Amélia tentou lutar contra o sono.
Se dormisse, talvez acordasse em uma armadilha. Talvez descobrisse que tudo aquilo — o banho quente, as roupas limpas, a comida abundante — fosse apenas um truque cruel antes de seu verdadeiro destino. Ela já ouvira histórias assim antes. Promessas de conforto, de segurança, apenas para serem substituídas pelo frio da traição. Sua vida lhe ensinara a desconfiar da bondade, a questionar gestos gentis. Sobrevivência não permitia ilusões. Mas o cansaço, esse inimigo silencioso, foi mais forte. Seu corpo cedeu, vencido pelo esgotamento acumulado de tantas noites mal dormidas, de tantos dias fugindo, se escondendo, sempre à beira do colapso. O colchão, macio como um abraço esquecido, envolveu-a, e, antes que pudesse resistir, seus olhos se fecharam. O sono veio como uma onda morna, arrastando-a para um lugar onde, por um instante, não havia medo. Quando o sol começou a se erguer no horizonte, uma fragrância familiar despertou seus sentidos. Era um cheiro quente e acolhedor, algo que fez seu coração apertar em um reconhecimento doloroso. Ela abriu os olhos devagar. O quarto, banhado pela luz dourada da manhã, parecia menos ameaçador à luz do dia. Não havia sombras espreitando nos cantos, nem sinais de perigo iminente. A madeira polida dos móveis refletia os primeiros raios de sol, dando à cena uma serenidade quase irreal. Sobre uma pequena mesa ao lado da cama, um café da manhã havia sido deixado para ela. Pão recém-assado, frutas suculentas, mel escorrendo de uma colher de madeira. E então, o aroma que a fez congelar. Canela. Seu peito se apertou. A última vez que sentira aquele cheiro fora em uma manhã distante, quando sua mãe ainda a segurava nos braços, quando a vida era simples e segura. Antes de tudo ser arrancado dela. A memória veio com força, uma cena vívida de um tempo que parecia pertencer a outra existência. Sua mãe, cantarolando baixinho, preparando pães quentes para o café da manhã. O calor do forno, o brilho da luz matinal entrando pela janela, o riso suave que ecoava pela casa. O toque de dedos gentis afastando mechas de cabelo de seu rosto sonolento. Engolindo em seco, Amélia afastou as cobertas. Seus pés descalços tocaram o chão de madeira fria, trazendo-a de volta ao presente. Foi então que notou algo dobrado sobre a poltrona ao lado. Um vestido. Era azul, de um tom profundo, como o céu de inverno quando as estrelas começam a surgir. O tecido parecia macio ao toque, com delicados bordados prateados, como pequenos flocos de neve espalhados pelo tecido. Ela hesitou. Por que alguém como Damian se importaria em lhe dar algo tão bonito? Seu instinto lhe dizia para não aceitar. Não confiar. Mas ao mesmo tempo, havia algo na suavidade do tecido, no cuidado dos detalhes, que a fazia sentir algo que não sabia nomear. Com movimentos lentos, quase relutantes, pegou o vestido e o vestiu. O tecido deslizou sobre sua pele como água, adaptando-se a seu corpo de uma forma que parecia ter sido feito para ela. Por um breve momento, ela se sentiu… bem. Não era só pelo conforto do vestido, mas pela lembrança que ele despertava. O reflexo no espelho mostrava uma versão dela que quase não reconhecia. Não a garota exausta e assustada, mas alguém mais forte, mais viva. Mas então, o cheiro da comida chamou sua atenção novamente. Sentou-se à mesa e, com dedos hesitantes, pegou um pedaço de pão. Ele ainda estava morno, a casca dourada, a textura macia. Ao levá-lo à boca, um sabor esquecido explodiu em sua língua. A doçura do mel, a maciez do trigo, o toque sutil de canela… As lágrimas vieram antes que ela pudesse detê-las. A dor da lembrança foi avassaladora. Durante anos, a fome fora uma constante em sua vida. O pão duro e envelhecido, as sobras disputadas, a necessidade de racionar cada pedaço como se fosse o último. Comer sem medo de que a comida acabasse era um luxo que há muito não conhecia. Mas agora, aquele simples café da manhã a lembrava de algo precioso que havia perdido há muito tempo: a sensação de lar. Um soluço escapou de seus lábios antes que pudesse contê-lo. Foi nesse momento que a porta se abriu. Damian entrou, sua presença preenchendo o ambiente. Ele se movia com uma confiança tranquila, mas seus olhos carregavam algo mais — uma observação cuidadosa, como se estivesse avaliando sua reação. Seu olhar pousou nela — nos olhos úmidos, na expressão vulnerável, na maneira como suas mãos tremiam ao segurar o pão. Por um instante, ele apenas a observou. O silêncio entre eles não era desconfortável, mas denso, carregado de perguntas não ditas. E então, com a voz baixa e firme, disse: — Eu sabia que ia gostar. Havia algo naquela frase que fez seu estômago revirar. Não era uma provocação, nem um tom de superioridade. Era outra coisa. Certeza. Como se ele soubesse mais sobre ela do que deveria. Como se, de alguma forma, já tivesse previsto sua reação antes mesmo que ela própria pudesse entendê-la. Amélia abaixou os olhos, confusa com as próprias emoções. O que Damian realmente queria? E, mais importante, por que parte dela queria saber a resposta?O silêncio entre eles era espesso, quase palpável.Não um silêncio comum, mas um carregado de tensão e perguntas não ditas.Amélia continuou comendo, cada mordida trazendo uma avalanche de sentimentos confusos. O medo ainda estava ali, enraizado em seu peito como um espinho que se recusava a sair. Mas a fome era mais forte, e ela não desperdiçaria aquela oportunidade.Cada pedaço de pão que mastigava parecia dissolver um pouco da rigidez em seus músculos. A sensação de comida quente no estômago era algo que ela não sentia há muito tempo. Era quase estranho.Mas a presença de Damian impedia que relaxasse completamente.Ele permanecia parado perto da porta, os braços cruzados sobre o peito largo, observando-a com um olhar indecifrável.Não parecia apressado, nem impaciente. Apenas… atento.Ela não sabia dizer se isso era melhor ou pior.Depois de alguns instantes, ele finalmente falou:— Há quanto tempo você estava sozinha?O som de sua voz quebrou o silêncio como uma pedra atirada em u
Amélia passou o resto da manhã tentando afastar os pensamentos que insistiam em invadir sua mente.Damian.Havia algo nele que a fazia sentir-se inquieta. Ele era perigoso, disso ela tinha certeza. Mas, ao mesmo tempo, havia uma força nele que a atraía de uma forma que ela não compreendia. Seu cheiro, sua presença, o modo como seus olhos âmbar pareciam enxergar além de sua pele… tudo nele despertava nela algo primitivo, algo que não fazia sentido.Ela balançou a cabeça, irritada consigo mesma. Não podia se permitir esse tipo de distração.Decidida a entender melhor o lugar onde estava presa — porque, no fundo, ainda se sentia cativa —, resolveu explorar a casa da matilha. Não era a decisão mais segura, mas, afinal, ela havia sobrevivido anos sozinha na floresta. Um passeio não deveria ser tão desafiador.Caminhou pelos corredores de pedra, observando os detalhes. O lugar era imenso, com móveis de madeira escura, tapeçarias pesadas cobrindo as paredes e janelas amplas que deixavam a lu
O encontro com o Alfa ainda pairava na mente de Amélia como uma sombra persistente. Mesmo depois que ele desapareceu pelo corredor, deixando para trás um rastro de tensão e perguntas sem respostas, ela permaneceu imóvel por um longo instante.O que ele quis dizer com aquilo? "Espero que saiba no que está se metendo."A frase ecoava em sua mente, carregada de advertência e algo mais… algo que ela não conseguia definir. Mas ficar parada remoendo palavras não a levaria a lugar nenhum. Inspirando fundo, afastou as dúvidas e retomou sua caminhada.Ainda não conhecia os limites daquela casa imensa, e algo dentro dela queimava de curiosidade. Seu instinto dizia que, por trás das paredes de pedra e dos olhares desconfiados da matilha, havia segredos esperando para serem descobertos.Ela seguiu explorando.Os corredores pareciam se estender infinitamente, alguns estreitos e escuros, outros amplos e iluminados por janelas altas. Ocasionalmente, ela encontrava uma sala abandonada ou uma passagem
O dia já estava avançado quando Damian subiu as escadas em direção ao quarto de Amélia. O aroma do almoço recém-preparado ainda pairava no ar, misturando-se ao cheiro amadeirado característico da casa da matilha.Ele hesitou por um momento diante da porta fechada. Desde que a trouxera para ali, tinha se esforçado para manter certa distância, dar-lhe tempo para aceitar sua nova realidade. Mas agora… agora queria vê-la.Queria que almoçassem juntos.Damian não saberia dizer ao certo o porquê. Só sabia que aquela garota lhe despertava sentimentos conflitantes — e evitá-la não estava funcionando.Bateu na porta uma vez. Depois outra.Nenhuma resposta.Franzindo o cenho, girou a maçaneta e entrou.O quarto estava vazio.No mesmo instante, algo dentro dele se retesou.O cheiro dela ainda estava ali, fresco no ar, mas a ausência de sua presença fez um frio percorrer sua espinha. Seu olhar percorreu o cômodo rapidamente, procurando qualquer sinal de que ela pudesse ter saído por vontade própr
Amélia sentia o olhar intenso de Damian sobre ela, mas fingia não perceber. Algo nele a desconcertava de um jeito que não conseguia explicar. Ele era enigmático, controlador e, ao mesmo tempo, tinha um jeito estranho de cuidar dela. — Venha — disse ele, levantando-se e estendendo a mão. Ela arqueou a sobrancelha. — Para onde? — Quero te mostrar algo. Amélia hesitou. A casa da matilha já era grande o suficiente para fazê-la se sentir deslocada, e agora ele queria levá-la para outro lugar? Mas sua curiosidade foi mais forte do que a razão. Ela pegou a mão dele com relutância, sentindo o calor de sua pele contra a sua. Damian a guiou por um caminho estreito que passava entre árvores e arbustos bem cuidados. O ar ali era diferente, carregado com um aroma suave de flores misturado ao cheiro amadeirado da floresta ao redor. Quando saíram da trilha, Amélia se deparou com um jardim oculto. Era magnífico. Caminhos de pedras sinuosas cortavam um gramado impecável, levando a pequenos cant
Amélia observava Damian com uma expressão desconfiada. Algo nele havia mudado no instante em que ela riu da pergunta sobre seu "lobo". O jeito como ele a olhava agora era diferente—como se visse nela algo que nem mesmo ela conhecia. — Você está me assustando — ela disse, cruzando os braços. Damian hesitou. Parte dele queria deixar esse assunto para outro momento, mas outra parte sabia que o tempo estava se esgotando. Se ela realmente não sabia a verdade, então era questão de tempo até seu corpo forçá-la a encará-la da pior maneira possível. — Eu preciso que você confie em mim — ele disse, finalmente. Ela riu sem humor. — Você realmente acha que posso confiar em alguém que me trouxe para cá contra minha vontade? Damian segurou o olhar dela, como se tentasse encontrar um jeito de fazê-la entender. — Se eu não quisesse o seu bem, acha que eu me importaria se você soubesse ou não quem realmente é? — Sua voz era calma, mas carregava uma firmeza que fez Amélia vacilar. Ela abriu a
Outro uivo cortou o ar, carregado de algo sombrio e urgente. Damian ficou rígido, os olhos escurecendo com um brilho feroz, como se seu instinto tivesse sido acionado no mesmo instante. Amélia sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O som parecia distante, mas, de alguma forma, também próximo o suficiente para fazer seu coração disparar. Ela abriu a boca para perguntar o que estava acontecendo, mas antes que qualquer palavra escapasse, Damian deu um passo à frente. Com um movimento surpreendentemente delicado para alguém tão intenso, ele segurou seu queixo entre os dedos, erguendo seu rosto suavemente. Amélia prendeu a respiração. O olhar dele era diferente agora, mais profundo, mais íntimo. Não havia apenas preocupação em seus olhos, mas algo mais… algo que ela não conseguia decifrar. Então, sem aviso, Damian inclinou-se e encostou seus lábios nos dela. Foi
O coração de Amélia martelava no peito enquanto os olhos frios do estranho permaneciam fixos nela.— O que quer dizer com isso? — sua voz saiu firme, mas por dentro ela lutava contra o medo crescente.O homem inclinou a cabeça levemente, como um predador analisando sua presa.— Você não faz ideia, não é? — Ele riu, um som baixo e cheio de escárnio. — Isso torna tudo ainda mais interessante.Antes que pudesse reagir, ele se moveu. Rápido. Rápido demais.Amélia tentou recuar, mas antes que pudesse dar mais um passo, um estrondo ecoou pela casa.A porta foi arrombada com brutalidade, batendo contra a parede com um impacto que fez as janelas vibrarem.E então, ele estava lá.Damian.Seus olhos brilharam com um dourado feroz, sua respiração pesada e sua presença dominadora preenchendo todo o espaço. O cheiro dele—amadeirado e selvagem—misturou-se ao ar carregado de tensão.E ele estava furioso.