Bento
- Chegou uma carta para você, Bento. - Disse Ronan, o rapaz que trabalhava no caixa do Supermercado, estava em sua hora de folga.
- A carta chegou aqui? - Perguntou Bento, que usava a balança para pesar um frango para uma cliente.
- Sim, estranho, né? Uma carta simples. Deixei na gaveta do meu caixa, vou fumar um cigarro lá fora, caso você queira pegá-la, está lá.
Bento agradeceu e se esqueceu segundos depois, mais uma cliente aguardava sua vez de realizar o pedido.
Só quando foi sua vez de fazer uma pausa, no meio da tarde, foi que Ronan o chamou do caixa e lhe entregou a carta.
Bento se sentou em um banco no estacionamento do Supermercado, ali ficavam os que fumavam, tanto funcionários quanto clientes. Era uma carta simples, porém ele achou diferente seu modo de selo, nunca havia recebido uma carta com lacre. Já vira em filmes, mas nunca pessoalmente. O lacre era vermelho, bem espesso, o objeto com que fora selado, para que o lacre se grudasse, selando a carta, ficara em baixo relevo e dava para ver um emblema incrustado : Fazenda Recesso.
O que será que significava aquilo? Esse era o nome antigo do orfanato que ficara até os treze anos. Uns ainda chamavam lá por esse nome antigo, mas desde que estivera lá, era chamado de Casa Abrigo, só os mais antigos ainda usavam esse nome antigo, e bem raramente.
Com cuidado, sentado ao lado do bebedouro de água, ele sentou-se mais longe para não ser incomodado e abriu com cuidado a carta para não estragar muito o lacre. Observou virando-a, que não havia um endereço de remetente, só o seu nome. Ficou uns segundos olhando, porque seus pais adotivos haviam mudado seu sobrenome, não era mais Tucson, era Bento Paganno, agora, não mais Bento Tucson. Pois bem, abriu a carta e a escrita era cursiva, uma letra toda trabalhada e bela.
Saudações Bento Tucson. Seu nome foi finalmente escolhido, após uma extensa fila de espera. Estás sendo convocado para o aprendizado de suas solicitações, e, como sabias quando nos contactou, não há uma opção uma negativa de sua parte. Aguardamo-no no início do Solstício de verão, mais informações no dia.
Mas o que diabos queria dizer aquilo, o que era um solstício de verão, e como assim não era uma opção uma negativa?
Ficou por ali uns minutos, pensativo e analisando a carta. O papel era rústico e áspero, como se reciclado, porém as letras eram em um dourado que contrastava com o papel. No pé da folha rústica, como que carimbado, havia um desenho de uma borboleta, bem pequeno; asas amarelas com riscos de outras cores variadas. Bento sentiu como um comichão no cérebro, uma lembrança fugidia que tentava se instalar, mas não teve êxito.
Levou a carta ao lado da entrada do Supermercado, amassou-a e jogou-a no latão de lixo designado para papéis; não pensou mais nisso. Tomou seu posto no açougue para mais algumas horas de trabalho.
Hanna
Hanna estava terminando seu café, apressada como sempre, atrasada para variar; rumava para a porta, com o gosto do café ainda na boca, não daria tempo para escovar os dentes nem enxaguar seu copo. Miriam iria reclamar do copo sujo na pia. Estava indo á um bairro preencher a ficha de inscrição para a faculdade e não queria chegar tarde. Caminhava para a porta quando viu uma carta ser jogava por debaixo. Agachou, pegou-a e viu que era para ela. Abriu a porta e estacou.
Pensando que um carteiro havia jogado a carta, o homem que descia os degraus da porta, logo após inserir a única carta debaixo da porta, por si só já era estranho, visto que havia no portão baixo, uma caixinha de madeira que seu pai fizera e estava até com algumas cartas e panfletos inseridos ali, mas o homem enfiou precisamente essa por debaixo da porta. Mas nem foi isso que a chocou, mas o homem realmente.
Ela o tinha visto já algumas vezes quando criança. O vira no orfanato há muito tempo atrás.
- Ei! - Gritou para ele, descendo rápido os degraus. - Ei, você!
Antes que ele se virasse, já saindo portão afora, ele virou. E como ela imaginava, suas feições não eram comuns. Apesar do corpo ser de um homem adulto, seus ombros eram diferentes, mais largos que o restante do corpo, talvez para suportar melhor a cabeça disforme. Sua cabeça era mais larga que o normal, bem como ela se lembrava, e seus olhos, sua boca e nariz, não se assemelhava à humanos, ela não conseguira explicar quando criança, nem agora, mas ele podia bem ser deficiente, alguma anomalia.
O homem passou a correr meio corcunda, assim que ela chegou ao portão. O portão maior, onde ficava o carro, já estava levantado para que ela tirasse o carro. Em segundos, o homem virava a esquina.
Hanna desistiu de tentar alcançá-lo. Entrando no carro, antes de ligá-lo, olhou a carta endereçada à ela, sem remetente e com um lacre vermelho.
Quebrando o lacre, apressada, ela viu as letras cursivas e delicadas, toda em dourada, como um fio que tivesse saído de uma caneta especial:
Saudações Hanna Maya. Seu nome foi finalmente escolhido, após uma extensa fila de espera. Estás sendo convocada para o aprendizado de suas solicitações, e, como sabias quando nos contactou, não há uma opção uma negativa de sua parte. Aguardamos-na no início do Solstício de verão, mais informações no dia.
- Uai, que estranho. - Ela exclamou para ninguém em especial. Virou a carta à procura de mais informações, mas não havia nada.
- Algum problema?
Com um susto e um grito, ela olhou Miriam, que dera uma batida no vidro do carro, assustando-a, achou que fosse o tal homem que voltara.
- Que susto, Miriam! Não é nada, só uma carta que chegou para mim agora. Um senhor a enfiou debaixo da porta. - Hanna tinha acabado de se assustar com um desenho no pé da carta, de um ser estranho, parecido com um ogro, ou algo assim, que muito lhe pareceu com as feições do homem que havia lhe deixado a carta; lembrou-se que o havia visto quando criança, na Casa Abrigo.
Ela baixou mais o vidro do carro e passou a carta para sua amiga e faxineira que vinha todo dia pela manhã.
- Quem era ele?- Miriam leu a carta com uma expressão preocupada.
- Não sei…
- Mas seu sobrenome nem é Maya.
- Era, quando eu morava no orfanato, meus pais mudaram meu sobrenome. Não tem remetente, mas me pareceu que veio do orfanato.
- Vamos entrar um pouco, sua mãe ainda está em casa?
- Saiu bem cedo e papai e Júlio saíram juntos agora mesmo.
- Engraçado, Hanna, posso estar errada, mas essas letras parecem ser escritas com fios de ouro. Walter é ourives e não conheço muito bem, mas parecem ser de ouro.
- Sério? Mas uma carta em um papel tão inferior ser escrita com ouro?
- Posso levar para que ele analise?
- Pode sim, eu ia jogá-la fora mesmo. Miriam, já estou atrasada, não posso descer. Amanhã você me diz se é realmente ouro, mas duvido.
- Boa sorte lá, e deixou seu copo limpo?
- Amo você, sabia?
- Não vai me comprar com palavras de amor, sua danada. Encontro dúzia de copos seus pela casa, minha coluna dói de agachar para pegar os copos que você deixa espalhados por baixo de tudo.
Hanna deu ré no carro, se ficasse ali, Miriam nunca ia parar de reclamar. A compensaria depois.
Roger
- Roger, chegou uma carta para você, posso entrar? - Padre Olivério batia em sua porta.
- Claro. Que carta, será que é da condicional?
Roger pulou da cama e tão logo o padre, seu amigo entrou no quarto, ele tomou a carta de sua mão.
- Não me parece. É diferente.
- Ufa, aqueles sacanas nunca saem do meu pé. Sou maior de idade agora, não podem mais ficar urubuzando minha vida.
- Não diga palavras tão feias antes de colocar os pés no chão, meu filho. Faça uma oração ao invés disso.
- Desculpe, padre. Mas nem daria tempo de eu fazer uma oração, o senhor me acordou.
- São quase oito horas. Vou realizar já a primeira missa. Quer que eu o acompanhe no desjejum?
- E fumar, não é? Nosso corpo é o templo do espírito santo, não devia profaná-lo.
O padre era um anjo na vida do jovem, e ele resolveu não virar os olhos para cima dessa vez. Abriu a carta e leu-a rapidamente.
- Mas que diab… o que significa isso? - Passou a carta para as mãos do padre que a leu.
- Pelo jeito não é mesmo da condicional. Menos mal.
- O senhor viu que tem aquele treco para fechar a carta, viu como as letras são amarelas?
- Sim, percebi. Isso se chama lacre, é um produto que usavam antigamente para selar cartas. Usavam um brasão que podia ser de um anel, por exemplo. - O padre ainda estudava a carta minuciosamente. Roger abriu seu guarda-roupas de duas portas, pegou uma camiseta, e procurava seus cigarros, almejava uma tragada profunda assim que bebesse um café.
- Obrigado, não precisa, vou só tomar um café.
- Aqui fala que você foi convocado, mas para quê, esse não é o endereço do orfanato?
- Sim, sei lá, padre. O senhor deu o endereço da paróquia para o orfanato me enviar correspondências?
- Sim, mesmo você não tendo sido adotado e saído de lá com dezoito anos, achei por bem que soubessem onde estaria, caso precisassem o contatar.
- Está com cara daquela sacana da minha condicional que não sai do meu pé.
- Sem palavrões, por Deus. Agora tens que tomar ainda mais cuidado, Roger. Não é mais um garoto e terão consequências suas atitudes. Se não fizer nada de errado, não há o que temer, não é mesmo?
- Vou indo, temos um motor para desmanchar hoje. Estou trabalhando, não estou?
Roger saiu, não sem antes dar um beijo na cabeça do padre, ele era muito mais alto e sempre o beijava no topo da cabeça.
Não quisera deixar o padre mais preocupado, mas um emblema na carta chamou sua atenção. Havia um desenho de um livro. Ele se lembrava muito bem da capa daquele livro, de quando liam, Bento, Hanna e ele no orfanato. Ele odiava quando era sua vez de ler; tinha déficit de atenção e nunca gostou de leitura, bem como tudo ligado à escola de modo geral. Bento insistia que ele se esforçasse para ler mais que eles, já Hanna tirava todo dia uma hora para lhe ensinar matemática. Tinha sorte pela família que os adotou não ter evitado o contato com ele. Sua rebeldia e revolta, afastava a todos, nunca disse com palavras como era grato pela amizade dos dois, nem precisava, eles sabiam. Pensou em ligar para os amigos no fim do dia. Rasgou a carta no caminho para a mecânica do senhor Conrad, trabalhava ali há uns meses, fora o padre que pedira ao amigo que lhe empregasse, antes que a agente da condicional o prendesse por vadiagem, agora que não estava mais no orfanato. Mesmo não gostando de piedade ou favores, ele aceitou, para não ser preso, provisoriamente, até que arrumasse um outro emprego. O senhor Conrad estava satisfeito com ele, dizia isso o tempo todo, e contra a vontade, ele notou que estava gostando de mexer com carros.
- Não entendi, resolveu devolver a carta ao meu caixa? - Ronan estava novamente ao lado do freezer de vidro do açougue e estendia a carta para Bento. A mesma que ele amassara e jogara no cesto de lixo.- Chegou outra? - Perguntou, incrédulo. Sorte que aquele horário, o mercado e o açougue estavam quase vazios.- Me parece a mesma.Bento pegou a carta. O mesmo lacre, ainda intacto, não estava amassado.- Pode me render aqui, um pouco?- Está tudo bem?- Sim, só preciso conferir uma coisa. - Disse já tirando a touca e o avental.- Clóvis. - Gritou Ronan, para o garoto
Bento passou o restante da tarde a pensar na carta. Deixou-a no bolso do avental; abriu-a novamente e constatou o que já sabia, era a mesma carta, como se não a tivesse jogado fora. Ninguém a colocou no caixa de Ronan, ele olhou nas câmeras, ela apareceu misteriosamente no caixa.Por mais que tentasse achar uma explicação, não conseguia.Lembrava que quando estavam, Hanna, Roger e ele, com idade entre onze, doze e treze anos, nenhum deles tinham um registro de nascimento quando foram para o orfanato, os cuidadores lhes deram mais ou menos essa idade, aproximadamente, e encontrando um livro velho - Hanna era obcecada por leitura, encontraram uma lenda, uma história que ensinava como se transformarem um bruxos e feiticeiros. Liam esse livro desde que foram alfabetizados. Foi ideia dele mandar uma carta para o
Bento explicou aos pais que iria visitar Roger, pegou o carro do pai, depois de a mãe recomendar dezenas de vezes que fosse devagar e com cuidado, visto que sua habilitação era nova e sua mãe estava extremamente preocupada de o filho sofrer um acidente, e pegou estrada.Chegou lá e viu o carro de Hanna estacionado de frente ao bar do Gordo.- Não me diga que também recebeu uma carta! - Ele perguntou, após cumprimentar a tão amada amiga com um forte abraço e um beijo no rosto.- Cansei de te ligar, Bento. Te liguei até no Mercado. Estava planejando ir com Roger à sua casa, quando ele me disse que você estava à caminho. O que acham que significa? E Roger, essa é a última cerveja, ok?
- Será que foi ele quem deixou as cartas para nós três? - Roger falava para ninguém em especial, pensava alto. Hanna nem lhe chamou a atenção quando ele acendeu um cigarro, ela também estava imersa em pensamentos e só se afastou dele, involuntariamente por causa da fumaça.- Pode ser. E o que é Solstício de Verão? - Indagou Bento.- Dei uma olhada na biblioteca do colégio que fui hoje para ver se farei faculdade lá, e pesquisei um livro. Me parece que é o dia mais longo do ano, tipo, é quando os pólos da terra se inclinam ao máximo e recebe mais luz do sol, é o dia mais longo do ano, e a noite mais curta, alguma coisa assim. - Finalizou Hanna.- E quando será isso?
Os dias se passaram e os amigos se ligavam duas ou três vezes ao dia, às vezes mais. Estavam realmente preocupados.- Fui a dezenas de bibliotecas e livrarias e em nenhuma delas encontrei o livro. - Dizia Hanna à Bento, em uma de suas ligações a noite. - Não me lembro muito bem dele, você se lembra?- Engraçado que não, me lembro de algumas histórias, não todas elas, mas a capa, só me lembrei quando vi o desenho na carta de Roger, mas do autor, nada, não me recordo muito bem.- As folhas eram parecidas com as da carta, você percebeu? Rústicas, envelhecidas.- Como pergaminhos. Me lembro de estar com ele aberto, escondidos no quarto para não mandarem apagarmo
- Não precisamos levar muita coisa, não vamos nos demorar por lá, e lá tem tudo o que precisamos. Podemos comprar algo para comer nos postos da estrada, água. Ah, vou levar uma garrafa térmica com chá.- Ah, por Deus, Han. Leve café, quem leva garrafa com chá em uma viagem por mais curta que ela seja? Nunca vi uma pessoa levar chá em um passeio ou viagem.- Leve o que você quiser, Roge, eu vou levar chá e pronto acabou.- Você viu, Bento, ela me disse para levar o que eu quiser.- Menos bebidas alcoólicas ou drogas, seu infeliz.- Mais um adjetivo. - Ele novamente fingiu anotar.Riram e
Pararam em um posto, há duas horas da cidade em que iam.- Preciso mijar. - Roger pulou do carro antes mesmo da garota o estacionar direito. - Hanna é uma péssima motorista, não se preocupa com o bem estar de seus passageiros. Estou com fome, também.- Vou ao banheiro e os encontro na lanchonete. - Ela disse, se afastando com a mochila do amigo, ia realmente revistá-la.- Por que traz uma faca? - Perguntou ao se sentar com eles em uma mesinha na lanchonete, que naquela hora, pouco mais de vinte horas, não estava muito movimentada.- É um canivete, Han, não uma faca. Sempre carrego esse canivete para emergências.- Que emergências ter&iacu
Apenas seus passos eram ouvidos, e a mochila de Roger que batia em suas costas. A escadaria era larga e no meio da sala de acolhimento, chamavam-na assim por ser o primeiro contato, propriamente dito às crianças que ali chegavam. Era uma sala ampla e agradável, com sofás aconchegantes, um piano branco de cauda e muitas caixas de brinquedos encostadas na parede, além de mesas enormes com os mais variados jogos manuais. Não se via nada disso, mesmo na penumbra, via-se que a sala estava deserta, as janelas de vidro, do teto ao chão, com suas cortinas claras, estavam cerradas, sem cortinas, a sujeira e poeira de anos, impedia que se visse lá fora. Dora teria um surto ao ver tanta sujeira e descaso, era orgulhosa daquele cômodo, em particular.- Podemos quebrar os vidros das janelas, se não encontramos uma saída. - D