Antiope era uma vila cercada por colinas ondulantes e bosques de carvalhos tão antigos quanto o próprio tempo. As casas de pedra, cobertas de trepadeiras floridas, pareciam emanar um calor acolhedor, mas sob essa aparente tranquilidade escondia-se um medo enraizado. O nome do Alfa ressoava como um trovão nas conversas sussurradas. Ele governava não apenas a vila, mas também os corações de seus habitantes, que andavam sempre com olhares baixos e passos apressados, como se até mesmo o vento pudesse levar suas palavras para ouvidos errados.
No meio dessa realidade opressora, vivia Amélia. Desde muito jovem, a vida lhe ensinara a sobreviver com pouco. Seus pais foram arrancados dela antes mesmo que tivesse idade para compreender a dor da perda. A memória deles era um borrão distante, fragmentos de vozes e risadas que às vezes vinham nos sonhos, apenas para desaparecer ao amanhecer. A vila, que deveria ter sido seu lar, virou um lugar onde não havia espaço para uma órfã. Sem ninguém que a quisesse, fugiu para a floresta, onde aprendeu a decifrar os sussurros do vento e a se esconder melhor do que qualquer presa. No início, foi um inferno. As noites eram longas e gélidas, e o estômago vazio se tornou um companheiro constante. Chorava baixinho, temendo que qualquer som denunciasse sua presença a predadores — humanos ou não. Mas, com o tempo, o medo deu lugar à adaptação. Aprendeu a ouvir o canto dos pássaros para prever a aproximação de estranhos, a distinguir frutas comestíveis das venenosas, a construir refúgios entre raízes e galhos caídos. A natureza se tornou sua professora, sua aliada e, em muitos momentos, sua única amiga. Mas a solidão era um monstro faminto. A ausência de vozes, de toques, de qualquer laço que a ligasse a outro ser humano consumia seus dias pouco a pouco. Havia momentos em que se perguntava se ainda sabia falar ou se sua voz havia sido engolida pelo silêncio da mata. A vida era uma batalha constante entre o desejo de permanecer escondida e a necessidade de algo mais. Foi então que tudo mudou. Naquela manhã, enquanto colhia frutas silvestres perto do rio, sentiu um cheiro diferente no ar. Madeira queimada. Sangue. Passos pesados quebrando galhos. Um aviso de perigo. O instinto, lapidado pela sobrevivência, fez seu corpo reagir antes mesmo que a mente compreendesse. Amélia se encolheu atrás das árvores, espiando por entre as folhas com o coração martelando contra as costelas. Foi então que o viu. Um homem de postura imponente, cabelos escuros como a noite sem estrelas e olhos de âmbar. Sua presença era sufocante, como uma tempestade prestes a desabar. Ele não era um caçador qualquer. Seu cheiro era forte demais, poderoso demais. Um lobo. O filho do Alfa. Seu nome era Damian. Ele se movia com uma graça predatória, como se cada passo fosse calculado. Os outros lobos atrás dele mantinham-se um pouco afastados, esperando ordens, mas era claro que ele era o líder ali. Amélia percebeu que prender a respiração não a tornaria invisível, mas não conseguiu evitar. Algo nele a assustava mais do que qualquer animal que já encontrara na floresta. Então, como se o próprio vento tivesse sussurrado seu esconderijo, a voz dele cortou o silêncio: — Sei que está aí. Amélia congelou. — Se quisesse te ferir, já teria feito. As palavras foram calmas, mas carregavam um peso que fez a espinha dela se arrepiar. Seu corpo gritava para correr, mas seu instinto dizia que seria inútil. Ele a encontraria, não importava o quanto tentasse fugir. Então, respirando fundo, saiu das sombras. Seus olhos castanhos encontraram os dele, e por um momento, um estranho silêncio pairou entre eles. Não era apenas medo que a fazia hesitar — havia algo na maneira como ele a olhava. Como se a estivesse reconhecendo. Damian inclinou a cabeça levemente, observando cada detalhe de sua aparência desgastada pela vida na floresta. A sujeira no rosto, os cabelos desalinhados, a roupa esfarrapada. Mas não era pena que brilhava em seus olhos dourados. Era algo mais profundo. — Há quanto tempo está sozinha? — perguntou. Sua voz não era rude, nem impaciente. Havia curiosidade ali, um interesse que Amélia não conseguia entender. Ela não respondeu. Porque nem ela sabia exatamente quanto tempo fazia. O tempo na floresta se media em estações, não em anos. Damian soltou um suspiro, como se já esperasse aquele silêncio. Seus olhos, no entanto, mantiveram-se fixos nela. Havia algo naquele olhar que a fazia se sentir exposta, vulnerável de uma forma que nunca estivera antes. — Não importa — ele disse por fim. — Agora, você vem comigo. Ela arregalou os olhos, o coração acelerando ainda mais. — O quê? Ele não repetiu. Apenas deu um passo à frente, e o instinto de Amélia gritou. Retrocedeu automaticamente, mas encontrou apenas o tronco áspero de uma árvore às suas costas. — Não vou machucar você — Damian garantiu, a voz mais baixa agora. Mas havia uma firmeza nela que não deixava espaço para discussão. Amélia não sabia por que sentia que não tinha escolha. Talvez fosse o cansaço de tanto tempo fugindo. Talvez fosse o olhar dele, que carregava uma certeza que ela não entendia. Ou talvez fosse o que ela não percebia ainda: o laço invisível que já os conectava. Damian soube no instante em que a viu. O vínculo de companheiros foi imediato, um choque profundo que percorreu seu corpo como fogo e gelo ao mesmo tempo. Ele não esperava por isso. Não ali, não daquele jeito. Mas Amélia não tinha idade suficiente para reconhecer esse laço. E isso mudava tudo. Damian não podia reivindicá-la. Não agora. Mas também não podia deixá-la para trás. Amélia soube, naquele instante, que sua vida pacata — e sofrida — em Antiope estava prestes a mudar para sempre.O silêncio entre eles era espesso como a neblina que pairava sobre a floresta. Amélia caminhava um passo atrás do filho do Alfa, os olhos atentos a cada detalhe do caminho. As árvores pareciam se curvar à presença dele, os pássaros silenciavam ao seu redor, e até o vento hesitava em soprar. Ela deveria ter fugido. Deveria ter resistido. Mas algo nela — talvez o instinto, talvez o cansaço de viver sozinha — a impediu. O cheiro de terra úmida começou a se misturar com algo mais denso, algo que fazia seus pelos se arrepiarem: o cheiro de outros lobos. Eles estavam perto. Muito perto. Seu coração começou a bater mais forte. O que ele queria com ela? Quando os portões da matilha surgiram à frente, sua respiração ficou rasa. Eram enormes, de madeira escura reforçada com ferro, e guardados por dois homens de olhar predador. Eles a observaram com curiosidade, mas não ousaram questionar o filho do Alfa quando ele passou por eles, trazendo-a consigo. Amélia se encolheu ao sentir dezenas de
Amélia tentou lutar contra o sono.Se dormisse, talvez acordasse em uma armadilha. Talvez descobrisse que tudo aquilo — o banho quente, as roupas limpas, a comida abundante — fosse apenas um truque cruel antes de seu verdadeiro destino.Ela já ouvira histórias assim antes. Promessas de conforto, de segurança, apenas para serem substituídas pelo frio da traição. Sua vida lhe ensinara a desconfiar da bondade, a questionar gestos gentis. Sobrevivência não permitia ilusões.Mas o cansaço, esse inimigo silencioso, foi mais forte.Seu corpo cedeu, vencido pelo esgotamento acumulado de tantas noites mal dormidas, de tantos dias fugindo, se escondendo, sempre à beira do colapso. O colchão, macio como um abraço esquecido, envolveu-a, e, antes que pudesse resistir, seus olhos se fecharam.O sono veio como uma onda morna, arrastando-a para um lugar onde, por um instante, não havia medo.Quando o sol começou a se erguer no horizonte, uma fragrância familiar despertou seus sentidos.Era um cheiro
O silêncio entre eles era espesso, quase palpável.Não um silêncio comum, mas um carregado de tensão e perguntas não ditas.Amélia continuou comendo, cada mordida trazendo uma avalanche de sentimentos confusos. O medo ainda estava ali, enraizado em seu peito como um espinho que se recusava a sair. Mas a fome era mais forte, e ela não desperdiçaria aquela oportunidade.Cada pedaço de pão que mastigava parecia dissolver um pouco da rigidez em seus músculos. A sensação de comida quente no estômago era algo que ela não sentia há muito tempo. Era quase estranho.Mas a presença de Damian impedia que relaxasse completamente.Ele permanecia parado perto da porta, os braços cruzados sobre o peito largo, observando-a com um olhar indecifrável.Não parecia apressado, nem impaciente. Apenas… atento.Ela não sabia dizer se isso era melhor ou pior.Depois de alguns instantes, ele finalmente falou:— Há quanto tempo você estava sozinha?O som de sua voz quebrou o silêncio como uma pedra atirada em u
Amélia passou o resto da manhã tentando afastar os pensamentos que insistiam em invadir sua mente.Damian.Havia algo nele que a fazia sentir-se inquieta. Ele era perigoso, disso ela tinha certeza. Mas, ao mesmo tempo, havia uma força nele que a atraía de uma forma que ela não compreendia. Seu cheiro, sua presença, o modo como seus olhos âmbar pareciam enxergar além de sua pele… tudo nele despertava nela algo primitivo, algo que não fazia sentido.Ela balançou a cabeça, irritada consigo mesma. Não podia se permitir esse tipo de distração.Decidida a entender melhor o lugar onde estava presa — porque, no fundo, ainda se sentia cativa —, resolveu explorar a casa da matilha. Não era a decisão mais segura, mas, afinal, ela havia sobrevivido anos sozinha na floresta. Um passeio não deveria ser tão desafiador.Caminhou pelos corredores de pedra, observando os detalhes. O lugar era imenso, com móveis de madeira escura, tapeçarias pesadas cobrindo as paredes e janelas amplas que deixavam a lu
O encontro com o Alfa ainda pairava na mente de Amélia como uma sombra persistente. Mesmo depois que ele desapareceu pelo corredor, deixando para trás um rastro de tensão e perguntas sem respostas, ela permaneceu imóvel por um longo instante.O que ele quis dizer com aquilo? "Espero que saiba no que está se metendo."A frase ecoava em sua mente, carregada de advertência e algo mais… algo que ela não conseguia definir. Mas ficar parada remoendo palavras não a levaria a lugar nenhum. Inspirando fundo, afastou as dúvidas e retomou sua caminhada.Ainda não conhecia os limites daquela casa imensa, e algo dentro dela queimava de curiosidade. Seu instinto dizia que, por trás das paredes de pedra e dos olhares desconfiados da matilha, havia segredos esperando para serem descobertos.Ela seguiu explorando.Os corredores pareciam se estender infinitamente, alguns estreitos e escuros, outros amplos e iluminados por janelas altas. Ocasionalmente, ela encontrava uma sala abandonada ou uma passagem
O dia já estava avançado quando Damian subiu as escadas em direção ao quarto de Amélia. O aroma do almoço recém-preparado ainda pairava no ar, misturando-se ao cheiro amadeirado característico da casa da matilha.Ele hesitou por um momento diante da porta fechada. Desde que a trouxera para ali, tinha se esforçado para manter certa distância, dar-lhe tempo para aceitar sua nova realidade. Mas agora… agora queria vê-la.Queria que almoçassem juntos.Damian não saberia dizer ao certo o porquê. Só sabia que aquela garota lhe despertava sentimentos conflitantes — e evitá-la não estava funcionando.Bateu na porta uma vez. Depois outra.Nenhuma resposta.Franzindo o cenho, girou a maçaneta e entrou.O quarto estava vazio.No mesmo instante, algo dentro dele se retesou.O cheiro dela ainda estava ali, fresco no ar, mas a ausência de sua presença fez um frio percorrer sua espinha. Seu olhar percorreu o cômodo rapidamente, procurando qualquer sinal de que ela pudesse ter saído por vontade própr
Amélia sentia o olhar intenso de Damian sobre ela, mas fingia não perceber. Algo nele a desconcertava de um jeito que não conseguia explicar. Ele era enigmático, controlador e, ao mesmo tempo, tinha um jeito estranho de cuidar dela. — Venha — disse ele, levantando-se e estendendo a mão. Ela arqueou a sobrancelha. — Para onde? — Quero te mostrar algo. Amélia hesitou. A casa da matilha já era grande o suficiente para fazê-la se sentir deslocada, e agora ele queria levá-la para outro lugar? Mas sua curiosidade foi mais forte do que a razão. Ela pegou a mão dele com relutância, sentindo o calor de sua pele contra a sua. Damian a guiou por um caminho estreito que passava entre árvores e arbustos bem cuidados. O ar ali era diferente, carregado com um aroma suave de flores misturado ao cheiro amadeirado da floresta ao redor. Quando saíram da trilha, Amélia se deparou com um jardim oculto. Era magnífico. Caminhos de pedras sinuosas cortavam um gramado impecável, levando a pequenos cant
Amélia observava Damian com uma expressão desconfiada. Algo nele havia mudado no instante em que ela riu da pergunta sobre seu "lobo". O jeito como ele a olhava agora era diferente—como se visse nela algo que nem mesmo ela conhecia. — Você está me assustando — ela disse, cruzando os braços. Damian hesitou. Parte dele queria deixar esse assunto para outro momento, mas outra parte sabia que o tempo estava se esgotando. Se ela realmente não sabia a verdade, então era questão de tempo até seu corpo forçá-la a encará-la da pior maneira possível. — Eu preciso que você confie em mim — ele disse, finalmente. Ela riu sem humor. — Você realmente acha que posso confiar em alguém que me trouxe para cá contra minha vontade? Damian segurou o olhar dela, como se tentasse encontrar um jeito de fazê-la entender. — Se eu não quisesse o seu bem, acha que eu me importaria se você soubesse ou não quem realmente é? — Sua voz era calma, mas carregava uma firmeza que fez Amélia vacilar. Ela abriu a