Capítulo 3

— Autorizou a professora trazer a menina dela, é!? — Lora murmura enquanto parecia procurar alguma coisa na mesa do escritório.

Eu estava jogado no sofá esperando o Simas e o Pedro para fazer as compras do mês para a dona Silvéria lá no mercadão. O sábado estava delicioso, eram oito horas da manhã então depois que eu voltasse de lá pretendia passar o dia tomando banho de mar, a tarde na rede, me deliciar com a comida boa de dona Silvéria, um amansa-corno fresquinho, — uma cachaça —, e após isso... dormir como um bebê para acordar cedo no domingo.

Tirávamos a sexta-feira para aumentar um pouco a pesca devido ao fato de que o mercadão sempre lotava nos finais de semana, e com isso, eu dava o sábado para os parceiros — e eu, claro. — descansarmos... mesmo que às vezes não fazíamos isso e trabalhávamos normalmente no sábado. Dependia muito de nossa exaustão durante a semana. Achava mais saudável desse modo. A época em que nós nos matávamos de trabalhar era no tempo que em que a gente precisava de mais uma traineira, e na época em que o meu barco explodiu, mas tirando aquelas necessidades especiais, trabalhávamos de boa, com sustentabilidade e segurança.

— Autorizei, é só uma menina, que mal fará!? — resmungo após bocejar.

— Começa assim, primeiro uma simples criança inocente, depois Maceió inteira. Regra é regra Inácio. E tem mais, sei que ela está louquinha por você, quer te ganhar com a vontade de ser pai...

— E se for? Sou solteiro, livre... e no mais foi eu quem convidou a menina, como ela poderia usar isso para me ganhar!? Agora, e você? Cuidou dos seus afazeres? Aposto que não...

— Estou em dia com meus afazeres, e você? Está também ou só perdendo tempo paquerando a professora das crianças? Você anda bastante atarefado...

— Todo trabalhador merece um descanso e uma linda mulher ao seu lado para relaxar, e não me excluo disso. Aliás, faz um bom tempo que eu não mato o verme, pensei melhor. Nós dois somos livres e desimpedidos, vou dar uma chance para a professora, vou tirar o atraso e ainda emplacar um romance. — eu digo, ela chega a espumar, mas depois decide fazer o favor de retirar para me dar paz.

— Dona Silvéria disse que quer um punhado de camarão rosa, vai fazer uma moqueca hoje. Já estou faminto, minha barriga roncou só de ela falar. — Simas me entrega a lista de compras de quase um metro. Alimentar uma vila inteira não era brincadeira não, era carga pesada. — Ela não colocou na lista porque esqueceu, mas já estou te falando agora, então... vê se não esquece, porque eu com certeza vou!

Ele fala, eu bufo com sua folga por saber que ia se enfiar no seu Tião e não sair nunca mais, e vejo Pedro já se pendurando na traineira como um rato. Era ele o “rato do navio”, toda embarcação tinha um, na nossa era ele.

— O filho de uma boa mãe nem ‘bom dia’ me deu! — eu murmuro e Simas ri.

— Ele está triste.

— Oxe, por quê?

— Levou uma pisa da dona Silvéria por não ter ido ao jantar duas vezes, não quer saber de comer.

— O que você tem? — falo com o ratinho quando subo no barco e ele dá de ombros, mas depois responde que “era uma desilusão amorosa”, o que faz Simas rir.

Eu não dou risada e nem zombo. Pedro era ‘bonitão’ e tinha potencial, tinha certeza que mais dia ou menos dia o pescador simpático, assim como Simas, o rabugento, conseguiria um mulherão para chamar de sua.

— Eu não sei o que vocês acham, mas eu acho que hoje está um dia lindo para as compras. O pintado do seu Divino está de lamber os beiços. — Ellen chega correndo com três cervejas assim que a gente pisa no deck. — Se eu fosse vocês, daria uma passada lá. — ela diz colocando uma cerveja em cada mão e pisca pro Pedro que retribui seu gesto de carinho com um beijinho no alto de sua cabeça.

Ellen adorava o Pedro, aliás, os dois se adoravam. Ela olhava pra ele e o entendia como ninguém, às vezes nenhum dos dois falavam, só riam um pro outro se comunicando. Era linda a amizade dos dois.

— Aquele seu pai tem sorte em ter uma filha espertinha e tão boa com propaganda. — Simas ri balançando a cabeça da garota e ela confirma.

— Se vocês passarem lá e disserem que estão comprando ‘por causa da Ellen’ vão ganhar desconto e permanecerem na lista de ‘pescadores mais amados da Ellen’ porque com isso, ele ficará feliz e me deixará ir pro forró hoje à noite. — ela fala com sua familiar pressa arrastando as palavras e Pedro faz uma careta. — Ah! Deixe disso, eu já sou bem grandinha. — ela responde e Pedro nega.

— Nós passaremos lá, pode deixar. — eu garanto e ela e dá pulinhos. — Tem novidades por aqui?

— Não. Tudo tranquilo! — ela diz já sabendo sobre o que eu perguntava e respiro aliviado.

Sabia que aquela loira folgada logo voltaria, então hoje era mais um dia para comemorar. Pelo menos hoje eu não ficaria com dor de cabeça por bater boca com mais um urubu querendo tomar minha casa e derrubar mil campos de futebol em árvores antigas por causa de dinheiro.

(...)

A gritaria padronizada, o clima familiar e mais o cheiro bom dos pescados, legumes e temperos davam um estilo único para o mercadão de Alagoas. Nem precisava sair do estado — aliás, nunca saí. —, para saber que aquele lugar era especial e único. Eu amava a minha vida, amava meu trabalho, amava minha rotina, e tirando a ilha, aquele mercadão era minha paixão, meu xodó... conhecia todo mundo, todos os mercadores, comerciantes, e noventa por cento da clientela que não era turista.

— Vou ali e já volto. — Simas murmura jogando a garrafinha de cerveja vazia no lixo e Pedro e eu nos entreolhamos.

Ele me encara entortando a boca e eu nego.

— Deixe. Deixe ele beber, cada um acalma as dores como pode, e Simas é adulto, cuida da própria vida. — eu resmungo e Pedro confirma.

Confirma, mas fica preocupado com o amigo. Pedro sempre se preocupava e se compadecia conosco, o sentimental. E claro, a aldeia inteira amava Pedro por isso e muito mais. Aquele mudinho que mais se comunicava era especial.

— Êh! Pescador... bora levar uma sardinha hoje??? — seu Lourival grita zombando e eu nego.

— Acho que é esperado eu te dizer que não aguento ver sardinha, certo!? Já não basta ‘todos os dias’, hoje não dá. — eu brinco e ele ri alto.

Mas brinco mesmo, eu não tinha graça com comida, se tinha sardinha, eu comia sardinha, só não comprei porque dona Silvéria não pediu. E no mais, o fato era cômico. Nós que vendíamos as sardinhas para o velho engraçado então todas às vezes que comprávamos de volta, a visita era sempre regada de piadas do início ao fim. Ele até fazia uma sardinha ou outra começar a falar e a me reconhecer como “seu senhor da morte” em busca de vingança. Cada visita em sua barraca era uma história diferente.

Pego um carrinho que o mercadão disponibiliza, começo a comprar tudo com Pedro, e algumas horas depois ele sai na frente levando as compras com o auxílio do carrinho, assim que terminamos. Decido ir buscar Simas e quando adentro o bar, fico feliz por vê-lo interagir com uma bela moça. Muito apetrechada, aliás, tipo, bela demais e aparentemente nova demais pra ele, não que idade importasse, mas mesmo assim, sorrio feliz e já ia me virando pra deixá-lo ‘de boa’, até que o olhar de seu Tião lá atrás me chama a atenção.

Ele esfrega a gola da camisa com a mão querendo dizer “roubada” como fazia em todas às vezes que chegava um crocodilo lá querendo saber informações da ilha.

Não era possível. Aquilo não podia estar acontecendo.

— Ah! Nácio! Venha! Venha cá! — Simas aparentemente um pouco alterado, sabia disso só porque parecia extremamente feliz, ele ficava felizão quando bebia. E por isso ele bebia. “Felicidade instantânea na garrafa”. Ele chama com a mão e acaba me puxando pela blusa quando vê que eu travo no caminho.

— Aqui! Esse é meu parceiro, meu amigo de longa data, é dele que eu tô falando... — Simas vai falando com a moça e ela só me encarava.

Era nova, aparentava no máximo uns dezoito, talvez. Bonita, magra, mas com curvas acentuadas, cabelos castanhos abaixo dos seios... Um desperdício por supostamente ser mais um crocodilo.

— Prazer, Júlia! — ela sorri estendendo a mão, mas ignoro, sua presença acabou com meus planos de “dia feliz”, eu já estava bravo.

— Júlia Monteiro!?

— Olha! Ele decorou o meu nome. — ela finge ficar impressionada e sorri um sorriso de tirar o fôlego, se não fosse pela sua falsidade, era um sorriso arrebatador. Era um crocodilo-fêmea maravilhosa, muito gostosa a diaba.

— Eu decoro o nome de todas as cobras que tenta me picar e tomar meu território. — eu falo, Simas se cala e passa a nos olhar de um para o outro, meio grogue, meio sem entender, tava bebinho.

— Eu não vim aqui para isso. — ela esconde os dentes e agora seu sorriso era tipo da Monalisa, daquele quadro...

— Veio, veio sim! Mas assim como falei pra galega esquentadinha vou repetir pra tu: minha resposta é NÃO! E vá para a baixa da égua!

— Valha! Que jeito é esse de tratar uma dama??? Nem parece você!!!

Com meu ataque grosseiro Simas até se recupera da bebedeira. E apesar de eu ter falado baixo, fui sim, bem grosso. Queria o quê?

— Ela não é uma dama, não. Lembra da loira folgada naquele dia? — eu pergunto e ele balança a cabeça. — Essa aí é a tal chefe dela. Mandei a outra pastar e essa aí veio no lugar. Outra boçal! Vamos embora! — eu toco em seu braço e Simas se afasta.

— Mas que conversa é essa? Essa menina é uma guria. Nem saiu das fraldas, homem, deixe disso! Trate a menina direito. O que ela vai falar de nós lá em São Paulo? — ele questiona e depois sorri. — Ela veio pra passear, não foi!?

— Foi, e eu tenho vinte e oito, fiquei lisonjeada por me achar tão nova. — ela sorri pra Simas toda amorosa e ele fica babando. — Mas seu parceiro pescador, grosseirão e ignorante, tem razão. A Anália é minha funcionária! — ela simplesmente diz a verdade e Pedro não se importa. E nem se importa com as suas ofensas direcionadas á mim. Traidor!!!

— Mas tão nova assim já tem um negócio???

— Acha que vinte e oito não é nada, é!? — ela gargalha parecendo se divertir e dando sua atenção total a ele enquanto eu rosnava por dentro.

— Não. Não é que seja ‘nada’, mas tu nem viu nada da vida ainda. É linda, jovem demais...

— Eu agradeço, Simas, mas sinceramente, às vezes me acho uma velha gagá. Mais porque não tenho a cabeça que têm a maioria das mulheres de minha idade...

— Ok. O papo parece bem bom, mas eu estou indo. Se for ficar, vai pegar carona com algum pescador, Pedro e eu estamos indo! — eu falo e ele dá de ombros, me retiro puto da vida e obviamente ela deixa Simas esperando para me abordar.

— Isso tudo é medo?

— Como é que é? — eu me viro e ela sorri. Como era bonita a diaba, era uma princesa linda.

— Você e eu sabemos que não terei uma pedra da ilha sem seu consentimento então por que toda essa agressividade? Por que tratar as pessoas de forma tão ignorante???

— ‘Pessoas’? Vocês são ‘pessoas’? Tô sabendo disso não. Sabe o que vocês são???

— O quê? — ela sorri e inclina a cabeça demonstrando estar curiosa.

— Urubus! Ficam rodeando a minha casa como se ela fosse carniça. E sabe quando você e toda aquela gente da tua laia conseguirão esse feito?

— Quando???

— Nunca!

— Ok. Então você pode relaxar, certo!? — ela se aproxima e eu dou um passo para trás.

— Me deixe em paz. Já falei para a tua “funcionária” e vou falar pra você. Fiquem longe de mim! De mim e de minha casa!

— Você fede á peixe, sabia!? — ela diz voltando a se aproximar e fica fungando fingindo me cheirar. — Sabe o que eu faço com peixe? Eu engulo com espinhas e tudo!!! — ela ameaça, deixando cair sua máscara. Que provocação ridícula! Quem engole espinhas???

— E tu achas que urubu fede a quê? Acha que passando um tanto desse de perfume caro, funciona? Sinto daqui seu cheiro de carniça! — eu falo, ela hesita, mas depois retoma a pose de durona.

Conhecendo as pessoas como eu conhecia, já podia ver. Aquela mulher bonita e cheia de postura era uma das mulheres mais frágeis que já apareceram na minha frente. A dondoca era literalmente um cristal.

— Nácio, meu pai mandou você assinar esse termo novo do mercadão aqui... é pra você assinalar em cada tópico porque a administração do mercadão vai começar a exigir vistos, algo assim, não entendi direito. — Ellen se aproxima de mim no corredor, fala comigo me oferecendo o papel, mas fuzilava a patricinha na minha frente assim como eu. Ela já havia percebido que era mais um urubu me atazanando também.

— O que é... onde é isso...? — peço instrução a Ellen e enquanto ela ia me mostrando com o dedo e me explicando o que cada coisa significava, como sempre fazia, o urubu franziu o cenho por um momento, mas depois pareceu segurar algumas risadas de mim, acho que por notar que eu não sabia ler direito.

(eu só sabia reconhecer o meu nome, os dizeres “mercadão de Alagoas”, a palavra “amor” por causa dos recadinhos e cartinhas de Lora, — cartas essas que ela mesma escrevia e lia para mim. — e a palavra “Ana”.)

Não, eu não tive escola. Por algum motivo minha mãe não mandou meu irmão e eu para a escola e... crescemos deixando aquilo de lado. Nós queríamos saber do mar e dona Silvéria nos mimava. Enquanto as outras crianças iam estudar, ficávamos no mar. Eu sabia que ela só fazia isso por pena, era triste por termos “uma história de vida banhada na tristeza”. Sabia que ela estava errada, mas só entendi aquilo tudo quando cresci, claro.

— Eu já vou, se precisar grite, meu pai vem com o facão. — ela murmura, sorrimos um para o outro, e volto a fechar a cara quando ela se vai.

— Sério? Não sabe nem ler?

— Isso eu posso consertar se eu quiser, mas sua falta de caráter, como fica? Só fique longe de mim, não vou repetir. — eu digo simplesmente, ela deixa transparecer sua carranca traiçoeira no lugar da zombeteira, e eu sigo para o barco sentindo aquele ódio dentro de mim. Uma gastura sem tamanho!

— Nada, não foi nada. — resmungo para Pedro que me olhava fazendo perguntas, e entro na cabine para ligar a traineira. — Ele fica. Está bem ocupado. — eu digo quando ele se desespera e questiona sobre “como Simas chegaria até a ilha”. — Ele que se vire, não quis ficar!? Vai de carona. — eu respondo impaciente e ele “me faz” olhar em volta. — Terá, terá alguém, têm os barqueiros de transporte, os amigos, ele tem o mercadão inteiro para ajudar, vão conseguir um barco para carregá-lo. Se quiser ficar com ele, eu volto.

Digo porque já havia partido, e ele nega entristecido fitando o porto pelo vidro da cabine.

Obviamente aquilo não parecia certo, e não era. Mas eu estava muito enfurecido, puto demais, então era bem melhor que eu ficasse longe de Simas naquele momento.

Eu era um cara que cresceu no meio do mato, no meio da natureza, e estava cansado, tipo muito cansado de ver tantas famílias ilhadas baterem em retirada por causa dos engravatados do asfalto. Até alguns anos atrás, Alagoas era repleta de comunidades instaladas em ilhas, e com o crescimento dessa maldição, o povo em massa era jogados na capital com uns trocados nos bolsos. Algumas comunidades simplesmente ficavam extasiados com “tudo aquilo de dinheiro” que não era nada, abria mão de suas residências, e simplesmente partiam para a vida na cidade, e não, não tinha nada contra a escolha de cada vizinho meu, não, o problema era o depois. Ilha após ilha desmatada, virando empresas grandiosas, o verde se perdendo no meio cinza, metade do povo passando fome na cidade grande e eu... eu achava aquilo triste.

O vai-e-vem de pessoas, desmatamento, matança de bichos “perigosos” para os clientes, lixo, lixo, lixo, dejetos pesados direto no mar... era triste. Nunca que eu conseguiria engolir aquilo. E tudo pela merda do dinheiro, o ser humano nunca ficava satisfeito, estava sempre querendo mais, nunca era o suficiente, e para conseguir, sempre poluía, matava, roubava, se vendia... eu jamais seria esse tipo de pessoa, eu tinha tudo o que precisava e protegia aquele lugar, aqueles moradores que mesmo com pouco também eram felizes, e eu dava o máximo de mim também, mas o máximo de mim pelo bem, e para o bem.

Inconscientemente “me via” doente, ou sei lá, impossibilitado de protegê-los, um deles, — Simas provavelmente. — aceitando uma proposta por não poder contar comigo, todos recebendo uma miséria, as tralhas chegando, toda a natureza padecendo, o povoado indo direto para a capital... fico péssimo só de cogitar a possibilidade. Ali éramos uma família, a ilha era nossa casa, éramos felizes, e eu tinha certeza que todos pensavam do mesmo modo. Claro que menos Cristiano, mas ninguém mais queria aquilo ali.

— Cadê o...

— Ajude com as compras e não me foda com perguntas, entendeste?! — eu sempre tentava não ser escroto com aquela mulher, mas ela não ajudava. Sempre aparecia para me aperrear na hora errada.

Pego um punhado das sacolas nas mãos e me afasto ouvindo seus questionamentos baixos para com Pedro.

— Trouxe tudo? — dona Silvéria pergunta enquanto eu coloco tudo em sua mesa reforçada. Mesa essa que eu construí do zero pra presenteá-la.

— Trouxe tudo o que a senhora escreveu no papel, ora essa!

— Tá chapado? Isso é jeito de falar?

— Desculpe. Eu não estou bem, desculpe velha. — eu a abraço e ela me corresponde dando risada.

— O que Lorinha fez?

— Dessa vez nada. É outro urubu. Me encontrei com uma diaba lá no Porto. Te contaram que foi uma executiva me procurar lá, esses dias???

— Sim.

— Então, aquela era só o “corpo”... a “cabeça” é a que foi me procurar lá hoje.

— O mesmo papo de comprar a ilha?

— Sim!!! Não aguento mais!

— Meu filho... a gente precisa conversar... — ela parece aflita, e angustiada. Eu sabia qual era o assunto.

— Sobre o que? Hum? Sobre o fato daquele inútil estar vivo?

— Você sabe. Eu sabia que um dia ia descobrir. Quem te contou?

— Foi fácil, muito fácil. Eu fui até a prefeitura quando aquele primeiro urubu veio me sondando no porto. Fui procurar saber de que jeito eu podia defender a vila e a população, e a doida da recepcionista afirmou que eu não precisava me preocupar com compra e venda de lotes porque a ilha era propriedade privada e que seria herança de pai para filhos. Perguntei que “diacho de filhos” e ela citou meu nome e o nome de Cristiano. Não era a Carla que estava lá, era aquela novata que cobriu as férias dela, nem me conhecia. Soltou tudo sem saber que era eu. Quando eu disse que meu pai havia morrido ela riu da minha cara e depois foi murchando... notou que não deveria ter falado. O desgraçado é amigo íntimo do prefeito, do governador... é influente. Foi pedindo desculpas e me implorando pra não fazer escândalo e eu prometi que não faria se ela me contasse tudo o que sabia, e ela sabia de muita coisa, tinha tudo lá, uma papelada sem tamanho. Foi jogando a bosta no ventilador e soltando tudo. Me contou que eu tinha autorização para vender partes para fazer dinheiro, principalmente se eu e o Cris dependêssemos disso, que era um direito meu e do Cristiano, mas que eu tinha uma porcentagem sei lá do quê e só teria pleno controle quando o filho de uma égua morresse!!! — eu vou falando e andando pra lá e pra cá tentando não pirar. — Ah! tia, se a senhora soubesse o que eu senti! Eu só não larguei tudo e sumi mar afora porque eu amo esse lugar, é a minha casa, mas vontade eu tive, viu! Pensei seriamente, não queria contato com nada que fosse dele!!!

— E por que... você... não está bravo comigo? Ou está!?

— Tô não. — eu digo e seus olhos brilham. — A senhora me deu de comer de moleque até ontem, até hoje, e me criou desde que ela se foi. Jamais ficaria, teve seus motivos, e nem quero saber. Meu problema é com ele, mas continuará sendo só um problema que eu não faço questão de resolver enquanto ele ficar longe. Ficando longe de mim, está bom!!!

Eu falo, me sento na cadeira e ela repete meu gesto.

— Mas se você sabe disso, se sabe que a ilha está protegida por ser tua por direito, por que esse desespero???

— Fico cansado. Fico muito cansado dessas investidas, essa gente ruim, tia, chegando perto de mim, querendo desgraçar minha casa, fico possesso!!! Por que não vão caçar o que fazer em outra freguesia? Por que querem tanto essa ilha? Por que não nos deixam em paz? Quantas vezes vou ter que explicar que ela não está a venda? — questiono chateado, ela lamenta, e Pedro e Lora entram com o restante das sacolas na cozinha.

Finalizo o papo com o olhar e ela assente silenciosa.

Ninguém precisava saber que “a ilha era minha”, a ilha era de todos, era morada de todos, não queria saber daquele papo. Pro inferno com aquilo!

— Posso ir com o Pedro buscar o Simas? — Lora pergunta com a voz controlada. Falava daquela forma sempre que eu estava prestes a estourar.

— Já disse a ele. — encaro um Pedro triste. — Simas está bem, não quis vir na hora certa, virá de carona. Quantas vezes isso aconteceu!? Ele é barbado, tem pêlo até no ouvido, sabe se virar. Vá os dois cuidarem da própria vida, e não me amolem não, diacho!!! — eu tento não levantar a voz, não funciona, ela sai brava como sempre, e eu rosno.

— O que houve com ele? — dona Silvéria pergunta quando ela sai.

— Simas não nos ajudou com as compras, bateu aquela depressão de sempre e foi direto pro seu Tião. Quando Pedro foi levar tudo de volta pro barco eu fui chamá-lo para partimos, e então eu vi que ele estava conversando com a cobra, se bandeando. Estava caidinho na manguaça. Achei que era uma paquera, e já ia virando as costas para esperá-lo no barco, mas seu Tião me avisou de longe que era um urubu, ele me avisa sempre. Tentei carregá-lo, mas não deixou, a cobra já devia estar lá quando chegou, deixou o velho todo encantado. Fez a linha ‘sereia’ pra conquistar o pescador, possivelmente arrancar informações da ilha, mas depois que eu saí foi atrás de mim me ameaçar dizendo que engolia peixe com espinha e tudo! Sorte que eu não engoli o veneno, é outra jararaca! — falo com raiva, os dois riem de meu modo de falar e eu os ignoro.

— Qual o nome dela?

— Júlia! E é bonita a mulher, hein!? Só não presta, é metida á besta, um desperdício. Igual essa aí. — jogo a cabeça em direção a porta por onde a outra jararaca passou.

— Sei. — dona Silvéria ri se divertindo e eu fico mais puto com aquilo.

— Valha!!! — me levanto para fugir do risinho irônico dos dois, mas ouço gritos de longe, era o pequeno Panqueca, filho do Tico, eu reconhecia aquele grito agudo de longe. Meu espião particular oficial.

— OH TIOOO!

Ele entra correndo na cozinha e se apoia na mesa tentando recuperar o fôlego.

— O que foi???

— Tem uma embarcação prestes a ancorar na ilha!!! É do cara mau!

— Plínio. — eu encaro dona Silvéria e ela lamenta fechando os olhos brevemente, já previa o caos assim como eu.

Me apresso para chegar no pequeno acesso onde tínhamos um cais rodeado por rochedos, me aproximo com Pedro na minha cola, e vejo que a situação era pior do que eu imaginava. Plínio, o pescador proibido ‘número um’ de colocar seus pés sujos na ilha não viera causar problemas sozinho. Ele tinha ‘feito o favor’ de trazer o Simas, e de brinde a jararaca.

— Mas que diabo é isso? — ele pula do barco carregando uma mala, oferece as mãos para a mulher, e sorri de forma maligna pra mim.

— Bom dia, Inácio. Como você está? Espero que bem. Vim apenas fazer o serviço pelo qual fui pago, trazer o bebum, e essa linda donzela porque simplesmente não conseguiram ninguém para o serviço.

— Com certeza tiveram bom senso, mas de você eu esperaria o quê, não é!? Sabe que não deve pisar aqui nunca mais, sabe muito bem disso e por isso ninguém aceitou, deixei avisado que ninguém deve vir aqui, ele que vinha á nado, ou esperava o horário do transporte de moradores, mas claro que você quis aceitar o “serviço”. Agradeço pelo Simas, mas essa mulher é outra que assim como você, não deveria ter tido a coragem de chegar perto dessa ilha. — eu digo, ele dá de ombros, e eu concordo. — Leve-a com você, desapareçam, e jamais pisem aqui novamente, não é um pedido.

— Eu vou ficar. Além de ter uma autorização especial para visitas, fui convidada pelo meu amigo Simas. Uma hospedagem rústica em Santa Clara! — ela fala, sorri irônica, e Simas invade meu espaço pessoal. De seus poros o cheiro de cana exalava forte. Ele sempre exagerava na cajuína de seu Tião.

— É, eu a convidei, ela é um amor. Está de férias, vai amar a ilha!!! — Simas balbucia e pisca para a mulher que retribui.

— Trazer pessoas aqui sem a devida autorização, resulta em banimento. — eu falo de modo ríspido e ele deixa seu sorriso morrer.

— A moça é confiável, é de minha confiança... poxa, meu irmão, a ilha é ‘nossa’ ou é ‘sua’? Confio na menina, é só uma menina, olha pra ela, que mal vai nos fazer!? Não estou entendendo você, está mais grosseiro do que deveria... está exagerando nessa obsessão por proteger esse lugar. Nós estamos bem, ela não veio fazer nenhum mal, não.

— Infringiu umas quarenta regras Simas e eu não confio mais em você. Quando estiver sóbrio, conversaremos, e você arcará com as consequências... — eu falo, ameaço a continuar, mas a “menina inocente” me interrompe.

— Eu só tinha o interesse de conhecer mesmo, antes de qualquer coisa, mesmo deixando claro, os meus propósitos a você, só que eu não vim para prejudicar ninguém. Eu quis acompanhar o Simas, e não fiz isso com maldade, eu não planejei. Não vou prejudicá-lo, eu vou voltar com o Plínio. — ela demonstra seus dotes de atriz que merece um Oscar e funciona.

— Não! Tu não vai não! É minha convidada. Inácio não manda aqui sozinho, somos um time, a comunidade tem voz, e eu posso trazer uma amiga para conhecer a ilha.

— Ela não é sua amiga.

— Ela... meu Deus...

— Ok. — eu digo simplesmente, ela sorri pra mim sem que ele veja, Plínio sorri mais ainda, e Pedro me encara se lamentando, mas obviamente se sentindo mal “por todo aquele clima ruim”. — Panqueca, corra de cabana em cabana, quero todos os moradores que votam na casa de dona Silvéria, é urgente! — eu peço pro pequenino, ele sai correndo e dali, por causa do silêncio, eu podia ouvi-lo se esguelando avisando todo mundo que “era hora da reunião da assembléia, reunião de extrema urgência”. Ele sempre fazia isso, era meu porta-voz ele dizia, e eu concordava porque era mesmo.

— Acho que você está surtando!

— Você ainda não me viu surtar, Simas. — eu respondo e passo por ele para encarar o traidor. — Você já fez seu serviço, hora de se m****r.

— Sempre tão educado...

— Quer sair por bem ou na base da pancada, seu merda? Sairá daqui com um quente e dois fervendo! — digo e ele levanta as mãos antes de pular pro barco. — Leve-o para um banho frio e faça dona Silvéria dar ‘aquele café’ pra ele tomar. — falo com Pedro, ele arrasta um Simas teimoso para a vila e eu vejo Lora se aproximar. — E você... vai ficar, mas sua estadia será curta, muito curta. Não esqueça que não é bem-vinda aqui! É uma intrusa! — eu digo e ela assente, dessa vez sem sorrir, o que muito me impressiona. — Que autorização é essa aí que você disse?

— Autorização direta das mãos do senhor Amorim, seu digníssimo pai. Sabia que ele está vivo? É bom que saiba, vivinho da Silva.

— Eu sei disso. — eu falo e ela fica claramente surpresa.

— Temia que soubesse somente quando ele “realmente morresse” e ninguém merece isso, nem você.

— Olha, a rainha da bondade e do cuidado... veio até a minha casa para me informar que o meu papai está me enganando, que coração bom ela tem. — eu finjo sorrir e ela ergue uma sobrancelha bem delineada. Era bonita demais a danada. Crendeuspai!

— Mais visitas, Inácio? — Lora mede a mulher da cabeça aos pés e eu afirmo.

— Eu autorizei que a filha da professora viesse para conhecer a ilha e brincar com as crianças e apenas ela. Simas que se achou no direito de colocar um urubu aqui usando o argumento de que a ilha não é só minha. Essa aí é a chefe daquela outra diaba. Está na hora de você ir pro escritório e arrumar um advogado que nos ajude a proibir a entrada de não moradores sejam eles quem for, mesmo que Simas surte achando que cobras são “amigas”, ou que o morto-vivo autorize visitas. Quero um documento registrado em cartório para deixar no meu bolso e usar sempre que eu precisar.

— Farei isso agora mesmo! — Lora garante fuzilando a forasteira, eu saio e ela me segue deixando a jararaca sozinha com a mala mão.

Não era do meu feitio maltratar as pessoas, mas eu não tinha escolha. Como agir naquela situação maldita???

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