Capítulo 7

A festa da piscina acabou não acontecendo naquele dia, então eu pude continuar com minha leitura.

– Nós queremos preparar um almoço especial no domingo para comemorar sua chegada – disse Lena. – Pretendíamos fazer isso antes, mas estávamos atribulados.

Estranhei, pois não sabia que minha estadia ali era motivo de comemoração para eles, mesmo que para mim fosse.

– Não precisa, imagine! – respondi absolutamente sem jeito.

– Nós fazemos questão! Qual é o seu prato preferido? 

– Como de tudo.

– Deve haver algo de que você goste mais. Que tal um churrasco?

Carne assada me fazia lembrar da minha infância, quando as coisas eram mais fáceis para minha família e a vizinhança toda se reunia em nossa casa para almoçar nos feriados. Cada um levava um prato. Alguns levavam o arroz, outros a farofa, e havia aqueles que faziam a vinagrete.

Minha chefe saiu do cômodo, me deixando sozinha no sofá amplo com a televisão ligada em um programa de fofocas de celebridades. 

Eu não me sentia à vontade o suficiente para ficar ali sentada, mas ela havia me convidado com tanta simpatia, que eu aceitara.

– Ela é sempre assim? – perguntei a Kevin que estava passando pela sala em roupas leves. 

– Hospitaleira? 

– Sim.

– Bem, é a primeira vez que alguém se hospeda aqui – ele se sentou ao meu lado, e eu senti seu cheiro de sabonete.

Pelo que eu havia entendido, ele estava indo para a academia doméstica que ficava no jardim, perto da piscina. Lá havia alguns aparelhos de ginástica. Kevin tomava banho antes dos exercícios, e com certeza tomaria depois também. Ele definitivamente não estava por dentro do racionamento de água, por outro lado, era bastante cheiroso, o que era uma inegável qualidade.

Outra coisa inegável era que ele era tão hospitaleiro quanto a mãe, à sua maneira, pois outro mauricinho poderia estar me tratando como uma empregada, ao invés de como uma hóspede. E ainda por cima ele discutia sobre “O Morro dos Ventos Uivantes” comigo. Que outro garoto rico e bonito faria isso?!

– Ela gostou de você – ele concluiu. 

– Sério? 

– Sim! Meu pai também. Eles disseram que você é... quais eram mesmo as palavras?

– Boa cortadora de legumes? – gracejei.

E fiz Kevin rir.

– Uma menina focada.

Antes que eu respondesse ao elogio, ele já tinha ido fazer seus exercícios. 

No domingo, ao descer senti o cheiro da carne assada, vindo da churrasqueira que ficava no jardim. 

Me sentei à mesa com a família pela primeira vez, sentindo-me um pouco desconfortável. Minha irmã, Ester, sempre fora a mais solta de nós duas em todos os sentidos, e pensei que talvez ela não se sentisse assim no meu lugar. Talvez também fosse por isso que ela levasse mais jeito com os homens.

– Então, Marta – disse Lena.

– Vocês podem me chamar de Martinha. Todo mundo me chama assim.

Já fazia alguns dias que eu estava para dizer isso.

– Martinha! Realmente combina mais.

– É! – Eu não sabia o que dizer.

– Nós falamos com Peter hoje. Ligamos para agradecê-lo. A indicação dele foi ótima.

– Não deveríamos falar de trabalho, né?! – Kevin interrompeu.

– Não acho que Martinha ligue – João disse.

– Não ligo.

– Mesmo assim. É domingo, dia de fazer uma oração em voz alta antes de comer e falar de coisas engraçadas.

Cheguei à conclusão de que ele não gostava do assunto “Milk Shakespeare”.

Houve silêncio à mesa, exceto pelo som da mastigação de cada um.

Nós poderíamos ter almoçado lá fora, perto da churrasqueira, mas estava chovendo, e embora a pequena mesa ficasse embaixo de uma cobertura, a família optara pela sala de jantar, que era um ambiente agradável.

Falando na chuva, ela colocou boa parte da Califórnia em estado de calamidade, causando enchentes e prejuízos, mas parecia que Beverly Hills estava imune a isso, pois ali caía apenas uma chuvinha fina de verão.

A mesa de lá era bastante ampla, tendo lugar para doze pessoas, o que dava uma sensação de vazio, pois nós éramos quatro naquele momento.

– Está gostando da cidade? – perguntou João.

– Estou adorando! Los Angeles é... – A palavra simples me fugiu, mas acabei encontrando-a. – Incrível!

Assim o clima foi reestabelecido e o almoço transcorreu bem.

**

Durante a semana...

– Você está na casa da Lena, não é?! – Alejandro, meu colega de trabalho, perguntou no meio do expediente.

Assenti com a cabeça. Me sentia estranha de falar sobre isso. Não queria que implicassem comigo por achar que tinha algum tipo de preferência dos chefes. Tudo que eu não precisava era de encrenca. Entretanto, Alejandro me passava confiança por causa de seu semblante simpático e de sua voz tranquila. Ele parecia ser um cara legal, do tipo que não se importava que fizessem almoços de domingo em minha homenagem.

Eu tinha sorte de estar cercada de caras legais.  

– E você, mora aqui nas redondezas?

– Moro no lado pobre de Beverly Hills. Acredite, existe um. Meu namorado e eu alugamos um apartamento em um pequeno prédio.

Eu não esperava que Alejandro fosse gay, mas não fiquei abismada, apenas um pouco surpresa. Preconceito meu! Eu não sabia, mas minha estadia naquele lugar me faria vencer muitos deles.

– Ele é daqui?

– De Porto Rico. Há muitos porto-riquenhos neste país. Ele trabalha em um hotel – contou. – É mensageiro. Nós dividimos o aluguel, as contas e, principalmente, a vida.

Achei essa última frase bastante romântica.

– Encontramos um apartamento até que legal. As gorjetas ajudam muito! Estamos guardando para fazer algumas coisas que planejamos.

Eu fiquei curiosa sobre o lado pobre de Beverly Hills, embora já conhecesse lugares pobres o suficiente.

– Espero também receber alguma coisa de vez em quando pra ajudar num pezinho de meia.

– Você vai! Vira e mexe os clientes se lembram de nós, que trabalhamos dentro da cozinha.

– Esse é um bairro muito elegante – constatei. – Confesso que estou um pouco deslumbrada. Nunca vi casas tão bonitas, gramas tão verdes...

– Todos nós ficamos quando chegamos. Nós imigrantes, eu digo.

Ele colocou dois hambúrgueres na chapa.

– Você aprendeu a fazer isso aqui na lanchonete?

– Lena me ensinou – contou ele. – Aliás, se não fossem João e ela, eu nem estaria mais aqui.

Fiquei curiosa para saber mais sobre a história do meu colega. Durante o trabalho, eu me forçava a ficar calada para absorver o máximo possível de aprendizado das tarefas. Me manter concentrada era uma decisão inteligente.

– Eles são o máximo – concordei. – De que cidade você é?

– Cidade do México. Capital. E você... deixe-me ver, Rio de Janeiro?

– Bingo!

– Quem sabe não passo minha lua de mel lá, não é?! Mas para isso preciso guardar muitas gorjetas.

Ele ficou em silêncio por alguns minutos enquanto trabalhávamos, e o rompeu dizendo:

– Parabéns!

– Parabéns? – Me perguntei se ele sabia que meu aniversário estava chegando.

Mas não era isso.

– Você está indo muito bem. Pegou o jeito do corte da cebola rapidinho.

Era a primeira vez que eu era elogiada por isso.

Falando em congratulações, o dia do meu nascimento chegou logo depois.

Eu nunca havia passado essa data longe da minha família, e embora gostasse de ficar ao lado de quem amava no meu dia, não estava lamentando o fato de estar em Beverly Hills.

Liguei para a minha irmã e recebi os parabéns dela, e depois foi a vez de receber uma ligação da minha mãe, que estava com a voz chorosa. 

– Ainda não consigo acreditar que você saiu do ninho. 

– Mãe! Não precisa chorar.

– Comprei um CD da Marisa Monte para você. Quando voltar, estarei no aeroporto com ele nas mãos. Confesso que já abri e coloquei pra tocar no meu rádio. Adorei aquela música que fala sobre desilusão.

– “Dança da Solidão”? – perguntei.

Não mencionei o fato aos meus chefes, nem a Kevin – não que eu estivesse guardando isso como um segredo de Estado, até porque não era uma data importante para ninguém além de mim mesma – entretanto, me surpreendi com um bolo em cima da mesa da cozinha e a família dizendo:

– Surpresa! 

Eu tinha acabado de descer para jantar como de costume. Após o almoço de domingo, eu passara a me sentir menos constrangida ao participar dos momentos de família, mas aquilo já era um pouco demais. Um pouco não, muito.

Isso me fez questionar se os avós de Peter não eram mafiosos que usaram de sua influência para colocar a lanchonete dos seus amigos no topo. Porque tamanha consideração da parte deles para comigo, parecia surreal.

– Nós compramos um bolinho.

Falei as duas palavras mais clichês dos aniversários:

– Não precisava! 

Bem, é fato que o bolo era simples e parecia improvisado, comprado em alguma padaria da região, e não havia bexigas, nem docinhos, contudo, mesmo assim, era muita consideração para comigo.

O feriado de Quatro de Julho tinha passado recentemente, e eu ficara encantada com a celebração da independência dos EUA. Era como o nosso Sete de Setembro, mas com mais fôlego e animação, o que me fez perceber quão patriotas eram os norte-americanos. As crianças que não tinham ido viajar no verão e ficaram na escola fazendo algum curso de férias, prepararam um desfile pelas ruas do bairro com a ajuda de seus professores. Muitos dos veranistas pararam para observar, vários deles clientes da lanchonete. Nós, que estávamos na cozinha, saímos para assistir também.

E agora, dias depois do aniversário da liberdade das treze colônias[1], era eu quem aniversariava.

– Comprei isto para você – Lena me entregou uma sacola. – Espero que goste!

Eu estava tão sem graça. Era como se tivesse sido adotada por uma família rica tardiamente. Isso fazia de Kevin meu irmão adotivo, o que poderia render um roteiro de algum pornô de péssima qualidade caso nós tivéssemos algo. Mas isso parecia fora de cogitação.

Será que Lena sonhava em ter uma filha menina e estava se realizando em mim?

– Não precisava também – repeti.

– Abra!

Obedeci e retirei de dentro da sacola um embrulho, que abri com cuidado para não rasgar. Tratava-se um conjunto de saia e blazer[2] com estampa xadrez na cor amarela quase esverdeada. O xadrez é um clássico da nossa moda atual, e aquele modelo era tão lindo que, ao olhar para ele, constatei que eu ficaria parecendo uma patricinha de Beverly Hills naqueles trajes.

– É maravilhoso! Obrigada.

Ela sorriu e foi à cozinha para pegar pratinhos para cortarmos o bolo.

– Parabéns! – disse Kevin se aproximando.

– Valeu!

Com ele eu ficava mais à vontade para falar que:

– Eu não esperava. Sei que é só um bolo, mas mesmo assim, não esperava que vocês fossem se importar. Eu praticamente acabei de chegar. Peter não devia ter contado que era meu aniversário.

Omiti a parte de que eu me considerava uma quase completa estranha, ainda. Mas isso não mudava o fato de que estava me sentindo lisonjeada.

– Peter não contou. Meus pais que viram na sua ficha de funcionária. Bolo de aniversário é sempre bom, não é?

Só ali notei que Kevin também trazia um embrulho nas mãos.

– Pra você!

– O que é?

Abri e constatei que se tratava da fita da adaptação de “O Morro dos Ventos Uivantes”, a versão mais recente, de 1992.

– Tive que improvisar.

– Ah, pare! A fita é sua.

– Agora é sua. Guarde como uma lembrança de verão.

Naquela hora eu ainda não sabia que aquela seria apenas uma das lembranças que eu teria do verão com Kevin.

[1] Que em 4 de julho de 1776, se juntaram e formaram os Estados Unidos da América.

[2] Referência ao traje clássico da personagem Cher (Alicia Silverstone) no filme “As Patricinhas de Beverly Hills”.

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