Mara bebeu o último gole de café em meio a esses pensamentos, lavou o copo e depositou-o sobre o escorredor de louças. Pegou outro copo limpo, abriu novamente a garrafa térmica e mais uma vez derramou café no copo. Então abriu o armário, alcançou a lata de leite em pó instantâneo e o açúcar, colocou uma colher de cada um dentro do copo com café e mexeu com a mesma colher até a mistura ficar homogênea; apossou-se de um pãozinho, abrindo-o com uma faca de serra e passando margarina com a mesma faca nas duas partes do pão. Esticou o braço, alcançando a sanduicheira, abrindo-a e acomodando-as duas partes do pão lá dentro, fechando-a e introduzindo o plugue na tomada acendendo uma luz vermelha na parte de cima da sanduicheira.
Ficou aguardando aquecer o pão, ouvindo alguns estalinhos, até que uma luz verde acendeu-se indicando que o pão estava pronto. Depositou as fatias de pão em um prato e em passos lentos atravessou a cozinha, entrando no estreito corredor, passando pela porta do banheiro, até que empurrou lentamente a porta do quarto à frente. A janela dormira aberta por causa do intenso calor que fazia nos últimos dias e agora através dela o imenso clarão entrava, deixando o ambiente totalmente iluminado na parede ao fundo havia um pequeno guarda-roupa de solteiro de quatro portas com um espelho no centro. Mara pôde se ver de corpo inteiro refletida nele, e olhou para seu rosto por um instante. Rosa tinha razão, ela parecia mesmo uma pantera negra. Com seus fartos seios, a cintura fina, seus glúteos, suas coxas e pernas, nos seus trinta e oito anos, ela ainda era uma bela mulher, semelhante a uma índia. Mesmo assim, sabia que nunca amaria outro homem – um grande amor só se vive uma vez, pensava ela. Na cama de solteiro embaixo da janela estava sua porção de felicidade nesta vida. Depositou o copo de café com leite e o prato com as fatias de pão sobre a mesinha escolar, arrastou a cadeira e sentou-se, apoiando o cotovelo direito sobre a mesa e o rosto nas costas da mão fechada. Ficou por um longo tempo olhando Gabriel deitado de bruços, ressonando o mais tranquilo dos sonos.
Vestia apenas shorts, deixando os músculos das costas braços e as pernas bem peludas a mostra, o imenso corpo de pele clara estendido por toda a pequena cama deixava a impressão de que além de extremamente minúscula, ela de desintegraria a qualquer momento sob o peso do imenso corpo. Os cabelos negros encaracolados acomodavam-se em um corte masculino; não, ele não era mais o seu pequenino Gabriel, agora ele tinha vinte anos, era um belo moço – na verdade, já era um homem.
Mara sentiu-se orgulhosa de si mesma, por ter enfrentado tudo e todos que lhe foram contrários, e agora a natureza a recompensava pelo seu imenso esforço.
Foi há vinte e um anos, quando ela estava com apenas dezessete anos e ainda cursando o segundo grau no colégio próximo a residência alugada de seus pais na vila esperança, um bairro do outro lado da cidade. Eram os dias de sua juventude, dias sem nenhuma preocupação; ela se divertia com as amigas na escola, nos intervalos dos recreios era comum elas estarem conversando e rindo, como se a vida fosse eternamente uma brincadeira, apesar das dificuldades financeiras. Seu pai, o Sr. José, trabalhava em uma empresa de construção civil como pedreiro, sua mãe Dona Abigail era, como se diz, trabalhadora do lar, e com muito esforço seu pai conseguia pagar o aluguel, as contas, e cobrir as despesas do mês. Sua mãe, por sua vez, administrava aquele pouco com uma precisão incrível a ponto de deixar qualquer economista com inveja. Ela era filha única e os dias eram alegres. Ao voltar da escola, por volta do meio-dia, ela almoçava e ajudava a mãe nas tarefas domésticas. Sua mãe aproveitava para costurar para os vizinhos que a procuravam pedindo confecções de calça, camisa, vestidos ou simples reparos como troca de zíperes, barras de calça e afins. Às vezes a mãe saía para entregar as encomendas ou comprar materiais para suprir sua pequena oficina de costura que ficava em um canto na minúscula sala. À noite ela ajudava no jantar e as duas esperavam pelo pai. Normalmente assistiam às novelas na TV, depois seguiam para seus quartos, para um merecido descanso, e à espera de um novo dia.
Em um intervalo de recreio sentada em uma mureta que separava o pátio da quadra de futebol, Mara estava rodeada por suas amigas, a maioria à sua frente. Alguém contou uma piada e ela estava com as demais rindo, e de repente Mara percebeu que as meninas pararam de rir, e olhavam sérias para alguma coisa as suas costas. Ela também parou de rir e perguntou.
– O que foi?
– Alguém as suas costas! – Responderam entre os dentes.
– Meu Deus, se aquilo for real, eu daria toda minha vida em troca de apenas um minuto de felicidade! – Completou outra.
Mara desejou olhar, mas estava de costas, sem saber o que realmente estava acontecendo. Preferiu esperar que alguém lhe dissesse o motivo, ou ao término do recreio então ela se levantaria e veria o que estava causando tamanho alvoroço entre as moças. Mara ficou ali apenas ouvindo; elas insistentemente olhavam, esperando serem vistas, e conversavam entre si dizendo:
– De onde será que ele veio?
– Não sei, mas que vou descobrir, ahhh vou!
Mara entendeu que falavam de um rapaz novo na escola.– Ele não é lindo?
– Meu Deus, lindo é pouco!
– Olha o cabelo negro encaracolado! – Exclamou outra.
– Olha o rosto, que boca, é perfeito! – Concluiu outra.
– Mas parece muito sério, ou tem namorada, ou ainda não percebeu que estamos olhando!
Mara ficou imaginando como seria o rapaz, mas depois pensou, besteira, essas meninas se encantam com todos os rapazes novos na escola, depois perdem o interesse. Estavam assim quando o sinal tocou, avisando que o intervalo do recreio ter minara, até que Mara levantou-se lentamente e se virou. Nisso, levou um choque que lhe estremeceu todo o corpo; as pernas falsearam, por pouco ela não caiu, e um arrepio percorreu sua espinha. Seus olhares se encontraram, realmente ele era lindo, mas não foi isto que a surpreendeu. Parecia que o mundo não existia ao seu redor, apenas os dois e nada mais. Depois de um bom tempo, ele se virou e seguiu para sua classe, ela foi caminhando lentamente ainda impactada com a situação, não conseguia pensar em nada. Nas próximas aulas, ela via os professores na frente da classe, mas não conseguia entender o que eles falavam, ela estava em meio a um turbilhão de emoções, estava estranha, nunca sentira aquilo. Com extrema dificuldade terminou as aulas, recolheu seus materiais da carteira e saiu seguindo as meninas, os passos eram lentos, a cabeça estava distante no trajeto para casa. Não fosse uma de suas amigas, ela teria sido atropelada; sem perceber que o sinal ainda estava fechado, ela entrou na pista, um carro vindo em alta velocidade buzinou e sua amiga a puxou pela blusa de volta para o meio fio. Só ai perceberam que ela estava desligada e algumas amigas perguntaram o que estava acontecendo, mas Mara só respondeu que estava tudo bem.
Em casa, quando estava ajudando nos afazeres domésticos, sua mãe também percebeu que ela estava desligada, mas apenas se limitou a perguntar:
– O que é isto, menina? Parece que está no mundo da lua! A noite ela passou em claro, deitada de costas, olhando o
teto, de vez em quando seu rosto se movia em um pequeno sorriso, no fundo ela não sabia se ria ou chorava, ela apenas sentia aquela estranha nostalgia.
Pela manhã, sem que ela tenha pregado os olhos um minuto só que seja, o relógio despertador disparou, indicando que era o momento de se levantar. Ela foi até o banheiro para sua higiene pessoal, voltou ao seu quarto, vestiu seu uniforme escolar, sua mãe a chamou para o café da manhã e ela rumou para a escola. Tudo parecia normal para as pessoas, mas para ela tudo estava estranho. No intervalo do recreio, ela sentou-se na mesma mureta, ficando novamente rodeada pelas mesmas amigas, as conversas giravam em torno do rapaz. Mara apenas ouvia calada, e uma amiga brincou com ela dizendo:
– Ei, Mara, você não diz nada? Até parece que não gosta de garotos!
- Deixe-a em paz, um dia ela ainda vai nos passar para trás! Retrucou outra amiga.
Voltaram às aulas, ao término foram juntas novamente para casa; isso durante toda a semana. Mas na sexta-feira, ao término das aulas, Mara saiu como de costume seguindo suas amigas, desceram as escadarias, chegando ao pátio, começaram a atravessá-lo em direção ao portão, quando uma das meninas que estavam á frente disse entre os dentes:
– Ei, meninas, se preparem, porque o galã está no portão, e parece que está esperando para falar com alguém do nosso grupo!
Mara nem se importou com isso, e elas continuaram cami-nhando. Próximo ao portão, voluntariamente formou-se uma fila indiana tendo Mara na última posição. Foram passando pelo portão, com o rapaz ao lado, e quando Mara foi passar ele esten-deu o braço, bloqueando a passagem. Quando ela parou e olhou, ele automaticamente abaixou o braço, e disse:
– Posso falar com você um minuto?
Como ele já havia abaixado o braço, ela percebeu que ele não estava forçando uma situação, fez aquele gesto apenas para lhe chamar a atenção, separando-a das demais amigas, mas deixando-a livre caso ela não aceitasse um diálogo, pois a passagem estava aberta novamente. Pensou por um momento então disse:¶¶– Tudo bem!
Então ele perguntou se ela aceitaria que ele a acompanhasse até a sua residência. Como ele não estava se impondo, mas apenas pedindo, ela resolveu aceitar. Seguiram caminhando lado a lado, ele começou um diálogo dizendo o seu nome, Alfredo, o bairro que morava antes, a escola que estudava; que seus pais precisaram se mudar, porque a casa que moravam era alugada, e o proprietário pediu que eles a desocupassem para um filho que iria se casar. Na procura por uma nova casa não encontraram no mesmo bairro, encontram esta que eles haviam alugado, por isso ele precisou mudar de escola; também falou que às vezes fazia um bico nos finais de semana servindo em um Bar-lanchonete. Assim, chegaram à casa de Mara, quando ele apenas se despediu seguiu o seu caminho, sendo acompanhado pelo olhar de Mara; ele foi ficando cada vez menor, até sumir à distância.
Mara ajudou a mãe com as tarefas caseira, agora havia um misto de alegria no seu coração, e a canseira pelas noites passadas às claras chegou; então ela foi dormir cedo, não viu seu pai chegar. A noite passou em um segundo, ela apenas acordou quando o despertador começou a tocar, arrumou-se e seguiu para a escola. Quando chegou, suas amigas estavam em um grupo do lado de fora a esperando; mal ela se aproximara e elas a rodearam com dezenas de perguntas. Mara as respondeu com sinceridade, mas a maioria não acreditou, pensavam que ela estava blefando, a maioria dos moços já iam perguntando se elas tinham namorado; se queriam ficar e estas coisas, agora este moço parecia demais equilibrado, procurando fazer amizade,falando de si sem perguntar nada, estava muito estranho. Quando soou a sirene após a ultima aula, Mara seguiu suasamigas como de costume. Atravessava o pátio quando alguém disse:
Mara não dormiu, pensando em Alfredo, em como poderia avisá-lo de sua ausência na escola; por fim chegou à conclusão que não tinha outra saída, principalmente porque ela sairia bem cedo, viajaria no mesmo circular com sua mãe e seu pai. O jeito era esperar que Alfredo, ao perceber sua falta, apenas esperasse a sua volta à escola no dia seguinte. Caso ele viesse à sua casa, ela tentaria explicar para a mãe que eram apenas amigos do mesmo grupo de trabalho escolares. Mesmo assim o sono não veio, até que sua mãe a chamou na porta do quarto, dizendo que se levantasse e se aprontasse para saírem.Ainda estava muito escuro, ao ponto de não se ver outra pessoa. Próximo na calçada, seu pai co
Saíram do hospital em direção ao ponto de ônibus de volta para casa, em silêncio, elas pareciam que estavam indo ao velório de um parente próximo. Mara estava chocada, não acreditava; o circular passava rua por rua, praça por praça, cada vez se aproximando mais de casa. Por um lado, Mara estava alegre, desejava muito ver Alfredo. Depois de uma viagem longa chegaram, já estava entardecendo, a terra deixava escapar os últimos raios solares vermelhos alaranjados no poente, semelhante a um animal feroz que vai engolindo um pássaro e ficam faltando apenas as últimas penas das asas.Elas entraram em casa, Mara foi direto ao seu quarto, ela não sentia fome; além do mais, teriam que conversar com seu pai, o que não era tarefa fácil. Ela preferiu deixar para sua mãe, que tinha um jeitinho especial para essa
Depois do almoço, Mara ajudou sua mãe nas tarefas domésticas. Por fim foi para seu quarto, o sono veio, ela não viu seu pai, acordou apenas de manhã para ir à escola.Na escola ela não viu Alfredo na entrada, certo temor começou a tomar conta de si, mas ela pensou, bobagem, ele pode ter se atrasado e entrará na segunda aula. Ela estava ansiosa pelo horário do recreio quando eles se encontrariam, mas no intervalo do recreio ela não o encontrou em parte alguma. Perguntou a alguns alunos da classe de Alfredo, e eles informaram que ele havia faltado.As últimas aulas foram um tormento, ela via os professores à frente da classe, mas não os ouvia, e o horário parecia uma eternidade, as horas não passavam, seu pensamento vagava. Por fim a sirene tocou anunciando o fim das aulas naquele pe
Mara sentia o vento agradável no rosto fazendo seus cabelos passarem dos ombros para as costas, às vezes o sentia forçar o guidão para fazer uma curva à direita ou à esquerda, e ouvia durante todo o trajeto ele assobiar uma canção que ela nunca soube a letra, talvez uma canção da época de sua juventude. Primeira parada, como um ritual, a sorveteria, depois de descerem e se aproximarem do balcão, ele dizia para ela escolher quantas bolas de massa e o sabor do sorvete. Ele escolhia o seu e ambos sentavam-se em cadeiras plásticas brancas do lado de fora sob uma cobertura metálica, onde podiam ver o movimento na rua. Quando terminavam, ele sempre a orientava a não dizer nada para sua mãe a respeito do sorvete, Dona Abigail não aprovava que Sr. José desse sorvete a Mara; ela afirmava que esse era o motivo de Mara estar às vezes gripada. Montava-se novamente na bicicleta e a próxima parada era o supermercado, e, com algumas sacolas pl
Cautelosa, Abigail ia aos poucos tecendo um sábio diálogo, era como suas costuras na máquina, ela começava costurando as beiradas dos tecidos e por fim formava-se uma bela peça de roupa, e ela esperava com aqueles comentários amenizar o choque que José sofreria ao saber da novidade, pois ele amava demais a filha única e era capaz de fazer o impossível para ver o sorriso espontâneo no rosto de sua amada Mara. Depois de muitos rodeios, Abigail disse:– José, sabe aqueles exames que eu levei Mara para fazer? José se impacientou, moveu-se rápido no sofá e instantaneamente indagou:
Já eram altas horas quando ela, ainda acordada, ouviu o barulho dele chegando. Sua mãe foi recepcioná-lo na porta da sala, carinhosamente mostrando preocupação e o indagando sobre o horário, porém ele se limitou a dizer asperamente que estava chegando naquele horário porque esperava que todos estivessem dormindo. Ele novamente deixou claro que não desejava de maneira alguma ver Mara novamente, e aproveitou para indagar a mãe sobre quando Mara desocuparia a casa. Elas novamente passaram a noite em claro, e, pela manhã antes que ele fosse ao trabalho, Mara ouviu seu pai indagar asperamente sua mãe se Mara sairia da casa naquele dia. Sua mãe tentou dialogar sobre a dificuldade do moço que fora a São Paulo procurar um emprego, mas Sr. José não permitiu que Abigail terminasse a exposição, cortando-a asperamente com um grito, coisa que ele nunca fizera em toda vida de casado, bradou dizendo:
Sua mãe não esperou mais que um segundo, saiu novamente pela porta da sala para a calçada, esperou Mara fazer o mesmo, já trancando a porta por fora e saindo em passos rápidos, seguida de perto por Mara. Muito rápido chegaram e pararam no ponto de ônibus do bairro; não houve diálogo até entrarem no circular, passarem pela catraca que estava sendo vigiada por um cobrador obeso, de cabelo encaracolado negro e um espesso bigode, vestido com o uniforme da empresa, que só fez um pequeno gesto de simpatia após o recebimento do dinheiro referente às duas passagens. Mara percebeu sua mãe procurando assento bem ao fundo no circular, com certeza ela esperava aproveitar o tempo sentadas inertes durante a viagem para lhe explicar o que estava acontecendo.