Cinco minutos depois, eu estava descendo as escadas receosa, me perguntando por quanto tempo eu aguentaria aquilo.Todos já estavam em volta da mesa redonda quando apareci na sala de jantar, o que me fez parecer ainda mais sem graça do que pensava. Me sentei à mesa, num assento que havia sido reservado para mim. Havia um prato de porcelana posto a frente da cadeira, ao lado de talheres milenares e um guardanapo florido.Havia uma teve parecida com uma caixa marrom no balcão atrás de mim, ligada no noticiário das oito, de onde a voz chata e quase eletrônica da jornalista era a única a soar no silêncio perfurado apenas pelo tilintar dos talheres batendo na porcelana._Sirva-se, _vovó Stela ordenou, afagando o enorme gato cinzento que me encarava com os olhos bem abertos e rosnados ferozes.O ignorei. Não havia almoçado e meu estômago estava doendo de fome. Observei a refeição, sentindo meu estômago se revirar. Uma coisa gosmenta e molhada se mexia na única panela posta na mesa, como se
Com uma tossida catarrenta e mais nojenta que até a própria sopa, ela se arqueou para frente, socando o próprio peito com pressa, sem conseguir puxar o ar. Vovô Brutus imediatamente se levantou, tentando em vão socorrê-la. Quando me dei conta, ela se jogou para trás, caindo com cadeira e tudo e virando a mesa com os pés. Pulei para trás, saindo da cadeira, por pouco, não tomando um banho de sopa quente.O barulho de vidro e porcelana se quebrando invadiu o ambiente, cortando o som da voz da jornalista da TV.O osso saltou de sua garganta, e ela puxou o ar em abundância, quando já estava ficando roxa.Levei as mãos à boca, me condenando mentalmente. Mais uma tragédia. Por minha culpa novamente. Quando é que eu ia parar de machucar as pessoas?Dei com o olhar maciço e duro de Helena sobre mim, me fulminando com raiva como se soubesse exatamente o que eu havia feito. Brutus Levantou Stela do chão, que gemia como se houvesse tentando engolir um pinheirinho de natal ou algo assim._Vou dei
Chiei para ela, tentando alcançar as barras. Mas meu outro pé deslizou, se desprendendo da grade, e fiquei pendurada apenas pelas mãos. Helena balbuciou, e o peso de meu corpo foi demais para meus dedos já doloridos, que também se desprenderam. Por uma fração de segundos, o vento balançou meus cabelos, e no próximo segundo, um estalo surdo acertou minhas costas, e senti meus pulmões se deslocarem._Inferno... _gaguejei lutando para puxar o ar novamente, e quando abri os olhos, o rosto de Helena estava a centímetros do meu, me observando com curiosidade, sua cabeça contornada pelo brilho da lua atrás dela._Você é uma vergonha para a natureza, sabia?_Esqueci de mencionar que nunca precisei fugir de casa depois do toque de recolher..._usei todo o sarcasmo que pude _Ainda mais morrendo de sono! Ela levantou uma sobrancelha bem desenhada._Está me atrasando, sabia? _ela lembrou, me oferecendo a mão. Com um protesto baixo, aceitei, e ela me ajudou a levantar.Olhei o Neon estacionado sob
_Dã... e acordar todo mundo? Você não pensa mesmo, não é?Segundos depois, ambas estávamos correndo rua abaixo, escapando da mira da casa velha. Mesmo naquela hora, as ruas monótonas e cercadas de árvores velhas estavam tomadas por carros de todos os tipos com som alto ligado e pessoas de todos os tipos transitando por entre as calçadas ou escondidas fazendo coisas ilícitas nos becos quando cheguemos à cidade._Onde, exatamente, estamos indo? _perguntei depois de quinze minutos de caminhada._Você vai ver... _ela simplesmente disse, encerrando o assunto.Minha curiosidade aumentou quando ela me puxou para as portas abertas de um prédio abandonado de manutenção de máquinas, mas quando eu ia abrir a boca para falar qualquer coisa, tipo, o que aquele absurdo todo significava, ela pôs o dedo indicador à frente a boca, pedindo silêncio.O ar de coisas velhas, metal, ferrugem e graxa inundou minhas narinas quando entremos, e franzi a testa, mas Helena me puxou novamente para um canto em esp
Estava chamando por alguém. Ela sempre chamava. Porém, nunca tinha tempo suficiente para descobrir quem era. Começava com um Sol brilhante se partindo em duas partes, circulando em esferas em chamas que eram engolidas por uma bruma escura e sem cores. Depois, lá estava ela, perdida em algum lugar do tempo que suas memórias não lhe permitiam lembrar. Sempre descalça. Sempre vendada. Sempre procurando. A única Lua no céu escuro e carregado de nuvens tempestuosas iluminava seu rosto branco como marfim, como se a luz fluísse de dentro dela como uma supernova aflorando no centro do universo. Era sempre confuso, sempre angustiante. Os pés, se arrastavam enterrados em meio a terra úmida, tentando abrir caminho por entre espinhos que não estavam lá antes. Aquela sensação. Dor. Era disso que sempre conseguia se lembrar. A névoa branca que se desprendia dos túmulos ao seu redor circulavam seu corpo magro, como se quisesse levá-la para longe, pequenos fantasmas tentando arrastá-la
"É urgente destruir certas palavras,ódio, solidão e crueldade,Alguns lamentos,Muitasespadas"(Eugênio de Andrade)Evangeline observou o brilho da lâmina pela vigésima vez. Era reluzente, e brilhava a baixo do sol escaldante de janeiro.Observou mais uma vez o formato alongado com o punho pequeno que facilmente se adaptava na palma de sua mão, como se adaga tivesse sido feita especialmente para ela. Arqueou as sobrancelhas ruivas. Era muito bela, e tinha de haver um jeito de fazê-la se afundar no tronco da árvore. O tronco já riscado e cheio de arranhões a dois metros dela. O escolhido do dia para lhe auxiliar com
Acasa da fazenda Travis era grande, de madeira, cheia de cômodos e quartos, e pelo que Evangeline sabia, uma vez sua mãe já tencionara transformá-la em uma hospedaria. Mas depois de perceber o quanto aquilo os deixaria próximos aos humanos e as probabilidades de atrair demasiada e desnecessária atenção para si próprios, a ideia fora posta de lado. Eram uma família com tradições, momentos, e certas atitudes diferentes. A última coisa que precisavam, era serem reprovados no mundo terreno também, o que fazia a família sempre procurar discrição.Mas Evangelinesabiaque em algum tempo remoto, a casa já havia sido uma espécie de estalagem, e que a única dona morrera em uma briga entre dois grupos de n
Novamente, ela chamava, seus braços procurando algo a frente do corpo, como se quisessem alcançar algo que estava além de sua compreensão. A sensação estagnada da terra molhada se grudando em seus pés, entrando pelas aberturas entre os dedos e enlameando a barra do vestido vermelho. Vermelho como fogo. Vermelho como sangue gotejando de um ferimento recente. Escuro, pesado e molhado. E o som das sílabas desaparecia, levando sua voz junto com o vento que chicoteava seus cabelos.E aquela voz. Sumindo em meio ao nada.Escuro.Doloroso.Tempestuoso.Desacalentador.
Último capítulo