Capítulo 4

E nós realmente nos vimos no dia seguinte, que seria o meu primeiro de trabalho na lanchonete Milk Shakespeare.

O que sucedera à visita de Lena ao meu novo quarto foram momentos de descoberta. Eu viajara pelo cômodo, analisando novamente e com mais atenção, seus móveis, sua janela e sobretudo a vista que esta última oferecia de Beverly Hills. 

Nunca na minha vida eu tinha sido privilegiada com uma boa vista. Na infância, a janela do quarto que dividia com minha irmã dava para um muro coberto de lodo. Já mais tarde, quando fui viver com ela e meu cunhado em seu apartamento, a vista que eu tinha era para o estacionamento do prédio. A fila de carros não se comparava ao céu azul e às mansões vizinhas, nem ao verde que as circundava. Era um novo mundo para mim, cheio de descobertas.

– Vê se descola um namorado – minha mãe dissera na última vez que nos falamos ao telefone antes de eu viajar. Ela estava aderindo gírias ao seu vocabulário. – E, por favor, que seja um rapaz de bem! Digno, honesto, trabalhador – ela continuara a lista de qualidades pretendidas.

E eu revirara os olhos com o aparelho na mão. Minha intenção ao viajar era pura e simplesmente juntar dinheiro para a faculdade de gastronomia. Nada de aventuras sexuais com gringos, ou com brasileiros que vivessem ali. Eu era meu próprio foco.

– Me deixa, mãe! – respondera com mais exasperação do que desejava.

– Não falei por mal, mas que eu adoraria ter mais um genro americano, ah, eu adoraria.

– Peter não basta?

– Bem, eu tenho duas filhas. Peter não pode namorar as duas.

– Estou viajando por outras razões.

– Sei disso! Mas eu ficaria muito mais tranquila de saber que você não está sozinha em um lugar tão distante de nós. Só que é aquilo que eu disse... digno, honesto...

– Trabalhador – eu completara.

– E respeitador, principalmente! Nada de mão boba.

– E se esse genro fosse um gangster, a senhora também ficaria tranquila?

Minha mãe não soubera responder.

O banheiro que fazia parte da minha suíte era amplo como o quarto, e eu tomei meu segundo banho nele.

Ao descer um pouco sem jeito, dei de cara com Kevin na cozinha. Eu estava com meu caderno na mão, nele tinha escrito um trecho de Linger[1], música cuja letra eu estava aprendendo.

– Bom dia! – ele disse.

O achei especialmente bonito naquela manhã, como se fosse a primeira vez em que eu o estivesse vendo, e não a segunda. Ele vestia uma regata preta que me dava a visão de seus braços e me mostrava que eu estava certa: ele não era tão magro quanto podia aparentar. Ele era na medida certa.

– Bom dia! – respondi sem jeito.

– Minha mãe deixou um bolo pronto.

– É ela quem prepara as coisas?

– Nós não temos empregados.

Isso me deixou insegura, pois se houvesse criadagem ali, talvez eu me sentisse parte de algum grupo, afinal eu era uma criada. Esperava fazer minhas refeições em uma pequena copa à parte, não naquela cozinha ou na sala de jantar, mas entendi que as coisas seriam diferentes do que eu imaginara ao receber a notícia de que me hospedaria ali.

Lena e o marido, que eu ainda não conhecia, saíam bem cedo para a lanchonete para adiantar as coisas para o almoço enquanto os funcionários não chegavam. Constatei que eles trabalhavam muito mais do que chefes comuns costumavam trabalhar.

– Descansou? – perguntou Kevin.

– Muito!

Minha nova cama era muito macia, e os travesseiros fofinhos. Isso aliado ao cansaço, rendera uma excelente noite. Agora eu estava cheia de energia.

Me sentei para tomar o café.

– Hum!

– O que foi?

– O café é igualzinho ao do Brasil.

– É! Nós não perdemos o costume. Sabe como é, saímos do nosso país, mas nosso país não saiu de nós – ele bebeu um gole de sua xícara. – E fui eu quem fez.

Sorri. Estava como eu gostava: forte. Estou falando do café.

– Animada para o dia de trabalho?

– Com um friozinho na barriga. Alguma celebridade já foi almoçar lá?

– Julia Roberts, conhece?

– É claro que sim! Já aluguei a fita de “Uma Linda Mulher” por duas vezes.

– Gosto desse filme. Se passa aqui em LA.

– Pois é!

Pensei em perguntar quais eram os planos dele para aquele dia, mas me abstive, pois não queria parecer intrometida. Provavelmente ele iria surfar com seus amigos (ele tinha cara de quem sabia surfar), ou fazer uma festa naquela piscina enorme. Eu sabia que jovens ricos apreciavam festas assim.

Lavei o prato e a xícara que usara e me preparei para sair.

– Bem, estou indo.

– Até às quatro da tarde – disse Kevin virando-se.

– Às quatro? – questionei.

– Minha mãe me pediu para levá-la para conhecer a cidade.

Eu não sabia que o serviço de guia turístico estava incluso aos benefícios do meu emprego, e fiquei mais uma vez surpresa.

A família Fisher era surpreendente – eu achei curioso que eles tivessem esse sobrenome americano, mas se a Vera também era Fisher e era brasileira, por que não aquela família?! – Kevin Fisher era um nome belo como seu dono.

– Sério?

– Sim! Se você quiser, é claro.

– Bem, eu não tenho grana pra sair ainda.

A temporada estava apenas começando, mas a ideia de passear um pouco me animava, pois eu estava ansiosa demais para desbravar tudo. Não parecia a garota acuada que entrara no avião pouco tempo antes.

– Fica tranquila! Ela não vai descontar nada do seu salário. É por minha conta.

Isso era bom, pois eu não podia me dar a esse luxo. Meu dinheiro tinha um destino certo chamado faculdade, até mesmo porque, diferente dele, eu não tinha pais empresários, tampouco morava em uma propriedade enorme em um bairro nobre, ou nobríssimo.

– Até mais – concluí.

E saí pela primeira vez da mansão em Beverly Hills.

**

A lanchonete era linda. Não tinha a mesma suntuosidade da casa onde os donos moravam, mas era elegante e charmosa à sua maneira.

Era bem diferente da sorveteria onde eu trabalhara por anos, embora esta também tivesse sua beleza.

A arquitetura dela era aberta para que os clientes tivessem uma vista da cidade enquanto se alimentavam. Era, portanto, bem arejada, e eu constatei isso antes mesmo de adentrá-la.

Respirei fundo, sorri, e então entrei pela porta dos funcionários. Lena me avistou de imediato.

– Seja bem-vinda, querida! – ela se virou para chamar alguém que não estava no recinto – João!

Meu chefe surgiu, então, e me estendeu a mão. Ele repetiu as palavras de sua esposa. Mais uma vez percebi que o pai de Kevin tinha os cabelos parecidos com os dele. João combinava perfeitamente com sua esposa, e logo de cara notei que eles eram complementares e que a personalidade dominante ali na lanchonete, era a dela. Mais tarde descobriria que em casa era a mesma coisa.

– Bem-vinda!

Na sequência, fui apresentada aos meus colegas de trabalho, e depois às minhas funções. Por último conheci o salão da lanchonete, onde os clientes se alimentavam.

– É tudo lindo! – exclamei com entusiasmo enquanto passava pelos vãos entre as mesas.

– Que bom que gostou. Nós tentamos fazer tudo da maneira mais intimista possível. Às vezes, e elas não são raras, eu mesma sirvo uma ou outra mesa. É importante mostrar presteza ao cliente, Marta.

Assenti com a cabeça. Eu trabalharia majoritariamente dentro da cozinha, portanto, sem muito contato com o público, mas sabia que no serviço de “faz tudo”, incluía-se as tarefas esporádicas de uma garçonete. Tremi ao perceber que Lena tinha um verdadeiro... xodó era a palavra, pelo seu estabelecimento, pois isso colocava sobre mim a obrigação de corresponder às suas expectativas.

– Agora vamos às recomendações.

Acho que essa parte não interessará a ninguém, no entanto vou narrar por alto os minutos seguintes: meus patrões me explicaram o passo a passo do tempero da casa e me explicaram o ponto exato de cozimento de cada alimento. A chefe de cozinha era Lena, e eu seria sua ajudante. Cortaria os alimentos, lavaria os legumes etc. O responsável por ajudá-la a montar os hambúrgueres era um outro rapaz de quem falarei daqui a pouco.

Era um trabalho diferente do meu anterior, que consistia em preparar sorvete, mas eu não era inexperiente na cozinha e sabia que era capaz de aprender.

Um dos meus colegas de equipe na lanchonete era Alejandro, um mexicano que fazia hambúrgueres como ninguém (meu chefe João deixou isso bem claro quando nos apresentou). Ele só perdia para Lena, a criadora do hambúrguer que misturava o que os americanos mais gostavam com um toque de brasilidade.

Simpatizei imediatamente com ele. Alejandro tinha a pele morena, os cabelos negros e olhos de jabuticaba. Seu olhar me deixou confortável.

Ele falou em portunhol comigo, e eu me senti mais tranquila de saber que não era a única estrangeira ali. Os donos não contavam, afinal ninguém teria coragem de ralhar com eles por isso. Essa era uma das minhas inseguranças.

– Você vai gostar da cidade – disse Alejandro. 

Era difícil não gostar de Los Angeles, e eu tinha essa certeza mesmo tendo-a conhecido há pouco.

– Está aqui há muito tempo? – questionei.

– Mais de um ano. 

Ele parecia feliz em seu trabalho, e isso também me deixou aliviada, pois era uma demonstração de que o ambiente era amigável e receptivo como minha primeira impressão demonstrara.

– Se tiver alguma dúvida e eu não estiver por perto – disse Lena – pergunte a Alejandro. – Ela piscou para ele e saiu de cena.

– É tranquilo por aqui? – perguntei a ele.

– Costuma ter bastante movimento, mas não se assuste. Os hambúrgueres da Lena são tão bons que tem gente que compra para colocar na geladeira e comer no jantar, já que só abrimos no almoço. Fique tranquila que a gente se acostuma rápido com esse ritmo, vai por mim! O importante é trabalhar em equipe.

– Com isso eu estou acostumada. Só vêm jovens?

– Que nada! Vem gente de todas as idades. Já que servimos outras coisas, o público é variado. Eles adoram os pratos brasileiros, e eu tenho que concordar que a culinária de vocês é ótima. Em geral são pessoas tranquilas, com exceção de alguns mauricinhos. Se eles tivessem de educação o que têm de dinheiro... e de beleza – Alejandro me lançou um olhar reflexivo.

Fiquei com essa frase na cabeça. Será que Kevin era uma dessas pessoas ricas de grana e pobres de educação? Ele parecera tão simpático à primeira vista! E à segunda também. Mas por que eu estava pensando nele, afinal?

Lena voltou para onde estávamos com algo nas mãos.

– Este é o seu avental! – ela falou enquanto me entregava a vestimenta branca que eu logo coloquei sobre meu corpo.

E então, mão na massa, literalmente, pois o primeiro cliente do dia, ao invés de solicitar o hambúrguer clássico, pediu macarrão à bolonhesa.

[1] Canção da banda Cranberries, ano de 1993.

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