Sulivan adorava ter a companhia de Lily. Em pouco tempo, a moça se ofereceu para ajudá-la a recuperar o jardim, e trabalhavam nele duas ou três vezes por semana, enquanto a dona da casa, contava histórias sobre sua família, aventuras de sua juventude e dos momentos preciosos que viveu ao lado do marido. A mais jovem, como uma perfeita ouvinte que era, a escutava com entusiasmo. Algumas vezes estas conversas tomavam um tom de desabafo. Sulivan se emocionava, chorava, e depois, envergonhada, se desculpava por obrigá-la a presenciar estes momentos de fraqueza.
— Eu nunca me abri sobre essas coisas com ninguém, você entende? — justificou Sulivan tentando enxugar os olhos marejados com o antebraço — Não quero que o Collin se sinta culpado pela minha tristeza.
— Eu entendo, senhora Sulivan. - disse tocando seu ombro em sinal de compreensão. Em seguida voltou a retirar as ervas daninhas que brotaram naquela parte do jardim.
— Mas, agora fico descarregando tudo em cima de você. Me perdoe, Lily! Sinto que estou sendo chata. — Sulivan acrescentou balançando a pá de jardinagem a medida que gesticulava.
— Tudo bem! Juro que não está. Desabafar faz bem.
Mais tarde, Lily assou um bolo de chocolate para lanche e o cobriu com creme de brigadeiro.
— Nossa! Está bonito. — disse Sulivan se debruçando sobre o balcão da cozinha.
— Obrigada!
— Você é muito dotada! Deve se virar muito bem sozinha.
— Sim. Com o tempo a gente aprende a dar um jeito.
A outra sorriu e em seguida foi servida com uma generosa fatia do bolo.
— Agora, vou pedir licença a senhora. Vou lá tentar adoçar a fera! — brincou Lily dirigindo-se as escadas com outra fatia.
Ela entrou no quarto e entregou o prato para Collin, sem se surpreender com a ausência de reação por parte dele. Sentou um pouco e ficou o observando comer. Seu olhar profundo revelava o quanto era afetada pelo estado dele. Cada dia que passava o sentia mais distante. Por alguns minutos divagou em suas lembranças desviando a atenção para um pequeno fio de luz que entrava pela janela que desde que chegara nunca havia sido aberta.
— Está doente?
— O quê? — Lily perguntou interrompendo os pensamentos.
— Você sempre fala como uma matraca, mas hoje está calada. Perguntei se está doente? – comentou estranhando o comportamento dela.
— Então agora você também se ofende com meu silêncio? — retrucou.
— Na verdade, me incomoda tudo relativo a você.
— Ah! Por um instante supus, que estivesse começando a sentir necessidade de ouvir minha voz. Mas, já que estamos sendo sinceros, eu também não gosto muito de você.
— Concordamos em algo afinal.
— Ótimo! — concordou entristecida.
— Ótimo! — Collin ficava demasiado irritado com o sarcasmo de Lily. – Escuta.
— O que é agora? — Ela perguntou revirando os olhos.
— Você não tem amor-próprio? Não se sente mal em ficar num lugar onde você não é bem-vinda?
Lily levou mais tempo do que o necessário para responder a essa pergunta. Encarou-o durante alguns instantes, como se pudesse enxergar através dele.
— Não posso ir embora! — respirou fundo notando seu queixo sujo de chocolate.
— Por que não? Nada te impede.
— Não vou a lugar algum.
— Mas pensei que...
— Que penso em desistir? — disse se aproximando dele deixando-o em estado de alerta. Ela pegou o guardanapo e limpou o chocolate. — Sinto decepcioná-lo, mas você errou feio. — completou retornando ao seu lugar, ao passo que ele permaneceu paralisado.
Ela levantou e atravessou o quarto parando em frente a um baú que ficava no chão, ao lado do guarda-roupa. Só veio repará-lo ali no terceiro dia de trabalho, e desde então estava curiosa para saber o que havia dentro. Abaixou diante do artefato, abriu com cautela e ficou hipnotizada. Eram livros, exemplares valiosos da literatura nacional e estrangeira. Então, ele gostava de ler? Também havia brinquedos, cadernos repletos versos manuscritos, fotografias, e vários objetos pessoais da infância e da adolescência do rapaz.
— Até prefiro assim... — ele disse quebrando seu transe. — Esse silêncio.
Ela voltou o olhar para o interior do baú. Para uma das fotografias, em particular, quando foi arrebatada por uma emoção que a fez soluçar.
— Vou descer. — ela avisou, saindo do quarto num único e longo passo. Collin entendeu aquilo como uma reação ao seu comentário e ficou satisfeito.
Lily caiu aos prantos antes de chegar à escada.
***
Era tarde quando Emily parou a frente da entrada de sua casa. Isso se tornava cada vez mais frequente naquele mês. Exausta, sentia sua última reserva de paciência se esvair a medida que revirava toda a bolsa sem encontrar suas chaves. Ansiava por chegar no quarto, despir-se e tomar um banho quente. Tudo isso sem ser pega. Mas para sua frustração, viu a porta abrir-se e por trás dela ninguém menos que seu pai.— Vamos ter uma conversa séria, moça. — Ele disse cruzando os braços e com cenho endurecido.
Ela estava sem um mínimo de disposição para ter aquela conversa. Não se sentia bem para isso. Então respirou fundo.
— Você me pegou, hein, pai? – disse beijando a testa enrugada e dando um sorrisinho forçado. – Ninguém escapa do velho Sócrates por muito tempo.
— Se sabe disso porque tem me evitado, então? Pensa que não percebi? Você pode sentar aí e me escutar? — Ele insistiu apontando para o sofá.
— Está me dando opção? Por que se estiver, escolho ir para o meu quarto.
— Não. Não estou.
— Eu imaginei.
Ela obedeceu, e sentou-se omitindo que se sentia mal. Isso pioraria as coisas.
— Você tem saído de casa cedo e voltado só à noite. Já perdi as contas de quantas vezes chegou depois das oito. Não pensa que você está abusando? Sabe o quanto sua mãe e eu ficamos preocupados?
— Por favor, papai. Não estou fazendo nada de errado.
— Está não é a questão, Emily. Você tem tomado suas medicações no horário? — Ela deu de ombros. — Sou de apostar que não. Você prometeu que se cuidaria.
— Eu sei pai. — Ela assentiu abaixando o olhar para o chão.
— Você não pode abusar tanto de si mesma. Meu Deus! E se acontece algo enquanto estiver fora, longe de mim e da sua mãe? Deus! Nem quero pensar.
— Isso não vai acontecer.
— Como pode ter certeza? Você tem certeza? – Emily balançou a cabeça em negação. — Isso foi um erro. E tem que terminar a partir de hoje.
Ela ergueu os olhos assombrados.
— Não pode me proibir.
— Claro que posso, sou seu pai. E você vai me obedecer.
— Não pode! Por favor, não! Não vou suportar se você me proibir de fazer isso. — Ela colocou o rosto entre as mãos e começou a chorar.
— Você sobrevive. Estou certo que não vai morrer por isso. — Ele disse sem pensar no peso das palavras.
Logo que fechou a boca, se arrependeu de ter dito daquela forma e teve que enfrentar com remorso o olhar ferido da filha. Emily correu para o quarto e escondeu o rosto entre os travesseiros sobre a cama. Sócrates a seguiu e ajoelhou-se ao lado do móvel.
— Perdão, Emily. Eu não quis te magoar! — enxugou a lágrimas nos olhos da moça com o polegar. — Eu não pensei antes de falar.
Emily sentou-se na cama, abraçando o próprio corpo.
— Não posso abandonar agora, pai.
— Eu não te entendo filha. Não permitimos que te falte nada. Fomos compreensivos, quando você quis fazer um trabalho voluntário de meio período. Mas por que isso agora?
Ela hesitou, mas o pai sempre fora seu melhor amigo e cúmplice. Além disso, precisava contar para alguém. Apontou o lugar ao seu lado, segurou as mãos do homem e narrou tudo, com olhos cravados nos dele. Ao fim do relato, a expressão do pai era indefinível.
— Você planejou tudo isso, sozinha?
— Sim.
— Emily, você não tem que fazer isso. — Ele disse emocionado.
— Tenho que reparar meu erro, ou minha alma jamais terá paz. Não retrocedo por nada.
Sócrates envolveu a filha num abraço afetuoso e liberou as lágrimas que já enchiam seus olhos. Não iria soltá-la, pensou estreitando o abraço. Talvez se a segurasse com muita força, não poderiam levá-la. Mas sabia, no fundo, que era ilusão e reconhecia sua impotência diante dos fatos. O que lhe restava a fazer se não atender o último desejo da filha amada?
Era incompreensível, o sentimento que Sulivan tinha adquirido por uma estranha. Acreditava nela a ponto de lhe confiar o seu bem mais precioso. Admirava, a garota de olhar tenro e sorriso acolhedor, que tinha o dom de compreender as profundezas dos seus ressentimentos, e saber sempre o que dizer para animá-la. Começou a suspeitar que apesar de pouca idade, Lily já deveria ter vivido coisas suficientes que a tornaram tão madura. Às vezes seu olhar era distante e enigmático. Chegava antes do início do expediente, nunca pediu dispensa mais cedo, nunca reclamou de passar do horário, era bastante reservada sobre sua vida pessoal e era raro citar algo sobre a família. Às vezes Sulivan puxava uma conversa com intenção de descobrir mais, quando Lily notava a discreta invasão, dava respostas evasivas e mudava de assunto de forma abrupta.
Como todas as manhãs, desde o acidente, Collin acordou desejando estar morto. Mesmo havendo se passado mais de quatro anos, ainda sentia o terror que era abrir os olhos e continuar no escuro. Permaneceu deitado por um tempo, juntando algum resquício de ânimo para se levantar. Arfou ouvindo as vozes da mãe e de sua cuidadora vindo do andar de baixo, prevendo que logo ela subiria com seu café e o importunaria por mais um dia inteiro. Sem nenhuma motivação, sentou na cama, girou o corpo colocando as pernas para fora, tateou o chão com os pés a procura dos chinelos e calçou-os lentamente. Esticou o braço em direção ao criado mudo, alcançando-o, apoiou-se para se levantar, sentindo o corpo pesado e fraco. Caminhou titubeando em direção à toalete, amparou-se na parede em frente e percorreu as mãos até a
Na tarde do dia seguinte, quando Lily deu continuidade a leitura do livro, Collin recordou que não só já o havia lido, como fora um dos primeiros de sua vida. Causou-lhe espanto perceber que a história, aparentemente infantil, dialogava com ele e depositava reflexões penetrantes em sua alma. Tão profundas quanto a dor e o ressentimento que jaziam dentro dele.Collin seccionou sua vida entre o antes e o após perder a visão. O depois, era um purgatório, onde não podia voltar a viver, mas também não descia de uma vez ao inferno. Não podia realizar tarefas simples, como ler um livro, caminhar ao ar livre, andar a cavalo, jogar bola ou barbear-se. Não tinha ideia de como essas coisas eram valiosas, até perder tudo.Perdas. Sua vida ha
Sulivan não precisava de explicações, mas soube que algo havia mudado no filho desde aquela conversa. No domingo à tarde, a TV do quarto de Collin estava ligada em um documentário sobre a vida dos insetos, o qual ele pouco escutava, enquanto lembrava da garota presunçosa que nos últimos dias, sempre arranjava um jeito de invadir seus pensamentos. Sulivan lhe fazia companhia e depois de um tempo o observando, resolveu tocar no assunto.— Filho, como você está com a Lily? — ela disse sentada na cama dele.A pergunta repentina o pegou de surpresa. Ele se endireitou na cadeira, enquanto instintivamente cerrava os punhos. Pensar sobre isso, não lhe era nada confortável.— Parece que a relaç&
— Papai?Sócrates dormia quando ouviu o chamado distante de uma voz infantil. Despertou aturdido, mas, tranquilizou-se quando viu Helena dormindo ao lado. Acomodou-se novamente na cama e puxou cobertor cobrindo-se mais.— Papai? — ouviu outra vez quando pegou no sono.Abriu os olhos e teve que conter o grito, quando viu uma garotinha em pé no quarto. Esfregou o rosto tentando se livrar da visão, mas olhando uma segunda vez pode perceber que a conhecia muito bem.— O que faz aqui, meu amor? Volte para o seu quarto.A menina encostou o dedo nos lábios, pedindo silêncio, depois gesticulou com as mãos para que a acompanhasse. Ele obedeceu, levantando-se e a ac
— Lily, você está doente? — disse Sulivan notando a palidez da moça de manhã.— Não. Estou bem. — mentiu, levantando-se do balcão para se retirar da cozinha. O chão sumiu debaixo de seus pés, e ela procurou por algo em que se apoiar até ser amparada pela outra mulher.— Você não está bem.— É. Parece que não. — assentiu.A mais velha passou os braços em torno dela e a ajudou a sentar-se novamente.— Fique quietinha aí. Você quer um copo de água? Um remédio? Quer que eu prepare um chá?
— Cuidado com a cabeça, filho.Sulivan advertiu ajudando o filho a entrar no carro. Pela outra porta, uma eufórica Lily entrava acomodando-se ao seu lado. Era 01 de Maio, feriado do trabalho, e a primeira vez em anos, que Collin saía de casa. Suas mãos suavam e sentia-se como se estivesse sufocando. Quando o motorista ligou o motor do carro, foi afetado por um terror repentino. Frustrado e arrependido por ter chegado até ali, soltou o cinto de segurança e procurou pela maçaneta do carro.— Eu não consigo fazer isso. Desculpem, eu não quero mais ir.No banco da frente Sulivan olhou-o decepcionada, depois dele para Lily e de volta para ele.— Eu quero sair!
Por volta das 11:30h estavam exaustos. Andaram por quase duas horas subindo e descendo e precisaram de uma pausa. Sulivan teve a ideia de fazerem um piquenique ao ar livre no almoço e com a ajuda de Lily preparou tudo. Procuraram um lugar afastado onde Collin se sentisse o mais à vontade possível e arrumaram as comidas sobre a tradicional toalha quadriculada. Sulivan havia passado o dia anterior preparando uma fartura de lanches deliciosos, como pequenos sanduíches naturais com pão integral, alface americana, tomate, picles e peito de peru defumado; mini rocamboles de queijo e presunto; mini tortinhas de queijo cottage com salmão, limão e salsinha; Brownies de chocolate meio amargo recheados com nozes e frutas.— A senhora nem exagerou na quantidade de comida Sra. Sulivan. Pretendia convidar todas as pessoas do jardim? — Lily d