DEPOIS |1| COMO SUSSURROS

"É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

Alguns lamentos,

Muitas espadas"

(Eugênio de Andrade)

Evangeline observou o brilho da lâmina pela vigésima vez. Era reluzente, e brilhava a baixo do sol escaldante de janeiro.

Observou mais uma vez o formato alongado com o punho pequeno que facilmente se adaptava na palma de sua mão, como se adaga tivesse sido feita especialmente para ela. Arqueou as sobrancelhas ruivas. Era muito bela, e tinha de haver um jeito de fazê-la se afundar no tronco da árvore. O tronco já riscado e cheio de arranhões a dois metros dela. O escolhido do dia para lhe auxiliar com seu treino de arremesso de facas. Seus pais viviam dizendo-lhe que o exercício era simples, porém, encontrava dificuldade em encontrar a simplicidade entre os erros que a atrapalhavam a cada novo arremesso fracassado.

A Fazenda Travis brilhava em tons de verde a baixo dos mesmos raios solares, e a impressão que Evangeline tinha ao correr os olhos pela grama verde e selvagem que descia pelas encostas e colinas, era que o ar tremeluzia de encontro ao chão fervente, criando ondulações e distorcendo a paisagem. Mas ela não se importava com o calor. Se importava apenas, em se especializar. Queria ser tão boa em arremesso, que sonhava em um dia ainda sair por aí correndo e colhendo frutas das árvores mais altas apenas atirando facas. Queria ser uma boa Guerreira. Queria ser invencível.

E mais importante: queria acabar com cada Fightwade que ousasse atravessar seu caminho.

― Uma dama e uma adaga? Qual foi a última vez que vi as duas coisas em uma mesma cena? ― a voz masculina e cheia de vida de George Whate fluiu, vinda do meio das árvores que circundavam a clareira onde Evangeline se encontrava. ― Ah, claro. Ontem.

Logo, sua figura alta se revelou, saída de trás de um dos Carvalhos com aspecto rude, cujos galhos e folhas achatados no alto bloqueavam a maior parte da claridade. Evangeline sorriu para o amigo, rapidamente percebendo as botas marrons de montaria e o chicote em uma das mãos. Seu cavalo deveria estar escondido em algum dos mosteiros perto da fazenda, evitando que a presença de George fosse detectada no perímetro da propriedade Travis. Apesar de ser seu melhor amigo, George respeitava a imagem de Evangeline, que poderia ser rapidamente degradada se seu nome fosse anexado ao nome de algum outro garoto no meio de boatos pela Vila. Mesmo que ambos tenham crescido juntos, nem todos achavam que aquela pareceria era amigável, inocente e sem culpas.

― George. ― Evangeline sorriu, jogando os cabelos vermelhos para trás dos ombros, cobrindo o espartilho do vestido cor de vinho. ― Chegou cedo hoje.

George sorriu, dando de ombros e retirando as luvas de montaria, seus olhos cor de caramelo quase cobertos por baixo do cabelo castanho claro, o lábio inferior, maior que o superior lhe dando aquele ar infantil que Evangeline tanto gostava de apontar.

― Precisei passar na padaria, e também precisava encomendar mais feno. O que diz que hoje também terei que falar com seu pai. ― ele explicou, levantando as sobrancelhas dois tons mais escuras que o cabelo, seus olhos se dirigindo decepcionados para o tronco arranhado ― E pelo que vejo, sua habilidade com as facas continua tão ruim quanto estava ontem. Quero dizer, decadente.

Evangeline cruzou os braços, erguendo as sobrancelhas.

― Como se você fosse melhor que eu. Quantas facas conseguiu acertar ontem? Uma?

― Mas eu acertei! ― ele sorriu novamente, apontando a adaga na mão da garota ruiva ― E isso quer dizer que sou melhor nisso que você, mesmo sendo um simples terreno.

Evangeline deu de ombros, se voltando para o alvo novamente.

George era a única pessoa que sabia a verdade sobre ela e sua família. E era bom poder contar certas coisas e dividir certos segredos com alguém. Até onde sabia, aquilo era proibido, mas não havia como O Conselho saber. Afinal de contas, George tinha toda a sua confiança, e Evangeline sabia que se dependesse dele, ninguém nunca iria saber. Como ambos haviam crescido juntos, surgiu uma hora inevitável em que George, como garoto, se dera conta de algumas coisas incomuns na amiga, como o fato de ela ser muitas vezes mais forte que ele. Aconteceu quando ambos tinham apenas nove anos de idade. Disputavam uma caixa de biscoitos de chocolate em meio a uma corrida, quando "sem querer", Evangeline acabou por lhe quebrar o braço. Depois do episódio, ele passou a notar a precisão que a amiga tinha com os reflexos, até que percebeu que ela tinha mais que apenas algumas diferenças anormais: ela tinha poderes.

E foi então que descobriu, e passou a conviver com a família Travis como se fosse um deles. Agora, aos dezesseis anos, era quase como se fizesse parte do mundo de Evangeline, às vezes esquecendo-se de que era apenas um ser humano e ainda poderia quebrar.

A adaga quicou com a ponta do cabo contra tronco, caindo no chão logo em seguida, arrancando de Evangeline uma careta de desgosto.

― Afinal de contas, qual é o problema com este tronco? Acha que eu deveria tentar em outro?

George riu, chacoalhando a cabeça de forma quase desalentadora.

― Não há nada de errado com o tronco, Evangeline. ― ele discordou, se baixando e arrebatando a longa e bonita espada dentro da bainha que estava escondida em meio ao manto vermelho de Evangeline, posto próximo ás raízes angulosas e projetadas do Carvalho. ― Por que não continua com a espada? Você pode não ser muito boa em arremesso, mas é uma ótima Espadachim.

― Não quero ser uma Espadachim. Quero dizer, bem, eu quero. Mas também quero ser outras coisas. Quero ser boa em tudo. Quero ser... imbatível.

― Você é boa em tudo. ― George lhe lembrou. ― Mas é melhor com uma espada, especialmente com Élesmer. ― ele citou o nome de sua Espada.

― Qual a graça em ser boa com uma espada quando nem mesmo consigo arremessar uma faca? ― ela se deixou cair em cima de seu manto, recostando o lombar na superfície rude e cheia de depressões do Carvalho, sentindo as raízes tencionarem os músculos de sua perna por baixo da saia do vestido. ― Você não entende, George. Preciso ser boa em arremessos, preciso ser boa em táticas e estratégias, preciso ser boa em luta, preciso ser boa em... matar. ― seus olhos dourados brilharam á menção de sua pretensão, com o costumeiro brilho ansioso que se apoderava de Evangeline sempre que era acometida pelos motivos que a levava a treinar todos os dias.

George suspirou, deixando a espada cair ao lado do corpo. Com o olhar solidário ainda pairando no rosto calmo, ele se sentou próximo de Evangeline, drenando todos os sentimentos que transpassavam sua expressão distante e sonhadora, quase obsessiva. Com uma mão, ela deslizava os dedos sobre a pele a baixo do pescoço, exposta pelo decote do vestido, onde uma marca já deveria ter surgido.

― Você ainda não apresentou afinidade por nenhum Elemento?

Ela suspirou cansada, puxando o decote do vestido como se quisesse esconder a pele sem marcas.

― Não. Mas mamãe disse que pode acontecer a qualquer momento.

― Mas mesmo que aconteça... você sabe que nunca vai poder ser uma Falange Guerreira, não é? ― ele tentava soar compreensivo, mas sabia que o assunto a incomodava mais que qualquer outro. ― Depois do exílio, sua família ficou de fora do Tratado.

Ela baixou o olhar para as folhas secas espalhadas pela grama macia, riscando desenhos imaginários no chão com a ponta do dedo indicador.

― É claro que eu sei. Os Travis não existem mais. Não nos registros de Miriad, pelo menos. O que quer dizer que mesmo sendo uma Falange, não posso reivindicar um lugar dentro de uma Divisão Guerreira por que perdi meus direitos. ― ela admitiu, riscando círculos pelo chão. ― Mas isso não quer dizer que eu não possa treinar, para poder fazer os culpados pagarem por isso.

Miriad. O nome tinha uma ressoancia agradavel de seu ouvir. Era onde sua família deveria estar vivendo agora, o lar Natal de todas as Falanges. Miriad ficava em uma dimensão separada do mundo dos humanos, e apesar de não se lembrar de lá, sentia falta do lugar do mesmo modo que podia sentir a tristeza dos pais ao encarar os momentos passados em Miriad como uma lembrança distante que jamais iria se repetir novamente. Ela era apenas um bebê quando sua família foi banida, por isso, não sabia dizer qual fora o real motivo do exílio. Apenas sabia que o motivo tinha um nome e um endereço: os Fightwade. Sempre que tocava no assunto, seus pais se negavam a lhe dar mais detalhes, e ainda assim, ela podia ver a dor nos olhos deles, dia após dia, enquanto prosseguiam tendo que viver em um mundo que não lhes pertencia. Tendo que abdicar de costumes que haviam feito parte deles a vida toda.

Apesar de crescer como uma terrena, nome dado aos humanos e tradução mais próxima de "tangata whênua", Evangeline ainda fora criada dentro dos padrões e tradições de seu povo. E mesmo que tivesse consciência de que jamais chegaria a conhecer Miriad, ainda mantinha o maior objetivo de sua vida lúcido em todas as suas ações: fazer os Fightwade pagarem.

O problema, era que parecia haver algo de errado com ela.

Geralmente, uma criança Falange apresentava sua afinidade com algum poder em especial aos sete anos de idade, quando um símbolo representando o poder aparecia em meio ao peito, a baixo do pescoço e próximo ao coração, marcando a criança para toda a vida. Se o poder fosse o domínio de um dos Elementos, a criança era mandada para a Academia Elementar, que ficava dentro de Miriad. Então, ela era treinada até os dezessete anos, quando era Invocada para ser uma Falange Guerreira, que protegeria as demais de todos os outros perigos que pudessem surgir, mas o principal deles: da própria raça. Como tudo na vida, seu mundo tinha os dois lados de uma moeda, o bem e o mal, a Luz e as Trevas.

E eram exatamente essas Falanges Guerreiras da Luz que caminhavam pelo mundo terreno, mantendo os humanos seguros das ameaças que as Falanges das Trevas representavam as suas almas.

Mas mesmo que apresentasse afinidade por um dos Elementos, jamais poderia ser uma Falange Guerreira.

E a culpa continuava recaindo sobre os Fightwade.

― Eu entendo, Evangeline. Mas você não precisa fazer dessa vingança sua vida. Deve ter algo que queira fazer a mais que isso. Deve ter algum sonho, algo que planeje fazer com seu futuro. Algo que lhe dê paz.

Os olhos de Evangeline se voltaram vorazes para George, suas mãos pequenas se apoiando na grama a sua frente.

― Meu objetivo e meu sonho, é fazer picadinho de cada Fightwade que exista na superfície da terra ou em qualquer outro lugar que eu não conheça. Posso pensar em algum sonho depois disso. Isso me dá paz. Saber que eles não existem mais, assim como os Travis.

― Tecnicamente, os Travis ainda estão vivos.

― Isto, não é viver, é existir! Observe meus pais! Eles estão como mortos, só que ainda respirando. Tudo que eles tinham, foi tirado deles. Eles amaldiçoaram Miriad, e não querem que eu toque nesse nome, mas aqui dentro, eu sei, George. ― ela apontou o dedo para o próprio peito. ― Eu sei que quando deixaram Miriad, deixaram também a vontade de viver, e não me importa o quanto digam que não!

Evangeline não se preocupava com o fato de parecer apenas uma garota de dezesseis anos sonhando com uma oportunidade de vingança que talvez nunca chegasse. Em seu interior, ela conhecia muito bem a labareda acesa, que só crescia cada vez mais a medida que o tempo passava e a dor de seus pais aumentava. Ia acontecer. Em algum momento. Disso, ela não tinha dúvidas.

― Certo, ― George ergueu as mãos, entregando os pontos. Como sempre, havia perdido na discussão para Evangeline. Isso sempre acontecia, e não importava o quanto ele se preparasse para os atritos verbais, ela sempre vencia. ― Você vai fazer um banho de sangue e vingar o nome de sua família. Entendido. Mas e depois? Isso vai fazer com que sua família seja novamente posta dentro dos Registros?

Pela primeira vez, Evangeline ficou sem palavras, o encarando com seus gigantescos olhos dourados.

― Viu só? Whate: 1, Travis: 0!

Evangeline jogou um punhado de grama em sua direção.

― Se nós fomos esquecidos, pelo menos eles também serão!

― E o jogo fica empatado.

Evangeline sorriu em direção ao amigo, agradecendo mais uma vez por ter uma presença tão constante em sua vida. George era uma parte importante das bases que firmavam toda a estrutura de Evangeline presa ao chão, aquele que sempre iria lhe avisar quando seus pés estivessem alçando vôo. Ele costumava lhe dizer que quanto maior fosse a altura, maior era a queda.

George franziu o cenho, como se recordasse de algo, e com um aparente incomodo vazando de sua expressão indiferente, retirou um pequeno envelope pardo de dentro de sua camisa branca.

― Aliás... preciso que você faça uma favor para mim, e entregue isso a Ravenna.

― Deixe-me adivinhar: o remetente se assina por Louis Maddox

Whate.

George sorriu cúmplice, e Evangeline arrebatou a carta das mãos dele. Há algum tempo, o irmão mais velho de George vinha cortejando sua irmã, que era apenas três anos mais velha que ela. O único problema que Evangeline identificava em toda essa história, era que assim como George, Louis era um terreno. Não que Ravenna parecesse se importar com isso, mas Evangeline sempre se perguntava o que poderia acontecer caso os dois se casassem, e tudo indicava que sim. E quanto ás crianças? Seriam terrenas? Falanges? Mestiças? Nem nasceriam? Ela não sabia dizer. Mas tinha certeza que as palavras inexperientes de uma garota de apenas dezesseis anos jamais fariam Ravenna mudar de ideia, mesmo que Evangeline achasse impossível que Ravenna algum dia pudesse se casar com outra Falange, e mais uma vez, a culpa recaia sobre os Fightwade.

― Eu poderia entregar pessoalmente, mas não quero ser cúmplice dessa união instável. ― George exibiu uma careta de escárnio.

― Eles não são tão ruins. ― Evangeline mentiu, guardando o envelope no manto ― E até que ficam bonitinhos juntos. Você sabe que algum dia vai ser inevitável acompanhá-los até a igreja...

― Você entende o que quero dizer. Não sei por que acho isso meio estranho. Quero dizer, você acha que poderia dar certo? Uma Falange e um humano?

Evangeline não se atreveu a responder George imediatamente, até por que aquele brilho ansioso que via nos olhos do amigo agora, vinha a incomodando desde que percebera que ambos passavam mais tempo juntos do que seria sensato. Gostava de George, a sua maneira, mas tinha medo que ele nutrisse sentimentos um tanto reprovados por ela, e queria ignorar que talvez isso já tivesse acontecido. E apesar de não querer magoar George, se sentia no dever de alertá-lo de que os dois, jamais aconteceriam. Evangeline não precisava de um namorado, noivo ou até mesmo um marido. Só precisava de vingança. E um amigo.

Pensando nisso, ela inspirou profundamente enquanto admirava o verde brilhante da fazenda e aspirava o cheiro de grama umedecida pelo calor.

― Não. Eu não acho que poderia dar certo.

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