CAPÍTULO 3

– Eu vou o quê? – perguntei.

As palavras de Kevin tinham me alcançado pela metade. Eu sabia o significado de cada uma delas, mas não fazia muito sentido sua junção em uma frase. Isso porque ele tinha falado em português comigo, imagine se fosse um estrangeiro qualquer, ou pior, um rapper estrangeiro cuspindo as palavras freneticamente. 

– É! – respondeu sem pretensão. – Você vai ocupar uma suíte lá em cima! Venha, vou te mostrar!

Kevin passava uma confiança absoluta por meio do seu tom de voz e do seu semblante, o que foi essencial para que eu não saísse correndo dali achando que aquela era uma tramoia de garotos ricos para fazer algum tipo de mal com uma garota pobre e inexperiente. Seria trágico! 

Imaginei minha irmã recebendo a notícia pelo telefone e tendo que contar à minha mãe. Cruel demais. Pobre garota! Duvidei que a matriarca da minha família dissesse “eu avisei!” diante de tamanha dor, mas isso não mudaria o fato de que, nessa realidade paralela, ela teria razão de ter desconfiado de minha viagem.

– Espera... – pedi estupefata. 

– Meu pai pediu para te dizer que sente muito pelo transtorno. Posso pegar as malas?

"Posso pegar as malas?". Isso ecoou na minha cabeça. Tudo estava indo muito rápido. Eu precisava me sentar novamente naquele sofá fofinho onde uma gota de ketchup faria um baita estrago, e refletir sobre aquela informação. 

– Pode! 

Não sei com que pensamento proferi essas duas sílabas, o fato é que em minutos eu estava em uma ampla suíte no andar de cima de uma mansão em Beverly Hills.

Aquela era uma casa familiar, não um hotel como os muitos que havia na região (eu tinha notado através da janela do carro durante o caminho até ali), portanto, isso soava estranho! Eu não era uma conhecida para me instalar ali. 

– Estou um pouco confusa! – disse ao colocar minha bolsa de mão em cima da ampla cama onde uma colcha creme estava estendida. 

O ambiente estava limpo, e logo notei que era arejado e bem iluminado. Havia um abajur cor de carmim em cima do criado mudo. 

Só de conseguir externar minha confusão, me senti melhor. 

– Bem... eu admito que estou tão confuso quanto você. Cheguei ontem da faculdade, e meus pais me pediram para buscá-la no aeroporto porque você iria trabalhar na lanchonete e se hospedaria aqui.

– Você faz faculdade de quê?

Era uma pergunta meio aleatória, entretanto, a fiz não apenas por educação (meus pais haviam me ensinado a demonstrar interesse pelos outros e não só falar de mim, pois isso não era educado), mas também por curiosidade. A figura de Kevin me deixava curiosa, e era bom focar em outra coisa que não fosse a surpresa que eu acabara de ter, e que me deixava confusa e perdida. 

– Administração, para aprender a gerir os negócios da família – o anfitrião deu de ombros. – Nem todo mundo aqui em casa gosta de cozinhar, ou melhor, nem todo mundo sabe – ele sorriu e eu percebi que as veias de seu braço não eram as únicas coisas extremamente atraentes nele. – Você cozinha, não é?!

– Cozinho, sim. Eu vim justamente para isso. Muito interessante!

– Cozinhar? Concordo. 

– Na verdade estava falando da sua faculdade de administração. Quer dizer, suponho que seja interessante.

Ele não parecia tão animado com isso, mas supus que fosse porque final de semestre era algo estressante para universitários. 

– Yale.  

– O quê?

– Estudo na Universidade de Yale. Connecticut.

Eu não era especialista em geografia (e continuo não sendo), mas sabia que isso ficava bem longe dali, e me lembrava de ter ouvido falar que aquela era uma excelente universidade, o que mostrava que Kevin devia ser mais inteligente do que eu supunha. 

– O verão chegou e com ele minha hora de voltar pra casa por alguns meses. 

Constatei que a vida dele era do tipo divertida, mais do isso até, badalada.

Seu estilo despojado demonstrava essa ideia. Sua agenda na Califórnia devia estar lotada demais para que ele estivesse perdendo seu tempo ajudando os pais a resolver um problema de trabalho. Isso não significava que eu me considerasse um problema, ou que ele demonstrasse isso. Mas aparentemente, Kevin era aquele tipo de cara popular, que jogava basquete ou talvez futebol americano muito bem e fazia sucesso com as mulheres. Sucesso esse merecido! Bem... essa última parte eu estava tirando por mim mesma, pois a mim ele havia agradado de imediato. 

– Mas voltando a falar sobre o seu dilema – ele continuou. – Minha mãe está chegando para conversar com você sobre isso tudo. Se não se importa, vou tomar um banho para refrescar – apontou para o lado de fora do corredor para demonstrar que estava saindo. – Está muito quente, não é?!

“Muito, muito quente!”, pensei. Quente a ponto de desejar colocar uma forma de gelo na testa. 

Fiquei sem jeito com a simples menção a um banho. Kevin era um estranho, afinal, embora tivesse feito parte de um momento importante da minha vida: minha chegada a Califórnia. Apesar disso, nós nos conhecíamos há apenas alguns momentos. 

– Obrigada! – eu disse.

– Disponha! – foi sua resposta.

Sentei-me na cama e esperei que alguém surgisse. Eu queria ter perguntado se eles costumavam hospedar funcionários na casa, se isso era comum ali, entretanto, havia esquecido. Era muita informação para pouco tempo. Um novo país, um novo trabalho, e agora essa notícia inesperada. 

O que ouvi mesmo foi o som do chuveiro de Kevin sendo ligado. Isso me fez saber a proximidade de nossos quartos. Eu já podia chamar assim?

A ideia de me hospedar naquele ambiente era estranha demais para quem esperava um quartinho escuro e abafado nos fundos de um estabelecimento comercial. Era melhor, é claro, mas muito mais assustador. Eu não conhecia aquela família, embora meu cunhado os tivesse recomendado muito. Eles poderiam ser exploradores de mocinhas indefesas (que desejariam me prostituir parar americanos velhos e loiros que gostavam de cassinos), assediadores ou até mesmo serial killers. Apertei minha própria mão ao cogitar essa última possibilidade. Será que eu deveria sair correndo dali e pegar o primeiro transporte de volta ao aeroporto?!

Caso conseguisse fugir a tempo, eu é que mataria Peter quando voltasse para o Rio. Colocar a própria cunhada em uma encrenca daquelas era algo imperdoável. Mas disse a mim mesma que me acalmasse, pois não tinha certeza de que aquilo era uma cilada. O melhor a fazer agora era esperar, ou como dizíamos no Brasil, pagar para ver. 

Levantei e abri o armário vazio. Ele era belo e feito da mesma madeira que a cama ampla. Os móveis eram planejados, o que causava uma sensação de exclusividade, aumentando a aura de elegância e singularidade da casa. 

Novamente me sentei na cama, desta vez mais à vontade. 

– Marta! – exclamou uma voz feminina me tirando do meu torpor.

– Lena! – respondi quando ela surgiu em meu campo de visão, e me ajeitei para não parecer abusada.

Tratava-se de uma mulher de meia idade com um rosto amendoado. Seus cabelos eram negros, mas agora as pontas estavam um pouco mais claras do que a raiz. Eu tinha visto uma foto dela que meu cunhado me mostrara, e na verdade era seu rosto que eu esperava no aeroporto ao invés do de seu filho. Ah, e também tinha colocado os olhos naquele retrato dela com o marido e Kevin na sala há pouco.

Ela me abraçou, me pegando de surpresa, pois eu não esperava um gesto tão acalorado de sua parte. Senti seu perfume leve, mas que denunciava ser caro. 

– Houve um imprevisto em seu quarto nos fundos da lanchonete, por isso você se hospedará aqui. Se não considerar isso um problema, é claro! Desculpe não tê-la avisado antes.

– O que aconteceu? – a interpelei.

Eu precisava ser prática, pois, no final das contas, era uma funcionária, não uma visitante. Sabia meu lugar, até mesmo porque, não era meu primeiro emprego. Havia diferenças entre patrões e empregados. Burguesia e clero. Ok, essa última parte era muito “aula de história”, feudalismo e tal, mas não deixava de ser uma verdade. Eu era como uma Elizabeth Bennet entrando em Pemberley. Falando nisso, havia lido em um jornal que dali alguns meses estrearia a série de “Orgulho e Preconceito”, um dos meus livros favoritos, e que tinha o mocinho mais sexy existente. Mr. Darcy era rico e belo, semelhante ao rapaz que eu acabara de conhecer. 

– Para ser sincera, há algumas manchas de mofo lá. Nós temos muita consideração por Peter e pelos pais dele, que foi quem nos ajudou quando chegamos aos Estados Unidos, por isso não podemos colocar você em qualquer lugar. Então decidimos trazê-la para nossa casa. Aqui você terá todo o conforto em suas horas de folga. Gostaria de conhecer a casa?

– Bem, eu não tenho asma, nem nada! – respondi, embora a ideia de ficar em um lugar mofado não fosse agradável. 

Eu sabia que meu cunhado tinha bastante moral com a família, mas não imaginava que fosse tanta, nem que isso respingaria em mim a esse ponto. 

– Kevin a encontrou com facilidade no aeroporto? – Lena ignorou minha última fala.

– Sim! – disse ainda confusa.

"Ele foi incrível!", resisti a dizer, e também: “Seu filho é muito gato!”. 

Passamos pelo corredor e ela apontou o quarto dele que ficava praticamente de frente para o meu. 

– Que bom! Ele voltou para casa ontem, pouco antes de nosso último contato por telefone. Então lhe dei a tarefa de buscá-la. Folgo em saber que foi um bom chofer. 

– É, ele me disse isso! Tenho que agradecê-lo pela gentileza. 

Havia ainda um outro andar, onde ficava o quarto do casal e um escritório, conforme ela me disse, além de uma sacada mais ampla do que as demais (todos os dormitórios tinham uma), mas nós não fomos até lá. Será que era nesse andar que ficavam as mocinhas escravizadas? E pior: seria eu a próxima? Mas essa ideia já tinha saído da minha cabeça.

Voltamos à sala que eu já conhecia, depois fui apresentada à sala de jantar, à cozinha grande cujos aparatos me chamaram a atenção, e a uma terceira sala, esta que possuía uma televisão maior do que qualquer outra que eu já tivesse visto.

– Essa saleta nós usamos para assistir filmes. Quando nosso Kevin está em casa, ele costuma trazer os amigos para cá, e é uma festa regada a baldes e baldes de pipoca – seu olhar se iluminou. – Gosto da casa cheia de jovens, rindo e se divertindo. E esta temporada está só começando. Acho que você também irá gostar.

– Ah, sim – respondi sem jeito, pois eu não fazia parte desses “jovens” a quem ela se referia. – Sua casa é linda!

– Obrigada, querida! Tudo que conquistamos foi com muito suor. 

– A lanchonete fica longe daqui?

Eu estava curiosa sobre o lugar onde iria trabalhar. 

– A cerca de alguns minutos de carro. Você deve estar com fome, vamos fazer um lanche?

Aceitei, e nós fomos até a cozinha, onde havia uma pequena mesa para lanches rápidos. Ela se sentou de frente para mim ao me servir pão com patê de atum. Nada de pasta de amendoim, pois aquela era uma casa de brasileiros. 

– Eu confesso que estou surpresa por estar aqui! – disse. 

Lena me passava a confiança necessária para isso. Eu havia simpatizado com ela. 

– Imagino que deva ser estranho se hospedar na casa de desconhecidos, mas nós queremos que sua estadia seja a melhor possível. Como disse, temos uma consideração enorme pela família do seu cunhado, por isso faremos tudo para que seu verão seja inesquecível.

Um verão inesquecível... essas eram lindas palavras que poderiam ser o título de algum filme romântico.

– Agradeço muito, e espero suprir suas expectativas.

Já entardecia, e eu começava a sentir o cansaço da viagem, embora o horário da Califórnia fosse de quatro horas a menos do que o do Rio de Janeiro. Lena adivinhou isso. 

– Vou deixá-la descansar! O banheiro anexo ao seu quarto tem tudo que você precisa: sabonete, shampoo, condicionador... e o que precisar ser reposto, peço que avise para que eu adicione à lista. Eu mesma faço as compras da casa. 

– Obrigada.

Ela caminhou em direção à porta que levava à sala, e quando chegou lá após dar alguns passos, virou-se e disse:

– Até amanhã, Marta. See you tomorrow!

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