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O sacrifício da Luna órfã
O sacrifício da Luna órfã
Por: E.Lima
Capítulo 1 - O coração esquecido de Antiope

Antiope era uma vila cercada por colinas ondulantes e bosques de carvalhos tão antigos quanto o próprio tempo. As casas de pedra, cobertas de trepadeiras floridas, pareciam emanar um calor acolhedor, mas sob essa aparente tranquilidade escondia-se um medo enraizado. O nome do Alfa ressoava como um trovão nas conversas sussurradas. Ele governava não apenas a vila, mas também os corações de seus habitantes, que andavam sempre com olhares baixos e passos apressados, como se até mesmo o vento pudesse levar suas palavras para ouvidos errados.

No meio dessa realidade opressora, vivia Amélia.

Desde muito jovem, a vida lhe ensinara a sobreviver com pouco. Seus pais foram arrancados dela antes mesmo que tivesse idade para compreender a dor da perda. A memória deles era um borrão distante, fragmentos de vozes e risadas que às vezes vinham nos sonhos, apenas para desaparecer ao amanhecer. A vila, que deveria ter sido seu lar, virou um lugar onde não havia espaço para uma órfã. Sem ninguém que a quisesse, fugiu para a floresta, onde aprendeu a decifrar os sussurros do vento e a se esconder melhor do que qualquer presa.

No início, foi um inferno.

As noites eram longas e gélidas, e o estômago vazio se tornou um companheiro constante. Chorava baixinho, temendo que qualquer som denunciasse sua presença a predadores — humanos ou não. Mas, com o tempo, o medo deu lugar à adaptação. Aprendeu a ouvir o canto dos pássaros para prever a aproximação de estranhos, a distinguir frutas comestíveis das venenosas, a construir refúgios entre raízes e galhos caídos. A natureza se tornou sua professora, sua aliada e, em muitos momentos, sua única amiga.

Mas a solidão era um monstro faminto.

A ausência de vozes, de toques, de qualquer laço que a ligasse a outro ser humano consumia seus dias pouco a pouco. Havia momentos em que se perguntava se ainda sabia falar ou se sua voz havia sido engolida pelo silêncio da mata. A vida era uma batalha constante entre o desejo de permanecer escondida e a necessidade de algo mais.

Foi então que tudo mudou.

Naquela manhã, enquanto colhia frutas silvestres perto do rio, sentiu um cheiro diferente no ar. Madeira queimada. Sangue. Passos pesados quebrando galhos. Um aviso de perigo. O instinto, lapidado pela sobrevivência, fez seu corpo reagir antes mesmo que a mente compreendesse. Amélia se encolheu atrás das árvores, espiando por entre as folhas com o coração martelando contra as costelas.

Foi então que o viu.

Um homem de postura imponente, cabelos escuros como a noite sem estrelas e olhos de âmbar. Sua presença era sufocante, como uma tempestade prestes a desabar. Ele não era um caçador qualquer. Seu cheiro era forte demais, poderoso demais. Um lobo.

O filho do Alfa.

Seu nome era Damian.

Ele se movia com uma graça predatória, como se cada passo fosse calculado. Os outros lobos atrás dele mantinham-se um pouco afastados, esperando ordens, mas era claro que ele era o líder ali. Amélia percebeu que prender a respiração não a tornaria invisível, mas não conseguiu evitar. Algo nele a assustava mais do que qualquer animal que já encontrara na floresta.

Então, como se o próprio vento tivesse sussurrado seu esconderijo, a voz dele cortou o silêncio:

— Sei que está aí.

Amélia congelou.

— Se quisesse te ferir, já teria feito.

As palavras foram calmas, mas carregavam um peso que fez a espinha dela se arrepiar. Seu corpo gritava para correr, mas seu instinto dizia que seria inútil. Ele a encontraria, não importava o quanto tentasse fugir.

Então, respirando fundo, saiu das sombras.

Seus olhos castanhos encontraram os dele, e por um momento, um estranho silêncio pairou entre eles. Não era apenas medo que a fazia hesitar — havia algo na maneira como ele a olhava. Como se a estivesse reconhecendo.

Damian inclinou a cabeça levemente, observando cada detalhe de sua aparência desgastada pela vida na floresta. A sujeira no rosto, os cabelos desalinhados, a roupa esfarrapada. Mas não era pena que brilhava em seus olhos dourados. Era algo mais profundo.

— Há quanto tempo está sozinha? — perguntou.

Sua voz não era rude, nem impaciente. Havia curiosidade ali, um interesse que Amélia não conseguia entender.

Ela não respondeu.

Porque nem ela sabia exatamente quanto tempo fazia. O tempo na floresta se media em estações, não em anos.

Damian soltou um suspiro, como se já esperasse aquele silêncio. Seus olhos, no entanto, mantiveram-se fixos nela. Havia algo naquele olhar que a fazia se sentir exposta, vulnerável de uma forma que nunca estivera antes.

— Não importa — ele disse por fim. — Agora, você vem comigo.

Ela arregalou os olhos, o coração acelerando ainda mais.

— O quê?

Ele não repetiu. Apenas deu um passo à frente, e o instinto de Amélia gritou. Retrocedeu automaticamente, mas encontrou apenas o tronco áspero de uma árvore às suas costas.

— Não vou machucar você — Damian garantiu, a voz mais baixa agora. Mas havia uma firmeza nela que não deixava espaço para discussão.

Amélia não sabia por que sentia que não tinha escolha. Talvez fosse o cansaço de tanto tempo fugindo. Talvez fosse o olhar dele, que carregava uma certeza que ela não entendia.

Ou talvez fosse o que ela não percebia ainda: o laço invisível que já os conectava.

Damian soube no instante em que a viu. O vínculo de companheiros foi imediato, um choque profundo que percorreu seu corpo como fogo e gelo ao mesmo tempo. Ele não esperava por isso. Não ali, não daquele jeito.

Mas Amélia não tinha idade suficiente para reconhecer esse laço.

E isso mudava tudo.

Damian não podia reivindicá-la. Não agora.

Mas também não podia deixá-la para trás.

Amélia soube, naquele instante, que sua vida pacata — e sofrida — em Antiope estava prestes a mudar para sempre.

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