Capítulo 1

ANTÔNIA

Já ajeitei o vestido e arrumei os cabelos três vezes.

Eu tenho que encarar o fato de que mexê-los de um lado para o outro, não vai deixá-los com uma aparência melhor do que esse emaranhado de cachos indomados.

Roer as unhas também é patético.

Essas manias são aceitáveis e muito bonitinhas quando você é uma garotinha, e eu definitivamente já passei da fase do baile de debutante e do nervosismo da primeira dança.

Isso tudo é ridículo para uma mulher de vinte e seis anos, independente, madura e senhora do seu destino.

Eu estou fazendo essas afirmações idiotas pra quem mesmo?

Antônia, a quem você está querendo enganar?

Já o vi algumas vezes, vagando absorto em seus pensamentos, enquanto toma café na cafeteria da galeria de artes onde eu trabalho e o impacto da visão deste homem nunca muda. 

É sempre a mesma sensação de boca seca, pernas fracas e mãos trêmulas.

Tão diferente da postura que ele emana. Ele transpira autocontrole, confiança e domínio.

A maneira como observa tudo ao seu redor, com os queixos levantados levemente, uma das mãos repousadas no colo enquanto bebe o seu chá, recostado na cadeira de forma relaxada é irritante.

Simplemente pelo fato de que é totalmente oposto a minha falta de controle.

Eu sou uma mulher com muitas qualidades: alegre, sincera, vibrante, mas detesto as algemas do bom gosto, as amarras dos bons modos. Detesto porque estou muito longe dessa racionalidade, eu não tenho esse domínio frio dos meus pensamentos mais íntimos, do que sinto, como desejo e o quanto quero.

Com certeza, esse é o meu maior defeito, eu sou uma negação em disfarces. O meu rosto e o meu corpo são livros abertos, qualquer pessoa é capaz de me ler, eu falo com os olhos, antes da minha boca emitir qualquer som.

Péssimo porque eu sempre fico em desvantagem.

Ainda mais quando eu me deparo com um homem como esse, um enigma. Se eu sou um livro aberto, ele é um papiro escrito em sânscrito, ininteligível e indecifrável.

Ontem, ele sentou-se na cafeteria e mesmo escrevendo em um bloquinho algo que parecia importante, desnudava-me com os olhos, e por mais que eu tentasse decifrar, não conseguia ter  a menor ideia do que se passava na cabeça desse moreno lindo enquanto me olhava.

Observei-o de longe, ele levantou-se e caminhou em minha direção, foi inevitável, prendi a respiração ao senti-lo cada vez mais perto, mas estranhamente ele não veio até mim. Deixou “esquecido” o papel em cima da mesa, cumprimentou-me em um meneio com a cabeça e foi embora.

Esperei alguns minutos para certificar-me que ele não voltaria e movi as minhas pernas lerdas o mais rápido que pude, para ver o que estava escrito naquele bendito pedaço de papel.

O Deus moreno escreveu em uma letra bem desenhada.

Allah sabe que eu tentei fugir de você, mas não sou forte o bastante.

Maktub.

Convivi com um árabe por um longo tempo, sei que a tradução de maktub é “estava escrito”, mas o restante do recado confundiu-me demais.

Estas poucas palavras trouxeram uma enxurrada de perguntas sem respostas:

Por que fugir de mim se ele nem me conhece?  E por que me observar tanto tempo com tantas outras mulheres na galeria?

Por que ele resolveu me atormentar com olhares furtivos, justamente uma mulher como eu?

Não que eu seja feia, de forma alguma, sei que sou uma mulher interessante, como toda mulher tenho meus truques.

Porém, por mais que eu atraia os olhares do público masculino, a grande verdade é que eu estou quebrada, esfacelada por dentro, será que ele não percebe que eu não serei a “vagina disponível” em sua lista de conquistas?

Eu simplesmente não entendo.

Constato que ele não é só um papiro em sânscrito, mas também escrito em braile.

Só dois dias de trégua e aqui está ele novamente, observando-me como um felino espreita a sua presa, sentado na cafeteria da galeria.

Olho-o de soslaio quando caminho lentamente entre os quadros enfileirados.

É um homem muito bonito. Pra falar a verdade, definí-lo como bonito é um puta eufemismo de minha parte.

Ele é tão sexy que chega a ser um acinte, indecoroso, ofensivo, esse sujeito deveria ser preso por atentar contra a sanidade feminina. Ele está longe daquela beleza estereotipada, perfeita e irritante do Ken, da Barbie. Todo plastificado em suas calças apertadinhas, suas roupas impecáveis, cabelo louro esticado, rostinho meigo, o resultado dessa equação pra mim é igual a zero tesão.

Ele é aquele tipo de cara que exala virilidade pelos poros, testosterona pura na veia, o rosto esculpido por uma estrutura óssea dura, traços fortes, marcantes.

Um apelo sexual difícil de fingir que não me abala.

Sutileza é algo que ele não aprendeu com a mamãe, eu preciso informá-lo que encarar é feio, falta de educação.

A constatação de ser observada dessa forma, aliada aos meus pensamentos dele sem roupa é suficiente para me deixar uma pilha de nervos.

Ele aparenta ter uns trinta e poucos anos, queixo quadrado, a barba por fazer, daquele modo que te arranha levemente o pescoço quando te pega de jeito, lábios carnudos, feitos para morder e o nariz alongado lhe dão um ar genuinamente masculino e provocante.

Não sei se é a forma dele se movimentar que me causa uma sensação de déjà vu.

Mas convenhamos, se eu o tivesse visto anteriormente, certamente me lembraria, ele não é o tipo de cara que se vê todo dia ao sair pra comprar pão, que te traz uma garrafa de leite na porta de casa.

É uma figura diferente.

Apesar das roupas relativamente informais: calça jeans preta, camisa social branca, blazer preto, toda a sua forma de se portar me faz presumir que provavelmente ele é um executivo, seus sapatos de couro italiano o denunciam, são nitidamente caros.

O cabelo preto desfiado com algumas mechas que teimam em cair-lhe próxima aos olhos é um contraponto a suas feições sérias.

Que tipo de homem de negócios tem o cabelo desse tamanho, quase ultrapassando o colarinho da camisa?

Este pequeno detalhe demonstra que ele é um homem que não se incomoda com o que as pessoas pensam, é a cereja do bolo e uma pitada irresistível de ousadia e irreverência à uma moldura austera de empresário.

 É uma figura diferente e desconcertante.

O seu olhar me persegue, só que de onde estou parada, não consigo ver a cor dos seus olhos, disfarço e abaixo a cabeça.

O café pelo visto não está de seu agrado, ele desistiu de tomá-lo deixando a xícara de lado, concentrando-se logo em folhear um livro com o ar impaciente.

Paulo chegou apressado logo em seguida, ele é o dono da galeria Cravo e Canela, onde eu trabalho há quatro anos.

Foi diretamente para a mesa do moreno misterioso, eles se cumprimentaram com um aperto de mão firme.  Paulo parece nervoso, passando as mãos enormes pela testa franzida, a conversa dos dois demora um tempo, analisam o que parece ser um documento e eu retorno a minha realidade que é catalogar peças e organizar a exposição dos quadros que será daqui a poucos dias.

Em menos de duas semanas o moreno misterioso se tornou habitué da galeria.

Não sei se é a quarta ou quinta vez que o vejo, mas o ritual é sempre o mesmo, ele se senta na mesma mesa e pede um café, me olha novamente daquele seu jeito de quebrar a espinha e repuxa os lábios, imitando algo que parece ser um sorriso.

Será que é proibido em algum tipo de estatuto, os homens de negócios sorrirem abertamente?

Ai, Minha nossa senhora, ele está se levantando.

O homem anda em direção à mim e eu me encolho toda por dentro, meu coração está do tamanho de uma ervilha.

Calma Antônia, respire, é bem simples, é só respirar pelo nariz e soltar pela boca, eu tento me concentrar nessa missão, respirar pelo nariz e soltar pela boca, não há nada tão difícil em se manter relativamente interessante.

Você é uma mulher acostumada a ser paquerada, é só colar aquele sorriso de comercial de creme dental no rosto e se manter calma.

Calma é o cacete!

Analisando-me de cima a baixo, eu concluo: Eu sou mesmo uma besta quadrada, bem que eu poderia ter escolhido uma roupa melhor se eu soubesse que ele viria hoje.

Eu estou no estilo tipo básica, casual insossa, camiseta preta, sapatilhas e um jeans lavado que pelo menos deixa o meu bumbum delineado.

Terei que invocar a Cleópatra que vive dentro de mim, irresistível até em sandálias havaianas, a confiança em pessoa, é disso que eu preciso.

Eu do alto de meus um metro e cinquenta e oito, olho para cima e constato que caminha em minha direção, cerca de um metro e noventa de altura e mais de noventa quilos de puro macho levemente bronzeado, arrematado em um terno cinza chumbo tão bem cortado, que parece uma segunda pele.

 E com os botões do terno abertos, dá pra ver os músculos de seu peito moverem-se através da camisa branca. Não sei se fico parada ou se fujo.

Permanecer parada é a melhor opção.

Até porque eu não sinto minhas pernas, elas não me obedecem, tento fazer de tudo para controlar esse nervosismo. Ele sorri de forma contida e me encara.

Os seus olhos, meu Deus do céu! Por que a mãe natureza foi tão perversa em dar-lhe aqueles olhos?

É algum tipo de ironia divina, será que precisava mesmo criá-lo bonito daquele jeito e ainda presenteá-lo com esses olhos?

Verdes, intensos e hipnotizantes tal qual o encantamento de uma serpente.

— Você pode me dá um minuto, por favor, Antônia?

A voz rouca e firme deixou os meus sentidos em alerta, o seu modo de falar avisa claramente que ele não é um homem acostumado a pedir, apesar de seu convite parecer gentil, é óbvio que suas vontades são atendidas, sem que precise fazer muito esforço.

Como é que ele sabe o meu nome?

Balanço a cabeça concordando, ele pega o meu cotovelo e me acompanha até a cafeteria, com passos firmes, a mesma mão durante o caminho, pousa na base da minha coluna de forma possessiva e o seu toque me traz um calor que o meu corpo já havia esquecido.

Ele puxa a cadeira para eu me sentar e acomoda-se logo em seguida, em uma cadeira a minha frente.

— Gostaria de tomar um café comigo?

— Sim, pode ser.

E ignorando Dafne, a atendente canibal da cafeteria, derramando-se toda em gentilezas, pediu duas xícaras de café, amargo e forte para ele, pra mim um suave com leite.

— Paulo elogiou muito o seu trabalho como Marchand aqui na galeria, você também é pintora?

Eu brinco com a xícara de café procurando as melhores palavras, normalmente sou uma pessoa falante, mas ele... Ele me deixa totalmente sem fala, sem ação.

— Eu não tenho um conhecimento artístico tão vasto pra ser um Marchand, mas ajudo aqui e ali, eu crio as minhas obras nas horas vagas, ainda estou engatinhando como artista plástica. Você é amigo de Paulo?

— Eu não sou um homem de ter amigos, Paulo e eu temos negócios em comum. Você poderia me mostrar algumas peças da galeria? Eu fiquei curioso.

— Claro, com prazer.

— O prazer é todo meu.

Ele finca os olhos nos meus e eu não consigo desviar dos dele, incrível como a palavra “prazer” saindo de seus lábios se torna tão insinuante.

— Eu estou em desvantagem, tomamos café, você sabe meu nome e tudo que eu sei sobre você é que gosta de artes.

O seu aperto de mão é firme, vejo que ele faz questão em demorar de soltar os meus dedos.

— Muito prazer, Hafiq.

— Você é árabe? Interessante, eu tive um grande amigo que era árabe.

Agora percebo o motivo da familiaridade do sotaque. Ele dá de ombros e me responde desviando o olhar.

— Sou meio árabe e meio inglês, vamos dizer assim.

A sua expressão torna-se tensa, pelo visto ele não gosta de falar sobre suas origens, prefiro deixar pra lá esse assunto. Terei que perguntar sobre o guardanapo na mesa, o recado que ele escreveu deixou-me intrigada desde ontem.

— Me diga, por que Maktub? O que é que está escrito?

— Essa resposta eu não posso te dar, você terá que descobrir sozinha.

Ele desce os olhos até a minha boca e depois volta a me encarar.

— Pode mostrar-me os quadros agora?

— Sim, posso leva-lo agora.

Eu o acompanho mostrando nossos melhores quadros e as obras dos artistas novos, as maiores apostas de vendas da galeria.

— Achei tudo muito interessante, mas eu quero ver as suas obras.

— São muito rústicas, eu gosto de trabalhar com elementos naturais, como o barro, palha, cristais brutos, sementes, creio que não seja o seu estilo de arte.

Ele sorri abertamente pela primeira vez e me fita sem desviar, a expressão firme. O que está se passando na cabeça desse homem? Pra mim é uma esfinge, é angustiante e desconfortável não conseguir “ler” os seus sinais.

Melhor desistir de tentar entendê-lo, ele é um terreno pantanoso e escuro, eu prefiro superfícies firmes, gosto dos meus pés no chão.

— E qual seria o meu estilo de arte, Tônia?

— Não sei, acho que algo mais sutil ou refinado.

— Sinto te dizer que você está errada, minha cara! Eu estou muito longe de gostar de sutilezas.

Hafiq se sente muito à vontade em invadir o meu espaço pessoal, seu corpo se inclina em direção ao meu e eu não tenho pra onde fugir, só me resta encará-lo.

— Ok, então podemos ir.

Eu me levanto e ando na frente, guiando-o pelos corredores.

Sinto uma força intensa, que me abala, o calor do seu olhar em minhas costas é quase palpável. Paramos em uma área da galeria onde tem algumas das minhas peças expostas, ele observa com atenção os detalhes da escultura de uma mulher em uma liteira, carregada por seus súditos, e afirma:

— Acho que toda mulher sonha em ser carregada assim, como uma rainha, você não acha?

— Eu não, prefiro andar com minhas próprias pernas.

A sua mão suavemente toca a minha cintura, não é possível que ele não perceba o efeito devastador que esse toque traz. Ele olha dentro dos meus olhos e a ponta dos seus dedos brincam com a minha pele, mesmo por cima do tecido.

— Acho que não é nada mal ser carregada por braços fortes de vez em quando, eu não vejo isso como uma fraqueza.

Mas que papo louco é esse? 

Talvez ele esteja certo, sempre andei com minhas próprias pernas, sempre fui uma sobrevivente na vida. Ser carregada nos braços, apoiada por mãos firmes, é algo que eu desconheço, mas imagino que tirar o fardo das costas da “não fraqueza”, do super heroísmo de vez em quando deve ser bom.

— Foi uma bela tarde, estar cercado de tanta beleza e poder te conhecer um pouco mais, muito obrigado por tudo, Antônia.

— Também foi um prazer pra mim.

Hafiq se despede indo embora como chegou, me pegando desprevenida, sem muitas palavras e deixando meu ponto de equilíbrio em desalinho.                                                        

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