Capítulo 2

A noite de ontem foi revigorante, me lembro da molecagem com os meninos na chuva e logo surge em minha mente, os momentos que eu passei com Hafiq.

Certamente foi o café mais sensual que eu já provei, o jeito quente como ele bebia e me olhava, era de umedecer qualquer calcinha.

Curioso, mas eu tenho a ligeira impressão de tê-lo visto anteriormente em algum outro lugar, faço um tremendo esforço pra lembrar e desisto.

É em vão, eu sou péssima em memorizar fisionomias.

Acontecerá um evento na galeria à noite e infelizmente, eu não posso faltar. Apesar da preguiça imensa em me socializar, vou ter que comparecer, não tem jeito, essa função faz parte do meu trabalho e, além disso, eu sou uma das organizadoras da exposição.

Essas exposições são sempre iguais, conversa chata, risos forçados e um monte de esnobes, falsos conhecedores de arte, que não conseguem distinguir um Rembrandt de um Romero Britto.

A única coisa boa é que expus alguns dos meus quadros, então quem sabe eu tenho sorte e vendo pelo menos um?

 Arrumo-me um pouquinho melhor, depois de um banho digno, seco os cabelos deixando-os cair soltos com os seus cachos naturais.

Passo rímel e dou uma esfumada nas pálpebras para valorizar o olhar.

Para arrematar, argolões de ouro, presente de Ziê e algumas camadas de brilho labial cor de boca.

Agora sim, até que meu visual não está nada mal.

Já que não tenho escolha e preciso entrar no clima, elejo um vestido longo branco que ganhei de Johnny, em uma de suas idas à Espanha e visto sem pensar demais.

Se eu parar pra pensar muito, vou acabar ficando em casa.

O vestido de tecido fluido e corte ajustado, tem um decote que deixa as minhas costas descobertas até abaixo da cintura.

Bem profundo e ousado, feito sob medida para mulheres confiantes.

Confiante? É tudo que nesse momento não estou me sentindo, portanto, esta negra voluptuosa que me encara no espelho é uma fraude, uma tremenda impostora.

Minha imagem reflete o oposto do meu estado de espírito, mas com toda essa merda que eu estou vivendo, até que cai bem me sentir bonita e viva novamente.

Esta roupa foi um presente de alguém que foi muito importante pra mim, as recordações que ela me remete são um afago à minha alma, e eu realmente preciso sentir hoje esse tipo de aconchego.

                                                           &

A exposição dos quadros da galeria está sendo um verdadeiro sucesso, Paulo é um italiano quarentão, charmoso e corpulento, um amigo muito querido, além de ser meu chefe.

Ele ri de um canto a outro, pois apesar de Val Marques, a nova aposta da galeria, ter vendido poucas peças, surpreendentemente todos os meus quadros foram vendidos.

Se as vendas desse idiota forem um fiasco, terei que dar uma de babá dele novamente.

Tentei sondar sobre quem comprou os quadros, para agradecer o apoio artístico, mas a resposta que recebi de Paulo é que o comprador exigiu que a sua identidade fosse mantida em sigilo.

— Infelizmente eu fui proibido de falar, o comprador exige anonimato, todas as peças foram compradas, inclusive as esculturas.

— Nossa, que bom, realmente alguém gostou do meu trabalho.

Fiquei contente, nunca vendi tantas obras em um só dia, o sucesso das vendas vem reafirmar que as minhas inseguranças artísticas são infundadas e que eu devo apostar mais em mim mesma.

Durante a exposição, um grupo de samba de roda com baianas em trajes típicos fazem uma apresentação para entreter os convidados.

E o pandeiro fala na mão dos percussionistas, todos em coro cantam e acompanham com palmas.

Papai, mamãe não quer

Que eu suba no cajueiro

Papai, mamãe não quer

Que eu suba no cajueiro

Ela falou se eu subir eu caio

Da galha do cajueiro.

(Da galha do Cajueiro – Domínio público)

Paulo e Brenda, em um complô muito bem armado, me puxam pelo braço e jogam-me na roda de samba em meio a assovios e gargalhadas dos meus outros colegas de trabalho.

Solto uma risada e aponto para os dois.

— Vocês me pagam.

Brenda ri, o seu corpanzil sacudindo ao som da música e grita pra mim.

— Vai Tônia, sambe aí que eu quero ver.

Eu tento sair da roda por duas vezes, mas não consigo, por fim sou embalada pela música contagiante.

Vou ser feliz mais um pouquinho hoje de novo.

Amanhã só Deus sabe com qual humor acordarei, exorcizo as lágrimas, as perdas e o abandono nesse batuque cadenciado, se existe algo mais contagiante do que o samba do recôncavo, eu não conheço. O samba me toma, a tristeza está agora lá do lado de fora, remexo os quadris no ritmo do pandeiro para dissipar a minha dor.

“Minha senhora

Onde é que você mora

Vou fazer minha morada

É por cima do morro, é lá

Minha morada  é lá

Torne a repetir meu amor, ai, ai, ai

Torne a repetir meu amor, ai, ai, ai

Eu nunca vi tanta areia no mar

Sereia, sereia

Sereia, ô, sereia à

A menina foi embora

Foi embora e me deixou

            Nas asas de um passarinho

            Ela voou, voou...”

           

( Minha senhora  – Domínio público)

“Vou me embora pro sertão

Viola meu bem, viola

Eu aqui não me dou bem

Viola meu bem, viola

Sou maquinista da leste

Sou empregado do trem

Vou me embora pro sertão

Eu aqui não me dou bem

Oh, viola meu bem, viola”

(Viola, meu bem  — Domínio Público)

Alegre ou triste, o samba é sempre um remédio poderoso.

Consigo enfim sair do meio da roda de samba e vou para um cantinho escondido no salão.

Eu amava dançar, parece que posso ver nitidamente todos se divertindo na sala lá de casa, eu, Ziê, Johnny e os amigos de sempre: Paulo, Brenda, Max, Berta, Dona Nieta e outros mais.

Nossa casa há poucos meses atrás era tão cheia de vida.

Novamente sinto o mesmo nó preso em minha garganta, olho entre os convidados e Hafiq está perto, conversando com dois homens que eu não conheço, mas parece distraído.

Está me encarando, finjo que não noto, não quero que ninguém me veja com as emoções tão reviradas.

Um pequeno coquetel é servido aos convidados da exposição.

Canapés, finger foods e principalmente um tabuleiro imperioso cheio de quitutes. Do tabuleiro da baiana: acarajés, abarás e cocadas fascinam os paladares mais exigentes.

Uma profusão de espumantes, uísque e vinho tinto, servem e seduzem a todos.

A todos, menos a mim, todos esses aperitivos não me dão apetite algum.

Eu lambo os beiços por uma tigela cheia de doce de tamarindo, convidativo em seu marrom brilhoso e irresistível. Só faltando sair de dentro do pote com dois dedinhos me chamando: “Venha e me coma todo, eu juro que eu não engordo, sou tal qual uma folha de alface, caia de boca sem medo, eu sou todo diet.”

A baiana me serve um pote bem generoso, eu me atraco com esse doce fechando os olhos para saboreá-lo.

Dizem que quando você come com gosto, aquilo não te engorda, eu prefiro sinceramente acreditar nessa mentira deslavada, do que me perturbar que o doce de tamarindo vai direto para os meus quadris.

Quando eu abro os olhos, Hafiq está ao meu lado, observando meu momento “gula louca”, com a boca cheia de doce e aquele olhar de “vou tocar o foda-se, hoje eu vou enfiar o pé na jaca”, sem culpas.

Nossa! Por um momento eu esqueço o meu objeto da gula e estanco para observá-lo.

Hoje ele pisoteou o coração da ala feminina com coturnos de arame, sem dó e nem piedade.

Está irresistível em um terno azul marinho, camisa social branca e gravata rosa pálido, apesar do calor escaldante de Salvador.

Será possível que ele não transpira?

Seus olhos sérios contrastam com os lábios curvados em um sorriso de parar o trânsito, dentes branquíssimos e um ar de deboche implícito.

 O que ele tá achando tão engraçado?

— Não prefere levar toda a tigela de doce pra casa? Você perguntou à baiana se tem embalagem pra viagem? Fique à vontade, não precisa se envergonhar.

Isso que eu ouvi foi uma tentativa de sarcasmo?

— Você tá debochando de mim porque não sabe o que tá perdendo, não sabe como isso aqui tá gostoso.

— Posso provar?

— Claro, eu vou pedir um pouco pra você.

Eu mal termino a frase, quando ele pega a minha mão e me desafia.

— Eu quero o seu, nada de colher, me dê os seus dedos.

Eu arregalo os olhos sem esforço, mas afinal o que é isso, ele quer que eu enfie o dedo no pote e dê em sua boca?

Ele não me dá tempo de pensar.

— Com licença, flor.

Hafiq pega a minha mão, enfia meus dois dedos no pote e leva até sua boca. Ele lambe os meus dedos sem tirar os olhos de mim, minhas mãos tremem com o frenesi que a umidade de sua língua me causa.

Os seus olhos se fecham e a sua língua percorre entre os meus dedos, como se quisesse saborear-me junto com o doce, como se desejasse me comer em porções bem servidas.

Foi um gesto carregado de uma sensualidade tão explícita, realmente ele sabe provocar.

Uau, eu perdi o fôlego.

Minhas pernas estão bambas, estou louca de vontade de provar a sua boca carnuda, sua língua.

Ah, como essa língua deve ser gostosa, e nos lugares certos. Oh! Meu Deus.

Por que eu estou salivando pela boca desse homem?

O que tá acontecendo comigo?

Não tomarei mais nem um gole de caipirinha.

— Simplesmente delicioso, o doce até que é bom, mas o sabor da sua pele é infinitamente melhor.

— Por que fez isso, você gosta de provocar, não é?

— Não, eu não sou homem de provocar. Eu possuo, é bem diferente.

Depois desse embate, eu consigo enfim articular uma frase que tenha algum sentido.

— Achei que você não vinha hoje, então seu interesse não é só pelo café da galeria? Nós temos aqui um apreciador de artes?

Hafiq enfia o dedo no meu pote de doce e me encara.

— Abra a boca.

Eu mantenho a boca fechada e ele não desiste, continua a me encarar e lambuza os meus lábios com os dedos.

É esse o seu jogo? Eu também tenho alguns truques na manga.

Passo a língua por meus lábios lentamente sorvendo todo o doce e depois os mordo, sem desviar os olhos nem por um segundo.

Essa estrela pornô sou eu? De qual profundeza essa provocadora saiu de mim? Eu tenho que me controlar já que não vou levar esse joguinho adiante.

Isso não está ficando nada bom!

— Certamente não é o café aguado e nem os quadros que me trazem aqui, vamos dizer que eu aprecio tudo que é incomum, gosto de possuir o que me seduz os olhos, inclusive obras de artes.

Um calafrio desce até meu ventre, duplo sentido é pouco, essa resposta com certeza é capaz de derreter até as geleiras da Antártida.

Ele conseguiu mais uma vez me deixar sem fala, o que é muito raro.

Normalmente eu tenho sempre uma resposta cortante na ponta da língua, mas agora não sei o que dizer, é melhor disfarçar e não encará-lo.

— Você praticamente acabou com o meu doce, isso não foi nada educado de sua parte.

Ele sorri novamente, negando com o dedo.

— Deixe de ser dengosa que ainda tem muito doce no pote, estou muito longe de ser bem educado. Sou um homem rústico, às vezes até bruto, em breve você terá oportunidade de tirar suas próprias conclusões.

O modo como ele me olha aquece-me o corpo inteiro, não tenho forças para desviar-me dele, minuciosamente saboreamos as feições um do outro, como se quiséssemos registrar na memória cada detalhe, cada sorriso contido, cada arfar da respiração.

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