a senhora sempre fez todas as vontades dele.
Sulivan concordou constrangida e buscou mudar o assunto.
— Não tivemos tempo de conversar ontem, porque eu cheguei em cima do seu horário. Quer saber como foi minha tarde, também?
Mostrando-se interessada, Lily sentou de frente para ela num dos bancos.
— Sim, é claro. Como foi?
— Você tinha razão. Sair um pouco foi um refresco.
— A senhora precisa começar a separar um tempo para si e aproveitá-lo.
— Que atenciosa! - Sulivan sorriu agradecida.
— Imagino que sua amiga tenha ficado surpresa em vê-la, depois de tanto tempo.
Lily olhou ao redor procurando uma faca. Encontrando-a, esticou-se um pouco para pegar. Depois pediu algum legume para ajudar a cortar.
— Ficou. — confirmou Sulivan passando as cenouras para ela — Depois que Collin se acidentou ficou cada vez mais difícil manter contato. Não demorou muito para que deixássemos de conversar até por telefone, porque eu estava sempre muito ocupada, ou sem ânimo.
— E a como a senhora se sentiu ao revê-la?
— Ela tinha muitas novidades, filhos casados e até netos. Mostrou as fotos de um deles, que tem 2 anos. Não posso esconder, que fiquei um pouco frustrada por não ter nada para contar. — confessou com o olhar distante.
— A partir de agora, não faltará oportunidade para que a senhora possa criar coisas para contar.
— Sim, mas não sei se seria certo. Quando cheguei ontem e dei uma olhada no Collin, senti que não é justo com ele, eu ficar saindo assim.
— Injusto é a senhora viver seus anos, enfiada dentro das paredes desta casa. A senhora só fazia supermercado pelo delivery, para não ter que sair. Credo!
— Você é engraçada!
— Estou falando sério. Agora, a senhora tem a mim. Não é errado estar insatisfeita com sua vida. Não há nada vergonhoso em desejar uma mudança de ares. A senhora ainda é jovem, é bonita, e tem todo o direito de sonhar e buscar a felicidade. Isso não significa que ame menos, o seu filho.
Sulivan a encarava admirada por sua sabedoria e se sentiu consternada com suas palavras.
— Obrigada! Isso foi lindo!
A outra sorriu em retribuição.
— O Collin vai te torturar se eu ficar te deixando sozinha com ele.
— Não tenho medo. E será muito mais fácil ele se convencer disso, se a senhora não ficar por perto o tempo todo.
Lily não falava meias verdades e não se importava de ser tão direta. Sulivan precisava de um empurrão e encontrava conforto em suas palavras encorajadoras.
Naquela mesma manhã, Lily preparou o café de Collin e levou para ele no quarto.
— Bom dia! — cumprimentou-o de maneira forçada.
— Que tipo de profissional faz o que você fez?
—Eu apenas fiz o que o senhor queria.
— E o que minha mãe vai dizer quando eu contar?
—Ainda não contou? Estou surpresa! Pode fazer isso agora. Irei até chamá-la, se quiser.
—Você se acha inatingível, não é? Não gosto de seus joguinhos. — Ele interpelou irritado.
Lily depositou a bandeja, em cima do aparador, fazendo os objetos saltarem. Endireitou a postura, caminhou firme até ele e o agarrou pelo colarinho da camisa. Aproximou bastante o rosto do dele de forma que ele sentia o ar quente de seu hálito, chicotear as maçãs do rosto.
— Mas que diabos você está fazendo? — perguntou perturbado, aspirando o aroma doce de seu perfume. De todos os odores do mundo, ela tinha de exalar aquele cheiro.
— Vamos deixar uma coisa bem clara, Senhor Sulivan. Sinto frustrar suas expectativas, mas o senhor não vai me intimidar com estas suas futilidades e birrinhas.
— Está me afrontando? — disse trêmulo.
— Já deve ter percebido que eu não sou como as velhas tolas que já passaram por aqui. Não tenho medo do senhor e não há muito que possa me fazer.
— Me deixe em paz.
Lily assumia que era um método nada ortodoxo, mas ele precisava de uma sacudida. Diante de tanta audácia, Collin sentiu um leve abalo em seu ego. Mas não se permitiria colocar o orgulho de lado.
— Não importa o que o senhor diga, ou o que faça... Não vou desistir! Acho melhor aceitar de uma vez por todas, e começar a andar na linha comigo.
— Nunca! Você só está blefando! — rebateu gargalhando.
— Então pague para ver. — Ela desafiou largando sua camisa e se afastando. — Agora seja um bom rapaz e tome seu café da manhã. — bateu a porta e desceu.
Arfando, com o coração acelerado, Colling permaneceu desatinado. Estava confuso com suas sensações. Sentia raiva, mas havia outro sentimento, desconhecido e indecifrável. Estava cansado, nada parecia ser capaz de desestabilizar o ar de superioridade daquela garota.
Depois desse dia, houveram poucas mudanças. Pelo menos, ele parou de se comportar como um bebê, porém, ficou ainda mais fechado. Após semanas, teve que admitir para si que todo o esforço empregado para afugentar Lily, tinha sido inútil. Ele a julgava dissimulada e não gostava de como se transformava perto dela. Se preparava todos os dias para uma guerra sangrenta e de repente se via desarmado. Por causa dela, não era mais o astro principal da casa.
Notava que a mãe, quanto mais se afeiçoava a ela, mais se distanciava dele e sentia ciúmes. Aquela estranha estava roubando o amor de sua mãe, havia invadido seu espaço, tirado sua privacidade; estava abalando seu modo de vida e deixando seus sentimentos confusos. Ele a odiava por expor assim as suas fraquezas.
Sulivan adorava ter a companhia de Lily. Em pouco tempo, a moça se ofereceu para ajudá-la a recuperar o jardim, e trabalhavam nele duas ou três vezes por semana, enquanto a dona da casa, contava histórias sobre sua família, aventuras de sua juventude e dos momentos preciosos que viveu ao lado do marido. A mais jovem, como uma perfeita ouvinte que era, a escutava com entusiasmo. Algumas vezes estas conversas tomavam um tom de desabafo. Sulivan se emocionava, chorava, e depois, envergonhada, se desculpava por obrigá-la a presenciar estes momentos de fraqueza.— Eu nunca me abri sobre essas coisas com ninguém, você entende? — justificou Sulivan tentando enxugar os olhos marejados com o antebraço — Não quero que o Collin se sinta culpado pela minha tristeza.
Era incompreensível, o sentimento que Sulivan tinha adquirido por uma estranha. Acreditava nela a ponto de lhe confiar o seu bem mais precioso. Admirava, a garota de olhar tenro e sorriso acolhedor, que tinha o dom de compreender as profundezas dos seus ressentimentos, e saber sempre o que dizer para animá-la. Começou a suspeitar que apesar de pouca idade, Lily já deveria ter vivido coisas suficientes que a tornaram tão madura. Às vezes seu olhar era distante e enigmático. Chegava antes do início do expediente, nunca pediu dispensa mais cedo, nunca reclamou de passar do horário, era bastante reservada sobre sua vida pessoal e era raro citar algo sobre a família. Às vezes Sulivan puxava uma conversa com intenção de descobrir mais, quando Lily notava a discreta invasão, dava respostas evasivas e mudava de assunto de forma abrupta.
Como todas as manhãs, desde o acidente, Collin acordou desejando estar morto. Mesmo havendo se passado mais de quatro anos, ainda sentia o terror que era abrir os olhos e continuar no escuro. Permaneceu deitado por um tempo, juntando algum resquício de ânimo para se levantar. Arfou ouvindo as vozes da mãe e de sua cuidadora vindo do andar de baixo, prevendo que logo ela subiria com seu café e o importunaria por mais um dia inteiro. Sem nenhuma motivação, sentou na cama, girou o corpo colocando as pernas para fora, tateou o chão com os pés a procura dos chinelos e calçou-os lentamente. Esticou o braço em direção ao criado mudo, alcançando-o, apoiou-se para se levantar, sentindo o corpo pesado e fraco. Caminhou titubeando em direção à toalete, amparou-se na parede em frente e percorreu as mãos até a
Na tarde do dia seguinte, quando Lily deu continuidade a leitura do livro, Collin recordou que não só já o havia lido, como fora um dos primeiros de sua vida. Causou-lhe espanto perceber que a história, aparentemente infantil, dialogava com ele e depositava reflexões penetrantes em sua alma. Tão profundas quanto a dor e o ressentimento que jaziam dentro dele.Collin seccionou sua vida entre o antes e o após perder a visão. O depois, era um purgatório, onde não podia voltar a viver, mas também não descia de uma vez ao inferno. Não podia realizar tarefas simples, como ler um livro, caminhar ao ar livre, andar a cavalo, jogar bola ou barbear-se. Não tinha ideia de como essas coisas eram valiosas, até perder tudo.Perdas. Sua vida ha
Sulivan não precisava de explicações, mas soube que algo havia mudado no filho desde aquela conversa. No domingo à tarde, a TV do quarto de Collin estava ligada em um documentário sobre a vida dos insetos, o qual ele pouco escutava, enquanto lembrava da garota presunçosa que nos últimos dias, sempre arranjava um jeito de invadir seus pensamentos. Sulivan lhe fazia companhia e depois de um tempo o observando, resolveu tocar no assunto.— Filho, como você está com a Lily? — ela disse sentada na cama dele.A pergunta repentina o pegou de surpresa. Ele se endireitou na cadeira, enquanto instintivamente cerrava os punhos. Pensar sobre isso, não lhe era nada confortável.— Parece que a relaç&
— Papai?Sócrates dormia quando ouviu o chamado distante de uma voz infantil. Despertou aturdido, mas, tranquilizou-se quando viu Helena dormindo ao lado. Acomodou-se novamente na cama e puxou cobertor cobrindo-se mais.— Papai? — ouviu outra vez quando pegou no sono.Abriu os olhos e teve que conter o grito, quando viu uma garotinha em pé no quarto. Esfregou o rosto tentando se livrar da visão, mas olhando uma segunda vez pode perceber que a conhecia muito bem.— O que faz aqui, meu amor? Volte para o seu quarto.A menina encostou o dedo nos lábios, pedindo silêncio, depois gesticulou com as mãos para que a acompanhasse. Ele obedeceu, levantando-se e a ac
— Lily, você está doente? — disse Sulivan notando a palidez da moça de manhã.— Não. Estou bem. — mentiu, levantando-se do balcão para se retirar da cozinha. O chão sumiu debaixo de seus pés, e ela procurou por algo em que se apoiar até ser amparada pela outra mulher.— Você não está bem.— É. Parece que não. — assentiu.A mais velha passou os braços em torno dela e a ajudou a sentar-se novamente.— Fique quietinha aí. Você quer um copo de água? Um remédio? Quer que eu prepare um chá?
— Cuidado com a cabeça, filho.Sulivan advertiu ajudando o filho a entrar no carro. Pela outra porta, uma eufórica Lily entrava acomodando-se ao seu lado. Era 01 de Maio, feriado do trabalho, e a primeira vez em anos, que Collin saía de casa. Suas mãos suavam e sentia-se como se estivesse sufocando. Quando o motorista ligou o motor do carro, foi afetado por um terror repentino. Frustrado e arrependido por ter chegado até ali, soltou o cinto de segurança e procurou pela maçaneta do carro.— Eu não consigo fazer isso. Desculpem, eu não quero mais ir.No banco da frente Sulivan olhou-o decepcionada, depois dele para Lily e de volta para ele.— Eu quero sair!