Capítulo 2

— Como é que é? — baixo o tom de voz fazendo minha cadeira girar para ter uma “aparente” privacidade, e Anália continua tagarelando exasperada.

— Foi o que eu disse: sem chance, Júlia! Aquele cara não nos deixará nem chegar perto daquela ilha.

— Você nem foi até lá???

— Como eu poderia!? Não está me ouvindo? Ele nem me deixou falar, não quis trocar uma palavra. Só o que ele falava era que sua resposta era ‘não’, e nem meu nome ele conseguiu decorar, é um ignorante. Ele é mal educado, grosso, estúpido, e burro! Não hesitou nem quando eu disse que ele podia ficar rico. Depois que ele sumiu com o barco vieram uns trinta pescadores me abordar para perguntar a respeito da tal proposta de ficar rico...

— Espere, se interessaram, é!?

— Sim, oras, mas o que adianta? Precisamos é que o responsável pela ilha aceite, não os outros mortos de fome.

— Bom, mas alguém que possa nos ajudar você deve ter encontrado!

— E cadê a Celina??? Nada de notícias dela?

— Nada, ela sumiu. Se bandiou, não vai mais nos ajudar e devolveu o dinheiro tem meses, sabe disso, esquece ela. Precisamos de ajuda de alguém especial.

—Teve um cara querendo arrancar de mim mais informações... tinha cara de carrasco e tudo, daqueles que fazem qualquer coisa por um troco.

— Pegue o telefone desse cara. Procure por ele, e pelo... espera... — eu tiro o celular do ouvido e chamo atenção de Leandro, um de meus auxiliares. — Lê, quem nós temos na prefeitura de Alagoas, mesmo?

— O Felipe Antunes, aquele calvo do coquetel em Maceió que ficou tentando pegar seu número. — ele diz rindo e eu volto pro telefone.

— Escuta, depois que você conseguir o número do cara que você falou, vá até a prefeitura e faça um cheque. Quero todas as informações sobre esse Inácio, e uma autorização judicial para pisar naquela ilha, quero entrar lá nem que seja com a ajuda da justiça, procure por Felipe Antunes. Esse homem não pode tomar uma ilha pra si, a não ser que ele a tenha comprado, o que eu bem duvido, a ilha é legalmente de Alagoas, é bem natural, não tem dono, não tem que ter dono, isso não faz o menor sentido. Descubra tudo o que puder e volte pra gente ver o próximo passo.

— Ok. Tchau. — ela murmura e eu desligo.

— O que ela disse? — Laís, minha secretária e “faz tudo” se interessa e eu dou de ombros.

— Nada diferente do que eu já esperava. Esse cara tem um apego grande por aquela ilha. Para eu conseguir um pedaço dela, só descobrindo o porquê de sua obsessão maluca. Mandei um e-mail para o Pardal, ele vai me explicar até o onde o mala pode ir com essa obsessão. Tenho certeza que se não for propriedade privada, ele não pode impedir ninguém de entrar lá. Minha pousada será lá!

— E o que adianta entrar se ele jamais vai vender um hectare que seja?

— Ele pode até ser um durão ou um bom ator, mas todo mundo têm seus pontos fracos. Ele disse a Anália que “se eu tivesse coragem, eu mesma iria até lá, confrontá-lo”, me ameaçou e tudo... mal sabe ele que se eu chegar perto dele, ele vai rapidinho me doar uma parte daquela ilha, não vai nem vender, ele vai doar!

— Vai seduzi-lo...?

— Não, não. Seduzi-lo, não, mas algo bem pior, mais humilhante. Farei da vida daquele cara um inferno até ele me dar um pedaço daquela montanha de mato e mosquito. Vocês já viram o mapa? — eu pergunto, ambos negam, e eu bufo ao mostrar virando a tela do PC. — O pedaço de chão que eu preciso é medíocre perto de tudo o que vai sobrar pra ele enfiar o povo dele! A ilha é gigante! Um pouco mais de noventa e cinco mil metros quadrados e eu não estou pedindo nem um terço disso, muito pelo contrário. Eu não quero mais um resort, eu já tenho muitos. Tenho planos mais intimistas para aquela ilha, vi algumas fotos que me conseguiram de modo secreto porque nem no G****e existem registros, aquele paraíso merece algo mais familiar, natural, e sustentável, quero um diferencial... e se aquele pescador for esperto, vai ficar do meu lado pra sair ganhando nisso.

— Ele tem que ser muito burro para negar e ignorar o quão bem o turismo fará pela comunidade dele. — Leandro diz em apoio e eu concordo no ato.

— Bom, por agora vou almoçar. Continuem verificando essas planilhas, caso encontre o que estamos procurando, me liguem e já sabem: boca fechada para não entrar mosca e o contrato de trabalho encerrado, que é isso o que eu vou enfiar guela abaixo de vocês se esse assunto sair daqui. Quando eu voltar quero nomes, endereços, e tudo o mais...

Eu vou resmungando como uma rabugenta e me retiro após pegar minha bolsa. Só quando o elevador se fecha no trigésimo andar é que desmancho a pose. E só porque estava sozinha.

Quando as portas se abrem no térreo, volto a arrumar a postura, aceno para as meninas da recepção devolvendo o “boa tarde” e dirijo para casa.

Moro em um apartamento na Bela Vista, bairro próximo a sede paulistana da Mermaidy, de classe média alta e de duzentos e setenta metros quadrados. Era bem grande, confortável, e... frio, investi em muitos aquecedores e não me conformava com aquilo, por isso pensava nisso agora.

Assim que entro em casa a TV liga, o microondas começa a esquentar a marmita que eu havia colocado congelada lá dentro, de manhã, e mesmo ainda estando na sala, eu sabia que a banheira estava se enchendo. Magia? Não, apenas tecnologia. Eu programava esses eletrodomésticos para começarem a funcionar 12:30hrs, pois sempre saía da empresa meio-dia e era reconfortante encontrar tudo me esperando, para almoçar com TV ligada, tomar um banho relaxante, e voltar pra empresa. Era essa minha rotina e, além disso, achava que tudo aquilo me ajudava a me sentir menos sozinha.

E não, eu não estava solteira porque tinha traumas do passado, porque não tinha tempo para isso, porque meu coração fora despedaçado, ou qualquer coisa parecida com as características típicas dos livros de CEO’s que eu gostava de ler para passar o tempo de vez em quando... não, eu estava solteira porque não conseguia manter um relacionamento por mais de uma semana.

Eu era assumidamente insuportável, territorialista, ciumenta, aquariana diferentona, e por isso boy nenhum me aguentava. Jamais conseguia fazer o relacionamento evoluir. Aquilo era um desafio. O sexo modéstia à parte eu garantia, mas o depois... enfim, por via das dúvidas eu tinha o bob. Bob era bem grosso, cor-de-rosa, cheio de texturas em formato de bolinhas e uma pequena saliência atrás que acarinhava e invadia os dois pontos mágicos ao mesmo tempo, e quando as coisas ficavam críticas ele entrava em ação. E eu amava o Bob.

Assim que eu entro na banheira e fecho os olhos respirando fundo, me assusto com o celular na bancada de mármore ao lado.

— Droga...

Estico a cabeça para ver quem era e como era minha gerente comercial com supostamente notícias sobre Maceió, decido atender. Segurei um riso alto quando ela disse que o pobretão metido á pescador havia a chamado de Amélia, pois eu sabia o quanto ela ficava possessa quando as pessoas se confundiam. Anália era uma loira baixinha, bem mais nova que eu, competente e comprava a briga que fosse pela empresa, comprava qualquer briga a respeito de tudo. As reuniões sobre projetos eram sempre divertidas quando ela estava presente. E além de uma das funcionárias mais antigas que eu tinha, era uma grande parceira. Não dizia que era uma amiga porque meu lema número um sempre fora, “negócios são negócios”, mas a baixinha enfezada era uma querida pra mim. Era a única que não tremia na base quando eu rosnava ameaçando tirar seu emprego justamente para fazê-la tremer na base e reagir, funcionava com todo mundo, mas com Anália só a fazia revirar os olhos.

— Diga, Anália, como estão as coisas?

— Bom, trago novidades. O doutor Felipe disse que pode conseguir uma autorização para a visita, mas ele pode porque simplesmente é “melhor amigo” do dono, ou seja, a ilha é sim, propriedade particular, ela foi comprada há muitos e muitos anos atrás. E o “babado fortíssimo” nem é esse... esse ‘dono’ é nada mais nada menos que Norberto Amorim... reconhece o sobrenome???

— Eita, ele é parente do pescador apegado???

— Parente... — ouço a gerente revoltada dar um risinho irônico. — Júlia, ele é o pai dele!!! Doutor Felipe garantiu que não nos comunicou antes, porque apesar de ele ser amigo desse velho há muito tempo, nem ele sabia disso, soube recentemente porque se encontrou com o tal de Norberto no exterior, e após uma bebida aqui, um drinque ali, o velho soltou desabafos a esmo sobre os “filhos que não vê há anos”. Por isso a ilha é tão protegida e é uma das únicas não invadidas pelos negócios imobiliários em Alagoas. A ilha está no nome do Norberto e ele não passa pro filho porque o pescador nem sabe que esse cara está vivo, entendeu? Acho que é algo por aí, é tipo herança, e como ele não morreu, não pode passá-la pra ele totalmente, ou não quer fazer isso! Então a prefeitura de São Miguel dos Milagres já está ensaiada para negar qualquer proposta de compra sem dar detalhes por causa de um processo judicial de sigilo. Quem chega querendo um pedaço é encaminhado ao Inácio porque apesar de não estar no nome dele, ele é citado como espécie de “guardião oficial”, com isso ele tem total liberdade de administrar, repassar para alguém... é um processo muito doido, não entendi direito. Agora, tudo pode mudar se o velho morrer, porque aí o pescador será chamado no cartório de bens de patrimônio...

— Que bizarro. — eu murmuro e ela concorda do outro lado da linha. — O cara nem sabe que o pai dele está vivo, e só vai descobrir quando o cara morrer, que dó!

— Pois então, achei pesada essa história. Felipe disse que mais tarde vai te ligar na empresa pra te explicar melhor...

— Esse velho gagá está sempre querendo me ligar. — eu digo e ela ri.

— Enfim, no resumo: nada de justiça. Só construiremos uma propriedade naquele lugar com a autorização do grosseirão e você não pediu, mas aqui vai uma sugestão da sua gerente comercial talentosa e esperta, escolha uma ilha, compre outra, sei lá, mas eu acho que naquela não vai rolar. Felipe deixou claro, aquele Inácio é osso duro de roer.

— Tem que ser aquela, Anália, eu preciso daquela ilha. Ela é perfeita para meu negócio e ainda tenho contas pessoais a acertar. — eu respiro pesadamente. — Bom por enquanto, obrigada. Conseguiu o contato daquele cara?

— Sim, está comigo.

— Certo, então... — eu paro pra pensar e decido. —... faça assim, volte, pode voltar e nos reuniremos aqui. Eu darei um jeito nisso. Aquele lugar tem que ser meu.

— Certo, beijos.

— Beijos, faça uma boa viagem.

— Obrigada, chefe! — ela diz, desliga, e eu ligo para o velho babão do Felipe.

— Meu Deus, olha quem me ligou... — ele me atende com sua voz cantante e eu reviro os olhos.

— Boa tarde, doutor.

— Boa tarde, musa!

— É Júlia.

— Sempre na defensiva...

— Escuta, eu estou com pressa aqui para fazer algo importante então preciso de um parecer breve, Anália tentou me explicar a respeito do pai do pescador e eu não entendi muito bem. Pode me atualizar da maneira mais clara que conseguir?

— Claro, então...

Felipe vai falando, falando, falando e a cada vírgula de tudo o que ele dizia, mais impactada eu ficava. Pra resumir, o pai do cara é um empresário aposentado de Alagoas, fez merda com a mãe deles, e digo deles porque o pescador tinha um irmão, após muitos anos se arrependeu, tentou falar com a mulher, descobriu que ela morava na ilha com seus familiares ou estava morando, Felipe não sabia, comprou a ilha para tentar achava eu, agradá-la e deixar o “império natural” como herança para os filhos, mesmo porque aparentemente a falecida lutava contra a especulação imobiliária que a prefeitura sempre apoiava, e como seu feito não impressionou a mulher magoada, partiu para sempre e com isso os dois cresceram achando que eram mesmo órfãos. A mulher é realmente falecida, enfartou e partiu deixando os pequenos com algum morador, mas o pai estava vivinho da Silva, amargurado, depressivo e gastando sua fortuna com conhaque envelhecido em barris de carvalhos em Miami.

Que jeito mais “triste” de sofrer. Queria eu estar agora em Miami. Nossa, Júlia como você é maldosa...

Sinto-me mal por pensar aquilo, desligo o telefone com a orelha doendo de tanto que o doutor fala, respiro pesadamente colocando a água da banheira para borbulhar e jogo na direção dos meus pés uma pedra brilhante de camomila com baunilha que se desmancha no ato, perfuma meu banho e me acalma.

Eu não precisava tomar uma decisão. Lutar por aquela ilha, a ilha ideal para meus planos por inúmeros motivos, era quase minha obrigação, sem contar que eu nunca desistia de nada, e se eu achava difícil, era aí que eu teimava. E isso herdei do meu pai. Eu ia comprar um pedaço daquele matagal ambulante com aquele pescador dentro ou fora dele, e usaria tudo o que estivesse em meu alcance para conseguir.

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