O táxi amarelo subiu a ladeira e parou em frente ao imponente casarão de muros cobertos de musgos. Santa Tereza, bairro da Zona Central do Rio de Janeiro, é conhecido pelas antigas mansões, ruas íngremes e sinuosas, e estilo de vida boêmio. Lily ergueu o olhar apreensivo através da janela do carro e respirou fundo. Estar ali era importante e, ao mesmo tempo, angustiante, mas sentia que tudo daria certo. Tinha que dar certo. Segurando um envelope, colocou a bolsa no ombro, pagou a corrida e andou até o portão de ferro. Anunciou sua presença no interfone e, assim que a entrada foi liberada, passou pelo estreito caminho de tijolos até a varanda de estilo colonial.
Enquanto aguardava a proprietária do imóvel, olhava o ambiente. As paredes eram revestidas de ladrilhos holandeses com alguns retratos antigos. Um denso carpete estampado cobria boa parte do chão de mármore frio e escuro, e cortinas cinzas se estendiam sobre duas grandes janelas, impedindo quase toda a luminosidade de entrar.
Lily se sentou no sofá talhado em madeira de lei maciça, com estofamento de linho em tom de marfim. Havia duas poltronas com o mesmo padrão. No centro, uma mesa de madeira de estilo vintage completava a decoração requintada, embora o ambiente tivesse um ar tão obsoleto que Lily ficou com a impressão de ter voltado no tempo. Ela considerou seriamente essa possibilidade no momento em que viu a anfitriã, de cerca de cinquenta anos, vestindo roupas fora de moda e com estampas ultrapassadas.
Lily se levantou para cumprimentá-la, uma mulher esguia e naturalmente elegante. O cabelo louro, com alguns fios grisalhos, torcido em um coque na altura das orelhas, deixando escapar alguns fios soltos. Não usava acessórios, como colares ou brincos, nem mesmo uma presilha. Parecia desleixada com sua aparência e ignorava a própria beleza.
— Boa tarde! — A senhora da casa estendeu a mão esboçando um sorriso discreto e simpático. — Muito prazer, sou Marie Sulivan. Você aparenta ser tão jovem.— Pode me chamar de Lily. E o prazer é meu, senhora! — disse a moça ao retribuir o aperto de mão com um sorriso descontraído. — O pessoal da agência deve ter ligado. Como informei no interfone, vim pela vaga de cuidadora.
Lily era magra, de baixa estatura, com olhos grandes e brilhantes e uma aparência angelical. Vestia uma calça Capri preta, um terno bege sobrepondo-se à camisa rosa-claro e sapatilhas. No cabelo amarelado, havia um rabo de cavalo preso por um elástico.
— Oh! Sinto muito, querida. Fiquei surpresa quando você avisou pelo interfone, mas pensei que seria grosseria não lhe informar, em pessoa, que a vaga foi cancelada.
— Ah! Não me avisaram nada. — lamentou com o olhar cabisbaixo.
— Parece que a agência cometeu um erro. Liguei há dois dias pedindo que dispensassem todos os candidatos.
— Então, a vaga já foi preenchida?
— Na verdade, eu desisti de contratar alguém.
Lily se recusava a admitir que estava perdendo a oportunidade.
— Desculpe, mas posso perguntar por quê?
— No último mês, três pessoas passaram por esta casa. Mas nenhuma delas ficou. Uma desistiu no primeiro dia, antes mesmo do almoço. Foi uma experiência desagradável.
Lily a encarava intrigada. Mesmo correndo o risco de ser intrometida, queria saber o que havia de tão errado com essa família.
— Seria inconveniente querer saber o motivo?
A outra levantou e desceu os ombros, acompanhando com um longo suspiro.
— Para ser sincera, ninguém foi capaz de lidar com meu filho.
— Entendo seu receio. Mas acho que essas pessoas, mesmo com mais idade e experiência do que eu, podem não ter sido profissionais ou não tiveram empatia suficiente. — disse Lily, com calma. — Eu sei que sou jovem, mas estou qualificada para o trabalho. Pode ver no meu currículo. — Lily entregou o conteúdo do envelope, e Sulivan aceitou sem demonstrar muito interesse.
— Hum... — murmurou, sentando-se na poltrona em frente. — Seu currículo é realmente impressionante. — acrescentou, agora um pouco mais curiosa.
Lily parecia perfeita para a função. Talvez até perfeita demais. Ela exibia uma segurança impressionante, apesar da evidente juventude.
A mulher, ainda sentada na poltrona em frente a Lily, folheava o currículo com um olhar atento. Após um momento, levantou os olhos e a observou com uma expressão cética.
— Então, você tem 21 anos... — disse a mulher, conferindo o currículo. — E você é daqui do Rio?
— Sou do interior, de Três Rios. — Lily respondeu, ajustando a postura na cadeira e deixando suas mãos repousarem sobre a perna e tentou parecer relaxada.
— E seus pais? Eles se mudaram para cá com você?
— Meus pais estão em Três Rios, moro sozinha aqui.
A mulher fez uma pausa deixando Lily apreensiva, então fez uma pergunta decisiva.
— E o que a fez procurar este emprego?
Lily sorriu ligeiramente e respirou fundo antes de responder.
— Eu amo trabalhar com cuidados, mas a maioria das vagas que encontrei são só para voluntários, e eu preciso de algo que me ajude a pagar as contas. Além disso, eu adoro a ideia de poder me concentrar em ajudar uma pessoa só, ao invés de atender muitas pessoas ao mesmo tempo. Aqui, eu teria a chance de oferecer um cuidado mais pessoal e fazer uma diferença real na vida de alguém. Isso é o que me atrai para essa vaga.
Sulivan estava cansada demais para enfrentar essa situação novamente, mas os argumentos de Lily a deixaram tentada. Ela não conseguia explicar exatamente por que gostou da jovem; talvez fosse o entusiasmo de Lily que a atraiu. Para não tomar uma decisão precipitada, Sulivan procurou um pretexto para prolongar a conversa.
— Aceita tomar chá? Você gosta? Me perdoe por não oferecer um café. Não tenho costume de tomar e não esperava ter companhia hoje. — disse se afastando. — Mas, posso passar se quiser. Devo ter aqui em algum lugar.
— Tudo bem! Chá, está ótimo! — agradeceu observando a mais velha se retirar, por um tempo breve.
Como as várias fotografias já indicavam, Marie descendia de uma família de imigrantes ingleses, que chegaram no Brasil na década de 20. Durante toda mocidade foi preparada para o papel de esposa e mãe. Casou-se aos dezessete anos com o oficial da marinha, Fausto Sulivan, e logo em seguida tornou-se mãe. O primeiro e único filho, recebeu o nome do bisavô inglês. Ela não conseguiu engravidar novamente e quatro anos depois foi golpeada pela morte súbita do marido.
Sulivan retornou da cozinha equilibrando na bandeja, parte de um elegante jogo de chá. Serviu a moça e após se servir acomodou-se novamente na poltrona, notando que sua visita se distraía com os quadros.
— Quando fiquei viúva, era muito nova, e de repente tive que aprender como administrar negócios, finanças, uma casa e ainda criar um filho. Felizmente tive amigos que me ajudaram na época. — contou atraindo a atenção e o interesse da mais jovem. — Quando já havia superado o luto, veio o acidente do meu filho e desde esse nefasto dia, nada voltou para o lugar. — Sulivan suspirou após solver o último gole de chá, inclinando-se para colocar a xícara sobre a mesa de centro. Ela olhou gentilmente para a moça. — Sabe? Gostei de você, querida! E de fato me sinto inclinada a te contratar, mas meu filho não concordaria. — confessou desanimada.
— Com o tempo eu poderia convencê-lo. — insistiu Lily, disposta a vencer quantos mais obstáculos Sulivan colocasse a sua frente. Ela lutaria por aquele trabalho.
Sulivan lhe lançou um olhar incrédulo. Levantou-se e andou em silêncio pela sala até uma escrivaninha do outro lado. Era um lindo móvel esculpido em madeira de imbuia e havia muitos porta-retratos sobre ele. Dado a quantidade de fotos, Lily compreendeu que a mulher dava uma importância demasiada as lembranças. Imagens felizes, bem distintas do cenário de solidão que presenciava. Talvez de uma época da qual a mulher sentisse muita falta. A reconheceu em algumas, muito mais nova, confirmando que fora muito atraente. Na verdade, ainda era, embora a que agora se dirigia a ela, fosse apenas um espectro da mulher do passado. Reparou também nos retratos de um rapaz de sorriso largo. Uma versão masculina da mãe, de cabelos pretos e tom de pele mais castanho-dourado. Não havia fotos atuais dele, assim como não havia de Sulivan.
"Essa casa parou mesmo no tempo", pensou.
— Proponho o seguinte... — falou Sulivan, interrompendo seus pensamentos. — Você retornará amanhã pela manhã. Digamos que será um teste de fogo. Depois que falar com ele, você me dirá se quer ou não o emprego.
Lily sentiu um frio na barriga, mas balançou a cabeça aceitando o desafio. Na manhã seguinte, de tão ansiosa chegou cedo, por volta das 7h. Sulivan apresentou os demais cômodos da casa. No térreo, além da sala de estar havia uma cozinha americana conjugada com a sala de jantar, um quarto de hóspede com suíte e um banheiro social. A área externa da casa, era cercada por um jardim, que há tempos não era cuidado. O mato já havia tomado os canteiros onde algumas flores tentavam sobreviver, as árvores precisavam de polda e a grama estava estragada. Subindo as escadas, dobrando a direita havia três quartos. A primeira porta do lado esquerdo era o quarto de Collin, seguindo do lado direito ficava o quarto de Sulivan e depois outro, de hóspede. Havia outro banheiro social, e no final do corredor um pequeno avarandado.
— Bom, agora que já te apresentei a casa, você irá conhecê-lo. — avisou quase sussurrando após parar à porta do primeiro quarto.
— Agora? Sozinha? — A mais velha confirmou com a cabeça. — Certo.
Observando a mulher descer as escadas, ela engoliu o bolo que se formou na garganta. Hesitou por um instante, sentindo um misto de emoções. Tomou um último fôlego de coragem, e girou a maçaneta com cautela. A porta rangeu e ela enfiou a cabeça pela brecha sentindo as palavras quase fugirem da mente, no momento em que viu o interior do quarto.
— Com licença, senhor. — anunciou com a voz esganiçada. Nenhum som veio em resposta e ela adentrou andando passo por passo. — Senhor Sulivan?
O quarto era escuro, e se havia uma janela estava escondida atrás da densa cortina cinza. Os móveis se resumiam, a um guarda-roupa grande e rustico, um aparador, uma poltrona reclinável, uma cama e um criado mudo.
— Quem é você? — esbravejou uma voz cavernosa, que acabara de sair pela porta do que parecia ser um banheiro.
— É... meu... meu nome é Lily. Estou me candidatando a vaga para trabalhar aqui.
— Vá embora! — ele disse andando em direção à poltrona.
— É que a Sra. Sulivan, sua mãe, está receosa em me contratar. — ela continuou observando-o se sentar com as costas voltadas para entrada. — Eu pensei que...
— Ela sabe que não quero estranhos aqui.
— Senhor, se me escutar por apenas uns instantes, juro que não vai se arrepender.
— Essa m*****a casa também é minha. Não ouviu o que eu disse? Vá embora! — disse ele embravecido.
Ignorando a ordem, Lily moveu-se cada vez mais para perto dele, tentando ver melhor o rosto ocultado pela baixa iluminação. . Sua curiosidade era maior que a sensatez.
Ela levou as mãos a boca e seus olhos encheram-se de lágrimas. A imagem diante dela era de cortar a alma. O garoto de cabelos negros e sorridente das fotos, agora era um homem magro, de barba espessa, cabelo comprido e pele ictérica devido à falta de luz do sol. Tomada pela emoção, sem muita noção do que fazia tocou-lhe em seu ombro.
— Como se atreve me tocar? — inquiriu segurando o braço dela. — Você é idiota?
— Desculpe! Foi um erro. Por favor, me solte! — pediu quase chorando.
— Vá embora!
Quando se viu livre ela se virou para sair, mas ele tomado pela ira, lançou um copo na sua direção. O objeto passou de raspão e estilhaçou na parede a sua frente. Soltando um grito de susto, ela voltou-se enfurecida.
— Perdeu o juízo? Eu já estava saindo, não precisava dessa histeria.
— Você tem a petulância de me enfrentar, dentro da minha própria casa?
— Sabe que poderia ter me machucado?
— E o que faria a respeito?
— Minha vontade, era te dar uma surra!
— Vai em frente! Não tem nada te impedindo. Nem tenho como me defender.
Lily retomou a compostura.
— Eu não faria isso, com alguém na sua condição. — devolveu baixando o tom da voz.
— Está com pena de mim?
— Pena? — ela gargalhou. — Eu não sou ave para ter pena. Olha, senhor, eu posso não o conhecer, mas, está óbvio que é o senhor que se corrói de autopiedade.
— O que você sabe sobre mim? — Ele bradou indignado. — Sai agora, do meu quarto e da minha casa!
Lily considerou pedir desculpas, porém, o orgulho não permitiu. Saiu com a cabeça erguida, mas ao chegar no corredor seu coração esmoreceu. Ela apoiou as costas na parede, com a respiração acelerada e enxugou as lágrimas ouvindo os gritos que ecoarem pela casa. Quando conseguiu se recompor, desceu as escadas e reencontrou Sulivan que aguardava no primeiro degrau com um semblante alarmado.
— Não pode dizer que não alertei. Lamento! Se isto é tudo, foi um prazer conhecê-la. — Sulivan estendeu a mão se despedindo.
— Espere. Eu ainda não dei minha resposta. — Lily falou lutando contra as lágrimas que lhe enchia os olhos.
— O quê? — gritou surpresa. — Como assim?
— Eu quero o emprego!
— Enlouqueceu, menina?
— Eu vim para ficar com esse trabalho e não desisto tão fácil das coisas. Estou preparada para o pior. Quero tentar.
Sulivan ficou pasma.
— Meu Deus! Como alguém vive desse jeito?
— Chocada? — perguntou se recuperando.
— Não. Um pouco, na verdade. E estou comovida.
— Meu filho nunca superou o que aconteceu. Não houve pessoa ou profissional que o convencesse a aceitar ajuda. Tento fazer o melhor para protegê-lo e apoiá-lo.
Lily, pegou uma foto de Collin em cima da mesa e se perguntou, onde aquele garoto estava escondido dentro do homem doente e transtornado que acabara de ver.
— Ele estava com dezessete anos quando tirei essa foto, alguns meses antes do acidente. Uma das últimas vezes que ele sorriu. — Sulivan comentou perscrutando a moça.
— Como aconteceu? — sussurrou Lily.
— Você acredita, que um simples projeto de ciências, resultou nessa tragédia? – riu com ironia— Durante sua apresentação na final da Feira Estadual de Ciência, houve uma explosão e algum líquido corrosivo atingiu o rosto, principalmente os olhos e o nariz. Ele ficou na UTI por dois dias. Quando acordou, soubemos que as lesões haviam deixariam mais que cicatrizes. Ele havia perdido a visão.
Lily virou as costas para Sulivan, tentando esconder o rosto. Disfarçadamente enxugou os olhos com as mãos.
— No caso dele, não seria possível reverter com um transplante?
— Sim. Chegamos a procurar uma especialista em São Paulo, uma das melhores na área. E ele fez a cirurgia, mas infelizmente depois de algumas semanas, o organismo rejeitou. Eu até quis que ele tivesse aceitado uma segunda tentativa, mas Collin ameaçou que se mataria se eu o obrigasse.
— Meu Deus! Vocês dois passaram por tanta coisa. Por favor, eu quero ajudar. — suplicou Lily.
— Minha querida, aprecio sua boa intenção. Mas como pretende fazer isso? Sou a única pessoa em que ele confia.
— Posso pensar em alguma coisa, sei que posso.
A jovem despertou a curiosidade de Sulivan. Por que uma estranha teria tanta disposição? Mas, também sentia-se tão perdida, que agora qualquer caminho lhe parecia uma saída. Resolveu dar um voto de confiança para a moça. Pediu que ela aguardasse na sala, que tentaria convencer o filho. Quando Sulivan subiu, Lily retornou o olhar para a foto do rapaz e foi tomada por uma emoção incontrolável.
No quarto do filho, Sulivan aproximou-se dele e beijou-lhe na testa.
— Não acredito que está fazendo isso. Ela ainda está lá embaixo? Veio aqui apelar? E depois? Quantos dias ela vai levar para ir embora também?
— Collin, ela parece ser diferente.
— Desista! Não vai conseguir me convencer.
— Filho, por favor!
— Eu não a quero aqui. Não quero ninguém se intrometendo em nossas vidas, mexendo nas minhas coisas. Além disso, ela me insultou.
— Você provocou, Collin.
— Nem a conhece e já está defendendo. Não basta a humilhação que eu enfrento todos os dias? Não preciso de uma estranha para me fazer lembrar do quanto sou um imprestável.
— Não se trata disso! Sou eu que preciso. — Sulivan ajoelhou-se diante dele, apoiando-se em suas pernas. — Filho, estou cansada e não suporto mais ver você nessa situação.
— Lamento ser um estorvo na sua vida. Eu quis acabar com isso há um ano, mas você me fez jurar que não mais tentaria.
— Não ponha palavras em minha boca! Você sabe que não foi o que eu quis dizer. Nunca mais fale sobre aquele dia. — retrucou indignada. — Você faz ideia do quanto me machuca ouvir você falar isso?
— Desculpa.
— Por favor, Collin! Faça esse esforço por mim. Talvez essa garota possa te ajudar, se você permitir.
Por fora, Collin parecia austero, mas a súplica de Sulivan o desmanchou. Reconhecia o sacrifício de sua progenitora, que renunciara a si mesma em virtude dele. Como negar algo a quem nunca lhe negou nada?
— Está bem. Contrate-a, se assim quiser. Mas não vou ser amigo dela, nem me esforçarei para agradá-la. E se essa também não ficar, não adianta insistir na próxima. Não vai me convencer outra vez.
— Prometo que é a última tentativa. — Sulivan o beijou três vezes na testa. — Você se finge de insensível, mas tem bom coração, filho. Obrigada!
Lily limpou as lágrimas ao ver Sulivan descendo as escadas. Pigarreou antes de perguntar.
— Então?
— Você está contratada.
Após receber as instruções sobre a rotina da casa, Lily acompanhou Sulivan em suas tarefas, observando com atenção. No decorrer da semana, mais adaptada, passou a cuidar das coisas de Collin, mas procurando se manter resignada em relação a ele. Não queria forçar uma aproximação prematura. Desde que Lily chegou ele raramente saía do quarto, seu dia a dia se resumia as necessidades básicas, como única distração passava horas escutando os canais de esportes, documentários e notícias na TV a cabo, mas sem demonstrar qualquer sinal de ânimo ou interesse. Era apenas uma tentativa de manter a mente ocupada.Lily esperava que teria dificuldades para obter a aceitação dele. Porém, foi pior do que havia presumido. O rapaz parecia ter encontrado uma nova ocupação, a de tornar o contato entre eles o mais odioso poss&i
Sulivan adorava ter a companhia de Lily. Em pouco tempo, a moça se ofereceu para ajudá-la a recuperar o jardim, e trabalhavam nele duas ou três vezes por semana, enquanto a dona da casa, contava histórias sobre sua família, aventuras de sua juventude e dos momentos preciosos que viveu ao lado do marido. A mais jovem, como uma perfeita ouvinte que era, a escutava com entusiasmo. Algumas vezes estas conversas tomavam um tom de desabafo. Sulivan se emocionava, chorava, e depois, envergonhada, se desculpava por obrigá-la a presenciar estes momentos de fraqueza.— Eu nunca me abri sobre essas coisas com ninguém, você entende? — justificou Sulivan tentando enxugar os olhos marejados com o antebraço — Não quero que o Collin se sinta culpado pela minha tristeza.
Era incompreensível, o sentimento que Sulivan tinha adquirido por uma estranha. Acreditava nela a ponto de lhe confiar o seu bem mais precioso. Admirava, a garota de olhar tenro e sorriso acolhedor, que tinha o dom de compreender as profundezas dos seus ressentimentos, e saber sempre o que dizer para animá-la. Começou a suspeitar que apesar de pouca idade, Lily já deveria ter vivido coisas suficientes que a tornaram tão madura. Às vezes seu olhar era distante e enigmático. Chegava antes do início do expediente, nunca pediu dispensa mais cedo, nunca reclamou de passar do horário, era bastante reservada sobre sua vida pessoal e era raro citar algo sobre a família. Às vezes Sulivan puxava uma conversa com intenção de descobrir mais, quando Lily notava a discreta invasão, dava respostas evasivas e mudava de assunto de forma abrupta.
Como todas as manhãs, desde o acidente, Collin acordou desejando estar morto. Mesmo havendo se passado mais de quatro anos, ainda sentia o terror que era abrir os olhos e continuar no escuro. Permaneceu deitado por um tempo, juntando algum resquício de ânimo para se levantar. Arfou ouvindo as vozes da mãe e de sua cuidadora vindo do andar de baixo, prevendo que logo ela subiria com seu café e o importunaria por mais um dia inteiro. Sem nenhuma motivação, sentou na cama, girou o corpo colocando as pernas para fora, tateou o chão com os pés a procura dos chinelos e calçou-os lentamente. Esticou o braço em direção ao criado mudo, alcançando-o, apoiou-se para se levantar, sentindo o corpo pesado e fraco. Caminhou titubeando em direção à toalete, amparou-se na parede em frente e percorreu as mãos até a
Na tarde do dia seguinte, quando Lily deu continuidade a leitura do livro, Collin recordou que não só já o havia lido, como fora um dos primeiros de sua vida. Causou-lhe espanto perceber que a história, aparentemente infantil, dialogava com ele e depositava reflexões penetrantes em sua alma. Tão profundas quanto a dor e o ressentimento que jaziam dentro dele.Collin seccionou sua vida entre o antes e o após perder a visão. O depois, era um purgatório, onde não podia voltar a viver, mas também não descia de uma vez ao inferno. Não podia realizar tarefas simples, como ler um livro, caminhar ao ar livre, andar a cavalo, jogar bola ou barbear-se. Não tinha ideia de como essas coisas eram valiosas, até perder tudo.Perdas. Sua vida ha
Sulivan não precisava de explicações, mas soube que algo havia mudado no filho desde aquela conversa. No domingo à tarde, a TV do quarto de Collin estava ligada em um documentário sobre a vida dos insetos, o qual ele pouco escutava, enquanto lembrava da garota presunçosa que nos últimos dias, sempre arranjava um jeito de invadir seus pensamentos. Sulivan lhe fazia companhia e depois de um tempo o observando, resolveu tocar no assunto.— Filho, como você está com a Lily? — ela disse sentada na cama dele.A pergunta repentina o pegou de surpresa. Ele se endireitou na cadeira, enquanto instintivamente cerrava os punhos. Pensar sobre isso, não lhe era nada confortável.— Parece que a relaç&
— Papai?Sócrates dormia quando ouviu o chamado distante de uma voz infantil. Despertou aturdido, mas, tranquilizou-se quando viu Helena dormindo ao lado. Acomodou-se novamente na cama e puxou cobertor cobrindo-se mais.— Papai? — ouviu outra vez quando pegou no sono.Abriu os olhos e teve que conter o grito, quando viu uma garotinha em pé no quarto. Esfregou o rosto tentando se livrar da visão, mas olhando uma segunda vez pode perceber que a conhecia muito bem.— O que faz aqui, meu amor? Volte para o seu quarto.A menina encostou o dedo nos lábios, pedindo silêncio, depois gesticulou com as mãos para que a acompanhasse. Ele obedeceu, levantando-se e a ac
— Lily, você está doente? — disse Sulivan notando a palidez da moça de manhã.— Não. Estou bem. — mentiu, levantando-se do balcão para se retirar da cozinha. O chão sumiu debaixo de seus pés, e ela procurou por algo em que se apoiar até ser amparada pela outra mulher.— Você não está bem.— É. Parece que não. — assentiu.A mais velha passou os braços em torno dela e a ajudou a sentar-se novamente.— Fique quietinha aí. Você quer um copo de água? Um remédio? Quer que eu prepare um chá?