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Mais um dia que eu durmo muito pouco, o resultado é que acordei sentindo o corpo cansado e bastante irritada, já se passaram alguns dias que eu vi Hafiq e a impressão que ele deixou, ainda é muito forte dentro de mim.
Resumidamente, desde que o conheci, ele tornou-se o personagem principal dos meus sonhos molhados. Eu acordo suada e ofegante por causa dos orgasmos frustrados e depois de desperta, demoro em voltar a dormir, transformando-me nessa bagunça úmida e hormonal.
Arrasto-me até o quarto de Kaled e o meu garotinho está acordado, cheio de gás, ele levanta os braços para que eu o tire da cama e enterra a cabecinha em meu pescoço.
— Mamãe, quer “dedêla”.
“Dedêla” é mamadeira na linguagem fofa do meu filhote, eu amorno a mamadeira e depois de bem alimentado, brinco com ele a sua brincadeira preferida, que é descobrir as partes do seu corpo.
— Cadê a barriga gostosa do menino?
Ele bufa e ri, duas covinhas se formando em suas bochechas gordinhas, levanta a camisetinha e me mostra a barriga, caindo na gargalhada, eu mordisco a sua barriga e os seus pezinhos pequenos.
Kaled deita em cima de mim e puxa a minha camisola, descobrindo a minha barriga, mordiscando-me também.
Meu filho é um danadinho, tão esperto, o meu milagre.
Depois de um banho rápido e engolir uma xícara de café, levo Kaled até a escolinha e sigo andando até a galeria.
O dia passa como um borrão, foi agitado e estressante, Paulo me pediu para fazer alguns relatórios, catálogo de peças novas, e pra completar, posei de babá e psicóloga de um novo artista cheio de estrelismos que teima em dizer que não está recebendo o merecido reconhecimento da galeria.
Aff! Estou um caco de tão cansada, já são quase seis horas da noite e a chuva está caindo lá fora bem fininha.
A minha casa é perto da galeria, hoje é terça feira, a “Terça da benção”, no Pelourinho, em Salvador.
Após a missa Afro que eu tanto gosto, as vielas e ruas adquirem outra atmosfera, muita alegria e muito som, indo e vindo de todos os lados, a força do som dos tambores e os corpos suados celebram com alegria a vida pelos becos da Roma negra.
Hoje eu não vim trabalhar de carro, precisava pegar um ar fresco, ainda mais depois dos últimos acontecimentos.
Em frente a galeria, uns moleques jogam futebol na chuva.
Eu olho para aquela molecada e sou tomada por tantas lembranças.
Sem que eu possa controlar o nó na garganta, sinto uma saudade dolorida dos meus meninos. Ziê adorava tomar banho de chuva comigo no sítio em Ilhéus, no Sul da Bahia, era uma farra das boas.
Decidida a fingir que ainda sou feliz só um pouquinho, vou em direção aos meninos que se divertem a valer. A bola saiu do jogo e veio em minha direção, eu não resisto, conduzo a bola com certa destreza, passo por um, dou um drible, em outro, e gol.
Comemoro sozinha, eles se surpreendem e quando percebo, não estou mais só.
A gente comemora à beça, farra de criança que é boa, muita risada, dancinhas, e daí que eu sou moleca? É tão bom ser menina... Às vezes penso que morremos quando começamos a crescer .
Continuo a jogar com eles mais um pouquinho e após alguns minutos, o jogo termina com chutes nas poças d’água e eu rindo no meio da chuva com a garotada, feito uma boba.
— Aí, Tia! Até que pra uma menina, você joga bem.
— E é só menino que gosta, que pode jogar futebol? Oxe, vocês não viram nada, se tivessem me colocado como goleira do time, vocês não tinham perdido de 3x0.
Volto pra galeria com a roupa toda ensopada, mantendo um sorrisinho tolo no rosto.
De longe vejo Hafiq me olhar fixamente, fazia três dias que não o via.
Quando já estou indo para casa, ele surge do nada, me tirando da distração, com seu sotaque melodioso.
— Não quer carona? Vai pegar uma gripe tomando essa chuva.
Saindo da galeria eu viro-me para olhá-lo, agradecendo a gentileza.
— Obrigada, mas eu gosto de caminhar na chuva.
Ele vem em minha direção e insiste.
— Eu ficaria mais tranquilo sabendo que você chegou a sua casa em segurança, por favor, aceite que eu te leve.
— É só chuva, não sou de açúcar, não há nada pra se preocupar.
Ele sorri, mas percebo que está insatisfeito com a minha recusa.
— Você gosta de me desafiar, não é? Isso é sexy, mas realmente eu prefiro certificar-me de sua segurança com meus próprios olhos, por favor?
O seu, ”por favor”, está longe de ser realmente um pedido, ele é o tipo de homem que sabe tomar o que quer, a chuva piorou, essa batalha ele venceu, por enquanto.
— Tá bom, você venceu, ponto para os meninos.
Ele franze a testa e me olha, com o ar curioso.
— Ponto para os meninos?
— Modo de dizer, vai ser do jeito que você quer, entendeu?
Hafiq segura a minha mão e me faz estancar.
Ele pega o seu terno e cobre as minhas costas, protegendo-me do vento, as suas mãos me aquecendo enviam uma onda de calor a minha pele, que me desestabiliza.
— Não saia daqui, só um minuto, me espere.
Rapidamente ele retorna com um monte de folhas de papel toalha nas mãos e começa a secar o meu rosto e os meus braços, eu tento me desvencilhar.
— Quieta Antônia, é bem capaz de você pegar um resfriado.
Esse cara não tem noção de que não se enxuga uma pessoa que a gente mal conhece? Eu estou passada de tanta vergonha.
Ele puxa os meus cabelos úmidos para trás, descobrindo o meu rosto.
— Quando chegar a sua casa, tire logo essas roupas molhadas e se seque corretamente.
Eu desvio o olhar, essa aproximação cheia de toques e cuidados estão me deixando constrangida.
— Você é sempre assim tão mandão.
— Sempre Antônia, sempre.
Ele me guia até o seu carro, um Jeep Grand Cherokee SVU preto e seguimos sem falar nada, até que ele rompe com o silêncio.
— Você gosta de crianças, não é?
— Amo, eu tenho um filho, ele se chama Kaled, mas mesmo antes dele nascer, eu sempre gostei de crianças, são mais sinceras, mais felizes e mais livres. E isso me contagia, eu não resisto e acabo saindo da linha junto com eles.
Ele sorri e me olha de um jeito penetrante.
— Eu invejei aqueles meninos hoje, você estava linda brincando na chuva.
Ele conseguiu me deixar sem graça, eu só consigo devolver o sorriso e colo o olhar nas paisagens que passam por mim através da janela.
Chegamos a minha casa, Hafiq abre a porta do carro gentilmente e quando eu já estou despedindo-me com um beijo em sua bochecha, ele segura a minha mão, fazendo-me estancar à sua frente.
— Eu pensei que os latinos fossem mais gentis, eu não mereço uma xícara de café?
— Não quero ser indelicada, mas meu filho chegará da escola daqui a pouco.
— Eu prometo que não vou me demorar, estou pedindo só um café, não uma hospedagem.
Eu devolvo o sorriso, ele tem um humor ácido, acho que gosto de seu jeito de ser.
— Ok, então entre, por favor, e não repare a bagunça, Kaled deixa sempre os brinquedos espalhados pelo chão.
Ele entra em minha casa e observa o ambiente com um olhar gentil, a sua presença poderosa e máscula toma por completo a minha sala.
Hafiq segue até a cozinha e sem pedir licença, senta-se em uma banqueta, parecendo relaxado.
— A sua casa é muito acolhedora, tem cara realmente de um lar, eu gosto disso.
— Obrigada, é casa de pobre, mas a mesa é farta e o bate papo é sempre bom.
Eu deixo a bolsa no sofá e jogo os sapatos no canto da sala.
Sigo até a cozinha e preparo o café no coador de pano, forte e encorpado, do jeito que os meninos gostavam.
Conversamos amenidades enquanto termino de coá-lo e por diversos momentos, pego Hafiq me encarando, daquele seu jeito indecifrável.
Ele se inclina pra me observar, alisando o queixo.
— Você gosta de ficar descalça, não é? Não há nada mais sexy do que uma bela mulher descalça, livre.
— Eu gosto de sentir o chão, de pisar no mato, pra uma mulher sertaneja isso é muito natural, não há nada de sedutor nisso.
— É melhor para os homens que você pense assim.
Ele levanta os olhos e o que eu vejo é desejo, preciso que esse café termine logo, estamos seguindo uma trilha perigosa.
Após tomarmos café e batermos papo divertidamente, Hafiq relutantemente vai embora e o desconforto que eu sinto demora a passar, ele de fato mexe comigo.
A noite de ontem foi revigorante, me lembro da molecagem com os meninos na chuva e logo surge em minha mente, os momentos que eu passei com Hafiq.Certamente foi o café mais sensual que eu já provei, o jeito quente como ele bebia e me olhava, era de umedecer qualquer calcinha.Curioso, mas eu tenho a ligeira impressão de tê-lo visto anteriormente em algum outro lugar, faço um tremendo esforço pra lembrar e desisto.É em vão, eu sou péssima em memorizar fisionomias.Acontecerá um evento na galeria à noite e infelizmente, eu não posso faltar. Apesar da preguiça imensa em me socializar, vou ter que comparecer, não tem jeito, essa função faz parte do meu trabalho e, além disso, eu sou uma das organizadoras da exposição.Essas exposições são sempre iguais, conversa chata, risos forçados e um mont
Os primeiros versos de “Desenho de giz”, de João Bosco, ecoam pelo som da galeria e como em uma mágica, uma bolha se estende sobre nós, não há mais ninguém ao nosso redor, só eu, ele e a beleza desse momento.“...Quem quer viver um amorMas não quer suas marcas, qualquer cicatrizA ilusão do amorNão é risco na areia, é desenho de gizEu sei que você quis dizer.A questão não é querer, desejar, decidir.Aí, diz o meu coração.Que prazer tem bater se ela não vai ouvir.Aí minha boca me diz que prazer tem sorrirSe ela não me sorrir também.Quem pode querer ser felizSe não for por um grande amor?”
Faz mais de três meses que eu simplesmente evito sair de casa, só a exposição na galeria, na semana passada, me tirou de meu refúgio.Esta semana a melancolia tá batendo mais forte dentro de mim, confinei-me nas paredes de minha casa, procurando as respostas que eu não tenho, esperando que elas me digam o que fazer de minha vida.Moro em um espaçoso sobrado em Salvador, no bairro do Rio Vermelho, reduto da boemia baiana.Ah! Morar na terra da alegria... E eu me sentir assim desse jeito é no mínimo muito irônico.Treze anos se passaram e parece que foi ontem, há exatamente treze anos mudei-me de Quijingue, no Sertão da Bahia, para morar neste sobrado de arquitetura histórica.Todos os detalhes de nossa casa são muito pessoais e particulares.Todo o caos que eu vivo é tão surreal que eu ainda não me acostumei a dizer que
HAFIQEla senta-se da forma mais ereta possível, com as pernas cruzadas, charmosa pra cacete com uma camisola velha, maltrapilha, tentando manter a indiferença e o último fio de orgulho que lhe resta.Antônia me aponta outro sofá para eu sentar-me e eu suspiro longamente, tentando dissipar a tensão que emana de nós dois.Eu tento me acomodar da forma mais relaxada possível.Sou um homem que não tem problemas de autoestima, sei do efeito que eu causo nas mulheres, a maioria joga-se em cima de mim como urubus na carniça. É incrível como a combinação de um pouco de beleza, educação e bastante dinheiro torna um homem irresistível.Irresistível e... profundamente solitário.As relações amorosas que eu vivi, se algumas fodas agradáveis podem ser definid
CAPÍTULO 5E aquela força da natureza saiu de minha casa como um furacão.Entrou e saiu como um redemoinho que arromba as portas e tira tudo do lugar, sem pena e sem piedade, sem tempo de se proteger, sem pedir licença.Se minha vida não entrar no eixo de novo, Hafiq vai cumprir com sua promessa, eu serei sua mulher, eu serei dele e isso me assusta demais. Durmo pensando em como conseguirei fugir da sua proposta, sem quebrar a promessa que fiz a Aziz. Kaled agora só tem a mim no mundo, a lembrança de tudo que Ziê fez por mim permanece viva em minha memória, em meu coração.Ele me ajudou a resgatar minha autoestima, e agora os dias sofridos que eu vivi fazem parte o passado, graças a ele.Conheci Ziê quando eu tinha treze anos, em uma viagem que ele fez com Johnny a Quijingue, cidade próxima a Canudos — BA.Era festa de Reis, a cidade estava cheia de visitantes, turistas iam e vinham. E a fome me fazia invisível, eles não me notavam. Eu estava muito magra, sofrida pela fome e dilacerad
Acordei cansada, tive uma noite de sono agitada, ainda sinto as mãos de Hafiq pelo meu corpo, que merda! Por que ele tinha que ser irmão de Zie?Pelo menos estou conseguindo me alimentar melhor, tomo um iogurte e um suco de laranja bem gelado, preparo rapidinho um mingau para Kaled.Sentado na cadeirinha, ele espalha mingau pra tudo que é lado e me sorri daquele jeito inocente que eu tanto admirava em Zie.- Mama, quer nanana. Hum!!! bom a nanana.E a banana se amassa toda entre as suas mãos gordinhas, mas que menino mais danado!Ele é um menino muito doce e travesso, uma boa mistura minha e de Aziz: mulato, cabelos castanhos cacheados, olhos castanhos curiosos e alegres.Em mais uma manhã de choro e birra, no placar mamãe x Kaled, eu perco humilhantemente, desisto por hoje dessa batalha e deixo ele levar escondido a chupeta na mochilinha da creche.Após deixa-lo na escola, retorno correndo para casa, ainda dá tempo de tomar uma chuveirada e arrumar-me rapidamente.Até que eu não estou
Eu as vejo salivarem como um canibal em frente a um banquete de carne, todas se tornaram uma massa líquida de hormônios, entre risinhos bobos, cutucões e suspiros juvenis. Completamente seduzidas pela figura envolvente de voz rouca e sotaque melodioso, que eu adoraria nesse exato momento apertar o pescoço até vê-lo sufocar.Dafne, a atendente da cafeteria, aprendiz de vadia, ousada como sempre, fala com Brenda e Lia.- Nossa, se esse homem fosse meu, só sairia da minha cama de cadeiras de rodas. Lia conclui, aumentando o alvoroço feminino.- É um belo de um parque de diversões, vocês não acham? Pra completar nossa maré de azar, só faltava ele ser gay.Brenda ajeita o decote do vestido, puxando seus peitos enormes para cima, como melões quase saltando à vista de todos, se puxasse mais um pouco, dava pra ver os mamilos.Aff!E minha amiga j**a os cabelos louros para o lado, fazendo a cara mais sexy que pode, em direção a Hafiq.- Não tô nem aí se ele for gay, por mim "fuck you my Darling
Faz um gesto indicando para eu passar em sua frente.Vamos almoçar meu bem.Saio pelo corredor com passos trôpegos, acompanho Hafiq até o carro estacionado na frente da galeria, ele abre a porta e eu me sento, olho para o lado e o filho da puta parece alegre pelo efeito que sua demonstração de poder acabou de provocar.Ele dirige em silêncio, por vezes me olha, observando minha reação.A raiva cresce dentro de mim, uma sensação física de cólera, ele não sabe, mas está abanando um lenço vermelho nas minhas fuças e eu estou botando fogo pelas ventas, prestes a atropelar tudo, um ardor queima meu ventre, subindo até a minha garganta.Minha vida virou de cabeça para baixo desde a chegada desse homem insuportável e lindo que divide o espaço comigo, com uma expressão de calma e contentamento que chega a dar nojo.Não tenho a menor ideia pra onde ele está me levando, com a venda da galeria não sei como pagarei as contas no final do mês e não tenho mais as rédeas da merda do meu destino.Três,